No marco dos 65 anos da revista e portal de notícias religiosas Vida Nueva, sua equipe propôs ao Papa Francisco uma reflexão sobre os sonhos, presentes e futuros, os impossíveis e os que se concretizam no cotidiano.
A entrevista é publicada por Vida Nueva, 08-04-2023.
Quando começou a organizar à sua maneira o local em que trabalharia, Jorge Mario Bergoglio pôs uma imagem do São José dormindo em uma cômoda ao lado da escrivaninha, com alguns papéis embaixo. Eram pedidos pessoais ao esposo de Maria. Certo tempo depois, Francisco confessaria que era melhor ter colocado os pedidos nas mãos do santo porque, embora demore para concluir suas obras, como demoram todos os bons artesãos, este sempre conclui os seus trabalhos com muito cuidado e perfeição.
Dez anos depois chegar a Roma, aquele mesmo São José tem sob seu pedestal uma montanha de pedidos. Mas ele continua sonhando, como faz o pontífice argentino também. O verbo sonhar está cada vez mais presente em seus discursos. Desde aquele “sonho de uma Igreja pobre para os pobres” até o seu constante convite aos jovens a “sonhar grande”, ele sonha com os olhos em Deus e com os pés no chão.
Quais são os sonhos de Deus hoje?
Há algo que não sabemos sobre São José. Creio que ele sofria de insônia. São José não conseguia dormir, pois tinha medo de que, sempre que adormecesse, Deus mudaria os seus planos através dos sonhos… (Risos) Precisamente, a lista de novos cardeais – a maioria deles, os menos óbvios – chegou a mim durante a noite, como um sonho. Quero dizer, como se eu estivesse sonhando.
Agora falando sério: alguém que deixa de sonhar na vida é uma pessoa sem graça, envelhecida. Há sempre algo para sonhar. É assim que eu penso. Às vezes são planos; outras vezes são projeções... Qualquer coisa! Mas temos que sonhar. Quando sonhamos, escancaramos as portas e as janelas de par em par, e acabamos vulneráveis. Quem não sonha, não tem futuro; tem um futuro repetitivo e chato. Chato! Essa é a palavra. Tem tanta gente chata! Há tantas pessoas que não lhes faltam nada na vida, mas que se sentem entediadas. Elas não projetam.
Por exemplo, um filho abre portas; um filho nos obriga a sempre sonhar. Há um poema de Gerardo Diego: 'O brinde'. Leiam ele. É de uma beleza enorme. Gerardo o escreveu para o seu banquete comemorativo quando foi nomeado professor. Fala do seu futuro como mestre. Muito bonito. Nele, Gerardo brinda porque um dia terá discípulos. Ele sonha com o seu alter ego: é o sonho de um pai com um filho. É como ir além do limite empírico, de constatação. É essa capacidade de sonhar. Poderíamos dizer: “Agora eu vejo, mas antes eu sonhava”. É o sonho de um homem que quer alguém para seguir em frente, que crie e abra horizontes.
Às vezes, quando sonhamos demais, acabamos em rodeios e nos perdemos. É o risco de sonhar mal, mas então nos corrigimos depois: "Que bom seria se...!". Esse seria é o abrir a porta e a janela.
Às vezes, quando alguém vem se confessar com um problema, eu pergunto: "Você sonha? Imagina coisas bonitas?" Se tem filhos: “Imagina o que seus filhos vão ser amanhã?” Precisamos convidar as pessoas a se abrirem, se abrirem e se abrirem. Caso contrário, caímos na dinâmica da atividade comercial, o que é ruim, porque envelhecemos, paramos de sonhar. Quando estamos dominados pelo desejo de ganhar, acabamos nos fechamos. Porque só olhamos para fora por interesse próprio, e não para a contemplação dos sonhos.
O senhor continua sonhando com aquela "Igreja pobre e para os pobres"?
Uma expressão que certa vez usei para a Igreja é “em saída”. Em outras palavras, não sabemos o que ela será lá na frente, mas pelo menos não está fechada em si mesma. Não sonhar nos leva à mesquinharia, à incapacidade de sermos generosos, à incapacidade de darmos esmola, por exemplo. Gosto de perguntar a quem vem ao confessionário: "Você dá esmola? E olha nos olhos da pessoa à qual dá esmolas?" Aí o confessor começa a hesitar. "Você toca a mão da pessoa quando dá esmola para alguém, ou joga a moeda e vai embora?" É nesse momento que realmente percebemos que tipo de pessoa temos à nossa frente. Se a pessoa é capaz de se abrir ao outro, se se abre à possibilidade de sonhar. Abrir-nos nos tira dos esquemas defensivos, de fechamento.
Hoje, neste momento, com o que sonha o padre Jorge Mario Bergoglio?
