01 Junho 2024
"Éramos tantos no sábado na Arena de Verona, buscando uns nos outros a força do sonho de um mundo melhor. O Papa estava no meio de nós, com o seu conselho e a sua palavra que chega com força a muitos corações. Mas somos poucos nos nossos países. A política vai em outra direção, a imprensa vai em outra direção", escreve Carlo Rovelli, físico e ensaísta, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 20-05-2024.
O Papa esteve em visita à minha cidade. Para minha surpresa, isso me deixou feliz. Nestas páginas, talvez pareça como um comentário banal. Não é para mim: cresci guiado por valores que me pareciam distantes daqueles da Igreja. Eu nunca fui um crente e não sou nem mesmo hoje. Mas o mundo mudou, talvez eu tenha mudado, talvez a Igreja tenha mudado, e hoje me sinto, com espanto, próximo da Igreja, da sua orientação moral, como nunca teria acreditado que pudesse ser possível. E acredito, digo em voz baixa, que são muitos hoje aqueles que eram muito distantes da Igreja e que se sentem assim.
Sábado, em Verona, cidade onde cresci e vivi toda a primeira parte da minha vida, o Papa reuniu ao seu redor uma grande multidão colorida e emocionada, animada pelas palavras de paz, pela justiça, pela exortação a ir contra a corrente, pela denúncia contra quem fomenta a guerra por lucro, contra quem fabrica armas. Era uma multidão que eu sentia fraterna. No momento mais intenso do dia, dois homens tomaram a palavra: “Eu sou Maoz Inon, venho de Israel. Em 07-10-2023 o Hamas matou os meus pais"; “eu sou Aziz Abu Sarah, venho da Palestina. Meu irmão foi morto pelos soldados israelenses". Depois se abraçaram. Dez mil pessoas gritantes na grande Arena emudeceram. Depois se entregaram a um interminável aplauso. Eu não pude conter as lágrimas. A dor do mundo. A loucura do mundo. E a única maneira de enfrentá-la... O Papa olhou para eles emocionado. Abraçou os dois.
O encontro entre o israelense e o palestino podem ser vistos no vídeo acima, aos 1h24min12s
Esse é o mundo que queremos. O Papa falou dos conflitos e exortou a não ter medo deles. A enfrentá-los conversando, tentando compreender as narrativas opostas, o ponto de vista de quem está do outro lado, os seus medos, olhando as persistentes injustiças que alimentam os longos ressentimentos, abaixando as armas, pensando na imensa e real dor dos seres humanos, buscando os pontos de convergência, os valores compartilhados que nos tornam humanos.
Esse é o mundo que queremos. Um mundo em que a humanidade possa viver junta em paz, enfrentar os inevitáveis conflitos com o diálogo e a diplomacia, construir juntos o bem de todos e enfrentar em conjunto os problemas comuns, como a iminente emergência ambiental.
Queremos líderes políticos capazes de ir nessa direção, como foram necessários no passado. Esse é o mundo desejado pelos fundadores das Nações Unidas. É o mundo de que fala o Papa. É o mundo que sonham e pelo qual tentam se empenhar as dez mil pessoas presentes no sábado para na Arena de Verona, as inúmeras associações, movimentos e organizações que o esplêndido bispo de Verona envolveu para construir juntos a manifestação.
Mas não é esse o mundo que estamos construindo. O mundo que estamos construindo é feito de milhões que ainda vivem na pobreza, com uma escandalosa e crescente disparidade de bens, da loucura das armas atômicas que pairam sobre as nossas cabeças como a espada de Dâmocles, e que agora voltamos a construir em número ainda maior. É feito pela propagação das guerras, há tempo que não eram tantas como agora, da dor que geram, do assombroso salto para frente dos gastos militares em todo o mundo, e acima de tudo, pelo olhar cada vez mais atravessado para os outros potentados da Terra.
Estamos num mundo onde os nossos governantes, em vez de tentarem resolver conflitos sem derramar sangue, falando e buscando pontos de equilíbrio, em vez disso repetem cada vez mais que querem derrotar o inimigo, custe o que custar em termos de sangue e dor. Um mundo que me parece esteja se direcionando rumo a outra de suas regulares explosões de loucura, quando periodicamente nos massacramos aos milhões, cada um convencido de estar do lado da razão.
Éramos tantos no sábado na Arena de Verona, buscando uns nos outros a força do sonho de um mundo melhor. O Papa estava no meio de nós, com o seu conselho e a sua palavra que chega com força a muitos corações. Mas somos poucos nos nossos países. A política vai em outra direção, a imprensa vai em outra direção.
O poder, e quem o segue e dele depende, está indo em outra direção. A maioria, temo, prefere fechar um olho diante da dor do mundo, da ganância dos poderosos, dos riscos da nossa arrogância, porque, afinal, aqueles que são defendidos com a violência são os nossos privilégios. Escrevo isso com tristeza, não sei se é verdade. A miopia tem cura, a miopia do egoísmo me parece letal.
Não é a primeira vez que este Papa me surpreende. Eu me encontrei com ele há alguns anos, por ocasião de uma conferência científica em Castel Gandolfo. Então o inimigo da vez do Ocidente era o Islã, tentei sugerir ao Papa que fosse mais explícito com o seu povo, exortando-o a não considerar os muçulmanos como inimigos. Para minha surpresa, ele o fez publicamente alguns dias depois. E quando tentei – infelizmente sem nenhum sucesso –, reunindo o apoio de colegas da ciência, promover a ideia de uma possível negociação global para um desarmamento equilibrado, que libertaria um dividendo colossal de paz com o qual poderíamos juntos resolver a pobreza extrema e cobrir os custos dos remédios para o aquecimento climático, o Papa expressou o seu apoio.
Mas o maior presente, para mim, foi no sábado, depois do encontro na Arena. A minha cidade o acolhia com governador, prefeito, altos prelados e os mais variados VIPs. Mas Francisco foi almoçar com os detentos na prisão da cidade. Por esse sinal eu o amei e reconheci nele os valores que me parecem os mais fortes e sagrados.
Quando jovem eu queria mudar o mundo, sonhava com um mundo mais justo, sonhava em abolir privilégios, fronteiras, exércitos, exploração. A Igreja me parecia um dos obstáculos. Agora não mais, e sinto o Papa, com espanto, num mundo cada vez mais cego, como um sábio irmão mais velho.
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Eu, não crente, me sinto próximo do Papa e da Igreja. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU