22 Mai 2024
"Celestino V representou a esperança de uma renovação do Igreja, uma Igreja de homens que se entregava à ajuda de Deus para melhorar e ir em frente, enquanto Bonifácio ofereceu uma concepção de Igreja como realidade sobrenatural na qual Deus intervém perenemente." Da Igreja espiritual de Celestino se passavas para a Igreja “corpo místico” do próprio Cristo. O evento emblemático e simbólico da sua visão eclesial foi a indicação do primeiro jubileu da história com uma bula de 22 de fevereiro de 1300 transferindo o centro da devoção e da prática penitencial de Jerusalém a Roma, reafirmando plenamente a suprema soberania papal", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 12-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estávamos na escola quando nos explicavam que provavelmente “aquele que por covardia fez a grande recusa” era o Papa Celestino V, o beneditino Pietro del Morrone. Dante, sem hesitação, colocou-o no Inferno (III, 59-60) entre os ignavos, sobretudo porque com a sua renúncia precoce, após apenas cerca de 160 dias de pontificado, abriu o caminho para a ascensão ao trono de Benedetto Caetani, o detestado Bonifácio VIII, “todo o mal seja-lhe dado!” A imprecação é, na verdade, posta na boca pelo poeta a Guido de Montefeltro que, por sua vez, sarcasticamente faz o Papa confessar a sua satisfação implícita por ter agora nas mãos “as duas chaves que o meu antecessor não soube guardar” (Inferno XVII, 105).
É com certa emoção que agora, numa esplêndida edição editada por Ugo Paoli e Paola Poli, temos a oportunidade de ler a ata do conclave de Perugia com a qual os onze cardeais eleitores escolheram como pontífice, após a morte de Nicolau IV e uma longa e atormentada sede vacante de mais de dois anos, esse celebris sanctitatis vir, como o definiam. Era 5 de julho de 1294, e uma semana mais tarde, em 11 de julho, uma carta era endereçada ao próprio Frei Pietro del Morrone para lhe anunciar a eleição e pedir sua aceitação. Esses dois textos são, no entanto, apenas a amostra de uma sequência de 143 bulas, cartas e decretos emitidos por Celestino V durante os pouco mais de cinco meses de seu pontificado e que constituem a substância do volume.
É paradoxal aos nossos olhos que o primeiro documento emitido por ele em L'Aquila, em 17 de agosto de 1294, seja um recibo de dois mil florins de ouro confiados a um político militar, um certo Gentile de Sangro, para contratar tropas destinadas a pacificar a agitada Marca de Ancona, enquanto o último, datado de 11 de dezembro, é uma confirmação de privilégios atribuídos a um mosteiro de Sulmona. Claro, às vezes entram em cena outros temas, como a curiosa concessão ao rei Filipe IV da França de ser absolvido pelo seu confessor, uma vez em vida, da culpa e da pena dos pecados cometidos.
Pode-se, no entanto, imaginar o quanto poderia ficar perturbada uma figura de alta espiritualidade como era Pietro, quando se viu envolvido e emaranhado numa tal teia de questões tão temporais e muitas vezes ligadas a situações econômicas ou disputas intraeclesiais. Os editores dessa edição crítica na sua imponente mas preciosa introdução oferecem uma classificação detalhada dos assuntos do bulário ou registro de Celestino V: das cartas políticas àquelas a favor de sua Ordem Morronesa, dos escritos para as diversas ordens religiosas (beneditinos, dominicanos, eremitas, hospitalários, militares), até aos múltiplos decretos para a concessão de indulgências e, como mencionado, à documentação sobre o conclave e sobre os anúncios de sua eleição, mas também sobre a regulamentação do próprio conclave no futuro. Pode surpreender, mas Celestino V nomeou doze novos cardeais – sete franceses e cinco Italianos - num consistório realizado em L'Aquila em 18 de setembro, antes de partir em 5 de outubro para Nápoles, escoltado pelo rei Carlos II da França.
Na cidade napolitana permaneceu numa cela monástica que foi preparada para ele no Castel Nuovo. Foi numa sala daquele palácio que em 13 de dezembro de 1294 leu a declaração de renúncia apresentando - como escreveu um estudioso das deposições, abdicações e renúncias do pontificado, J. Grohe – “razões conformes à tradição canônica: doença, ignorância, desejo de voltar à vida eremita”.
Um ato que teria sido relembrado e reatualizado por todas as mídias por ocasião da renúncia formulada pelo Papa Bento XVI na segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013, durante um consistório no qual tive a sorte de participar.
Entre os onze eleitores de Celestino estava o já citado Benedetto Caetani: dez dias depois da renúncia do seu antecessor, o conclave convocado em Nápoles o elegia com o nome de Bonifácio VIII. Era a véspera do Natal de 1294. Um de seus primeiros atos foi confinar Pietro del Morrone na fortaleza de Fumone, na zona de Frusinate, onde sobreviveu um ano e meio (morreu em 19 de maio de 1296). Ele havia, no entanto, voltado ao seu horizonte de paz e espiritualidade, de desapego do mundo, de pobreza e oração. O Papa francês Clemente V o proclamaria santo na catedral de Avignon em 5 de maio de 1313.
Bonifácio VIII foi, no entanto, uma das figuras capitais da cristandade medieval, apesar da relativa brevidade do seu pontificado (oito anos), defensor de uma teocracia eclesiológica. Como escrevem os dois curadores: “Celestino V representou a esperança de uma renovação do Igreja, uma Igreja de homens que se entregava à ajuda de Deus para melhorar e ir em frente, enquanto Bonifácio ofereceu uma concepção de Igreja como realidade sobrenatural na qual Deus intervém perenemente." Da Igreja espiritual de Celestino se passavas para a Igreja “corpo místico” do próprio Cristo. O evento emblemático e simbólico da sua visão eclesial foi a indicação do primeiro jubileu da história com uma bula de 22 de fevereiro de 1300 transferindo o centro da devoção e da prática penitencial de Jerusalém a Roma, reafirmando plenamente a suprema soberania papal.
Com um espírito muito diferente, mas seguindo a intuição do Papa Caetani, o jubileu atravessou os séculos com diferentes recorrências temporais e chega ainda aos nossos dias com aquele do próximo 2025. À margem recordamos que Celestino V, generoso dispensador de indulgências, em 29 de agosto de 1294, por ocasião da sua consagração como pontífice na igreja de S. Maria in Collemaggio em L'Aquila, diante de uma multidão de mais de duzentos mil fiéis emitiu a chamada "bula do perdão" que valia, porém, apenas para aquela data, um evento espiritual, o "perdão", que na realidade ainda hoje é comemorado e celebrado.
Ugo Paoli e Paola Poli (a cura di) Le Bolle di Celestino V Sismel – Edizioni del Galluzzo (Foto: Divulgação/Sismel)
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Celestino V além da grande recusa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU