11 Mai 2024
"Escrito no auge da ideologia autoritária do progresso a qualquer custo, o livro O mito do desenvolvimento econômico trouxe para o Brasil o debate internacional sobre os limites do crescimento econômico e os impactos do aumento desregrado das atividades antrópicas sobre o meio ambiente", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia, em artigo publicado por EcoDebate, 24-04-2024.
“A evidência à qual não podemos escapar é que, em nossa civilização,
a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos,
processos irreversíveis de degradação do mundo físico” (Furtado, 1974, p. 17).
Celso Furtado (26/07/1920 – 20/11/2004)
O mito do desenvolvimento econômico, livro de Celso Furtado, completa 50 anos agora em 2024 (aos 20 anos da morte de Furtado). Tratar o desenvolvimento econômico como um mito foi uma novidade na literatura econômica brasileira, fortemente influenciada pelas ideias desenvolvimentistas da esquerda e pela ideologia do “Brasil Grande” da ditadura militar.
Escrito no auge da ideologia autoritária do progresso a qualquer custo, O mito do desenvolvimento econômico trouxe para o Brasil o debate internacional sobre os limites do crescimento econômico e os impactos do aumento desregrado das atividades antrópicas sobre o meio ambiente. No início dos anos de 1970, foi ficando impossível negar que o enriquecimento da humanidade e o aumento do poder de consumo das pessoas estavam ocorrendo à custa do empobrecimento da natureza.
A crítica ao modelo de desenvolvimento adotado após a Revolução Industrial e Energética já havia surgido há muito tempo, por parte de diversos autores, como Alexander von Humboldt (1769-1859), John Stuart Mill (1806-1873), Henry Thoreau (1817-1862), Rachel Carson (1907-1964), Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994), entre outros. Ainda no início da década de 1970, o economista Kenneth Boulding (1910-1993) escreveu a famosa frase provocativa: “Acreditar que o crescimento econômico exponencial pode continuar infinitamente num mundo finito é coisa de louco ou de economista”.
Em dia 22 de abril de 1970, foi estabelecido o “Dia da Terra”, evento que surgiu em um momento de agravamento da questão ecológica global e a partir da iniciativa do senador norte-americano Gaylord Nelson, com a finalidade de criar uma consciência comum aos problemas da contaminação, conservação da biodiversidade e outras preocupações ambientais para proteger o Planeta.
Em 1972, aconteceu, em Estocolmo, a Conferência sobre Meio Ambiente Humano e o dia 5 de junho (data da abertura da Conferência) passou a ser considerado o “Dia Mundial do Meio Ambiente”, visando promover a compreensão de que é fundamental que comunidades e indivíduos mudem atitudes em relação ao uso dos recursos naturais e sobre as questões ambientais.
Também em 1972 foi lançado o livro Os limites do crescimento, liderado por cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT). A principal conclusão do livro está resumida no seguinte parágrafo: “Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial” (p. 20).
Em 1973, aconteceu a Guerra do Yom Kippur – conflito envolvendo Israel contra Egito e Síria – que provocou o primeiro grande choque do petróleo e um enorme aumento do preço dos alimentos no mundo, marcando o início do fim dos chamados “30 anos dourados” do crescimento excepcional da economia internacional após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Desta maneira, diante de uma ampla literatura crítica aos processos que geram a degradação ambiental global e provocam efeitos danosos aos ecossistemas, Celso Furtado publicou O mito do desenvolvimento econômico visando trazer para o Brasil a preocupação com a defesa do meio ambiente, além de refletir sobre as dificuldades da economia internacional. Diante do ufanismo dos defensores do “milagre econômico brasileiro”, ele argumentou que seria impossível manter o crescimento econômico ilimitado em um planeta finito e marcado por desigualdades estruturais.
Desta forma, Celso Furtado chamou a atenção para o fato de que os países da periferia do sistema capitalista seriam incapazes de reproduzir o estilo de consumo dos países ricos, pois o padrão de desenvolvimento afluente não seria generalizável para a maioria da população mundial. Na passagem abaixo, ele alerta para a possibilidade de um colapso ambiental:
“(…) que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegam efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso” (Furtado, 1974, p. 19).
Furtado, de forma inédita e inovadora para o pensamento econômico brasileiro, mostra que o padrão de produção e consumo hegemônico no mundo seria impossível de se generalizar, pois o crescimento ilimitado da economia seria inviável em decorrência dos limites da ecologia:
“O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida, é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana (…) a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. (…) Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito” (Furtado, 1974, p. 75).