Com uma Igreja de periferia. Aliás, o próximo consistório é um sonho nessa linha. Se olharmos para o número de cardeais da Cúria que havia dez anos atrás e agora, ou se olharmos para a redução de cardinalatos ligados a sedes episcopais históricas, veremos que aquela periferia agora está no centro. Aí está o novo cardeal de Juba (Sudão do Sul), que nunca teria sido levado em conta, ou a nomeação do arcebispo de Penang (Malásia), que muitos nem sabem onde fica.
Esta é a Igreja com que sonho e que, além disso, é a Igreja dos Atos dos Apóstolos: partos, medos e elamitas... Naquela manhã de Pentecostes, em que todos falavam a própria língua, mesmo assim todos se entendiam. Isto tem que acontecer agora: cada um fala a sua própria língua, mas todos se entendem, mesmo que um acentue mais isso, o outro mais aquilo... Acho que esta é a Igreja que devemos buscar, e não nos escandalizar, porque estamos confundindo o essencial com o acidental. Quando involuímos, fazemos o papel de ridículos. E tem gente que, às vezes, perde o senso do ridículo... Quando queriam que a atriz Anna Magnani fizesse cirurgia estética porque ela começou a ter rugas, ela falou: "Não. Demorei anos para ter essas rugas!" E é uma das vinganças da vida: cair no ridículo sem que nos demos conta.
É difícil sonhar num mundo como o de hoje, com uma terceira guerra mundial travada em parcelas...
Sim, é complicado. A dimensão trágica de hoje é grave. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, houve conflitos em várias partes. Agora estamos enfrentando a guerra na Ucrânia, que nos assusta porque está próxima. Mas, quem pensa no Iêmen, quem pensa na Síria, quem pensa em todos aqueles lugares da África, por exemplo, em Kivu, na região norte da República Democrática do Congo onde eu não pude ir? Estamos em guerra o tempo todo, mas como ela está longe...
Da mesma forma, nos parece natural, por exemplo, que os Rohingya estejam vagando pelo mundo porque ninguém quer recebê-los. Só o que está perto nos assusta. Às vezes, olho a cúpula de São Pedro e digo a mim mesmo: "Se um desses malucos jogar uma bomba aqui, acaba tudo". No entanto, mesmo nessas circunstâncias, há motivos de esperança. Recentemente, um navio carregado de armas chegou ao porto de Gênova. A carga precisou ser transferida de um navio relativamente pequeno a um navio maior para ir ao Iêmen. Mas os estivadores não quiseram carregá-lo. Aconteceu uma vez, mas é um sinal.
Quem é este funcionário que o auxilia hoje?
Algo que me impressiona muito, por exemplo, é a vida dos gendarmes; são homens que se sacrificam. Por exemplo, hoje está conosco o Bruno, que fala espanhol perfeitamente. Eu brinco com ele: "Você aprendeu espanhol na prisão... porque se casou com uma espanhola". Há pessoas divinas na [casa] Santa Marta. Tem um outro trabalhador que chamo de 'O Silencioso'. É ele quem mantém a casa silenciosa: se quebram um vidro, ele vai ver; se um cano quebra, ele vai ver; se o sistema de aquecimento não funciona, ele vai ver... Sem fazer barulho, ele resolve tudo. É um homem de Deus. Às vezes eu o vejo rezar. É um homem de Deus. Tem homens de Deus aqui.
O sonho que o senhor expressou há dez anos de uma Igreja “hospital de campanha” está se realizando?
Há lugares em que sim, depende dos bispos. Às vezes, a Igreja se torna exigente demais em querer ser um "hospital de campanha" e erra porque se apressa. Assim, entramos em deriva, onde damos uma solução que está certa em sua direção, porém soluções não são tomadas a partir da contemplação do Evangelho. Não é possível reformar a Igreja sem uma inspiração evangélica. Como uns prestam muita atenção na eficiência, acabamos caindo em desvios.
Eis uma armadilha muito grande: as soluções buscadas não decorrem do Evangelho. Elas se baseiam no bom senso, nas possibilidades humanas do que deve ser feito, sem expressão evangélica. Eles têm pressa. E certos estão em querer resolver os problemas rapidamente, afinal os fiéis estão se afastando. Acho que isso é o que ocorre no chamado Caminho Sinodal alemão.
Continuo apostando no processo sinodal iniciado por São Paulo VI. Quando se completou o 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos, senti que podíamos lançar um documento. Uma equipe de teólogos de primeira linha deu forma a ele, e eu o respaldei, porque nos mostra o caminho percorrido para chegar até aí. Nos últimos dez anos aperfeiçoamos algumas coisas, não muitas. Por exemplo, antes nem sequer nos havia ocorrido perguntar aos leigos. Sendo um Sínodo dos Bispos, que votassem somente os bispos, ponto final. E todos os que vierem de fora, que fossem observadores.
Durante o Sínodo para a Amazônia, nos intervalos, há uma sala para o Papa ao lado do plenário. Eu ia lá. No primeiro dia as mulheres começaram a vir com a questão das votações. Foi o ponto de partida para um diálogo sincero. A partir daí, perguntei aos teólogos, que fizeram uma rápida pesquisa e disseram: "Sim, as mulheres podem votar". Mas o Sínodo já havia começado. Se são membros, podem votar. E pensei: "Fazer isso agora pode ser escandaloso, vou deixar para o próximo...", que é agora. O sonho foi amadurecendo até tomar forma.
Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor, livro do Papa Francisco (Foto: Reprodução)
O senhor está à frente uma igreja com 1.300 bilhão de fiéis, com problemas graves constantes em sua escrivaninha, com muitos aguardando grandes mudanças... Com tanta responsabilidade sobre seus ombros, o senhor não perde o sono?
O sono nunca foi tirado de mim, em momento algum. É uma graça: chego tão cansado que durmo. Graças a Deus, não caí na tentação da onipotência, de acreditar que posso solucionar tudo. Claro que, como bom jesuíta, acordo muito cedo para ter mais tempo...
O senhor tem se mostrado bem ousado, propondo mudanças. Mas deixará algum sonho de lado por ser ele muito ousado?
Não me ocorre ter deixado nada de fora. Quando as reformas surgem, elas surgem instintivamente. Claro que quando algo me ocorre e passa pela minha cabeça, a primeira coisa que vem é: "Não, não pode ser". Mas aí eu penso, consulto e vejo se é possível levar adiante. Temos que medir até onde podemos ou não ir além do limite. Há uma certa impotência, mas acredito que seja bom, porque evita que nos achemos um deus ou alguém todo-poderoso. São os limites impostos pela história, pela vida... Por exemplo, ainda não me atrevi acabar com a cultura de corte [que imita o ambiente de realeza] na Cúria.
E como se materializam estas propostas que parte da Igreja ainda não está preparada para assumir?
Com uma formação e saindo mundo afora. É preciso sair e estar do lado de fora. Na Argentina, eu ficava espantado ao ver pastores que só olhavam para o próprio umbigo, com um olhar voltado para dentro. Aqui tenho em mente um bispo, um grande teólogo, mas que como pastor era uma nulidade. Ele sempre soltava mensagens do tipo: "Cuidado, a missa tem que ser celebrada assim e assim...". Os pobres padres estavam sob o comando daquele homem. Existem pastores que não são pastores.
Sonhou em ser papa alguma vez?
Nunca passou pela minha cabeça. Quando João Paulo II morreu, eu estava indo a uma favela de Barracas. Ele morreu enquanto eu estava no ônibus. Celebrei uma missa e me sentei junto do povo. Uns começaram a perguntar sobre como era a escolha do papa. E uma velha me disse: "Padre, eles podem te escolher como papa?" Eu respondi: "Sim, todos". "Bem, então, um conselho", disse ela, "se for escolhido para ser o papa, compre um cachorrinho". "Para quê?", perguntei. "Antes de comer, dê comida a ele".
Em 11-02-2013, no mesmo dia em que Bento anunciou sua renúncia, eu tinha marcado uma missa na paróquia de Lourdes, em Caballito. A missa ocorre na rua porque são muitos os fiéis... Terminada a Eucaristia, eu disse: "Rezemos pelo Papa Bento XVI, que hoje apresentou sua renúncia, rezemos uma Ave Maria à Virgem". E uma velha gritou em seguida: "Oxalá lhe escolham para ser o papa!"
E o sonho virou realidade...
Não foi um sonho, foi um grito (risos). As velhas são sábias. Precisamos escutá-las.
Na noite de 13-03-2013, quando o elegeram, o senhor teve tempo para sonhar ou, ao acordar, disse a si mesmo assustado: "O que caiu sobre mim"?
Naquela noite dormi como uma pedra! Depois da eleição, demos um grande banquete. Eu já estava preparado. Vou contar como isso aconteceu. Depois de falar ao povo, depois de rezar pelo papa anterior, saí e tinha um elevador parado só para mim, para que eu pudesse me deslocar sozinho. "Vou ir com todos." Isto saiu de dentro de mim. Quando desci, lá estava a limusine. E voltei a dizer: "Eu vou de ônibus com todo mundo." Foi quando percebi que estava à minha espera uma mudança neste sentido.
Depois do banquete, liguei para o núncio na Argentina e falei: “Diga para que ninguém viaje”, pois imaginei que os bispos viriam, e sugeri que o dinheiro da passagem fosse dado aos pobres. Depois liguei para Bento XVI para cumprimentá-lo. A princípio ele não respondeu, porque estava assistindo televisão, mas quando consegui falar com ele, percebi que ele estava contente.
Na manhã seguinte, não conseguia ajustar a gola da batina, não sei por quê. Saí e lá estava o bispo emérito de Palermo, e lhe disse: “Me ajuda”. “Sim, claro!”, respondeu. Da mesma forma, naquele dia desci para comer no refeitório com todos. E assim começou a vida comum que levo até hoje. A mudança de forma de proceder aconteceu por conta própria, deixei que o meu jeito surgisse. Não mudei o meu estilo de vida e isso me ajudou. Foi uma intuição do momento. Com essa naturalidade eu vivo as coisas e as conto.