A preocupação de Celso Furtado era real e pode ser ilustrada no gráfico abaixo, do Instituto Global Footprint Network, que apresenta os valores da pegada ecológica global e da biocapacidade global de 1961 a 2019, com uma estimativa até 2022. Em 1961, a população humana era de aproximadamente 3 bilhões de habitantes, com uma biocapacidade de 9,8 bilhões de hectares globais (gha) e uma pegada ecológica de 7,2 bilhões de gha. Portanto, havia um superávit ambiental no mundo, superávit este que se manteve na década de 1960 e está representado pela área verde do gráfico.
Mas, com o crescimento da população e o maior volume da produção de bens e serviços, a pegada ecológica global ultrapassou a biocapacidade global a partir do início da década de 1970, gerando um déficit ecológico que se ampliou ao longo dos anos (representado pela área vermelha do gráfico). O livro “O mito do desenvolvimento econômico” foi escrito exatamente no momento em que a população mundial atingiu 4 bilhões de habitantes e a pegada ecológica superou a biocapacidade da Terra, transformando o superávit em déficit ambiental global.
Por conseguinte, em 2022, com uma população mundial de cerca de 8 bilhões de habitantes, a pegada ecológica está estimada em 20,6 bilhões de gha e a biocapacidade global em 12,1 bilhões de gha. Portanto, o déficit ecológico absoluto é de 8,5 bilhões de gha e o déficit relativo é de 70%. Ou seja, a humanidade está consumindo 70% a mais do que o Planeta pode garantir de forma sustentável.
Reprodução: EcoDebate
Como mostrou o economista ecológico Clóvis Cavalcanti (2001), Furtado percebeu que o desenvolvimento seria um mito, pois, na prática, provoca “destruição ambiental, a ampliação da dependência e o crescimento predatório”. Porém, esta parte do pensamento de Celso Furtado nunca teve a repercussão necessária no território nacional.
Ao contrário do que se esperava de um raciocínio objetivo, Celso Furtado foi “acusado” de ter fraquejado e ter aderido ao neomalthusianismo ou então, simplesmente, seria um descuido temporário e passageiro. Por Exemplo, Antônio Barros de Castro fez uma resenha na Revista Pesquisa e Planejamento Econômico (dez/1974) onde nega a contribuição original de Furtado, dizendo que ele foi influenciado pelo Clube de Roma e diz que esta passagem do livro é “um mero expediente”:
“É evidente, porém, que o autor não compartilha fundamentalmente da visão catastrófica daquela equipe. Nem no referente ao crescimento populacional nem no que toca às barreiras físicas ao crescimento (esgotamento) de recursos e poluição insuportável, já que a aceitação desse fato levaria a prever o estancamento (ou a catástrofe) das próprias economias centrais. Deixemos, pois, de lado as páginas que derivam de Limits do Growth; elas parecem ser um mero expediente de que se vale o autor para chamar a atenção sobre o que é realmente relevante: a ilusão do desenvolvimento” (Castro, 1974, p.740).
Ou seja, alguns economistas brasileiros encontraram uma maneira de contornar o pensamento de Celso Furtado, enquanto outros simplesmente o acusaram de ter um viés neomalthusiano e rejeitaram suas contribuições. Especialmente os autores da chamada corrente “histórico-estrutural” estranharam o livro de Celso Furtado e contribuíram para interditar o debate.
Todavia, após um longo período de tempo, o pensamento de Celso Furtado passou a ser reconhecido. Paul Singer, por exemplo, após 30 anos fez uma autocrítica quando, em entrevista ao IHU, em 2008, disse:
“Em 1974, o Celso Furtado escreveu um livro chamado O mito do desenvolvimento (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974), em que ele sustentava a tese de que era um mito imaginar que através do desenvolvimento econômico o mundo inteiro desfrutaria algum dia do padrão de consumo dos estadunidenses. Ele tinha certeza, assim como embasamento, para afirmar que tal fato não aconteceria nunca. E que, portanto, o desenvolvimento não se poderia gerar por falta de recursos naturais. Ele disse isso há 34 anos. Nessa época, eu li e achei que ele teve um ataque de malthusianismo. Isso porque Malthus, há 200 anos, dizia que a Terra era finita, que os recursos naturais acabariam e que o aumento da população resultaria em fome etc., na medida em que estávamos indo para além da capacidade da Terra.
A tese do Malthus foi várias vezes refutada porque houve diversos avanços científicos que permitiram a utilização de recursos naturais e que na época dele não existiam. Em 1974, nós acreditávamos que o Celso estava um pouco pessimista demais porque, na medida em que os recursos naturais se esgotavam, outros substitutos eram encontrados. Tipicamente, no lugar do petróleo que está acabando, nós desenvolveríamos biocombustíveis, energia eólica, energia solar, e assim por diante.
Só que o Celso estava certo e nós errados, isto é, ele não estava sendo excessivamente pessimista. Chegou o momento em que a pressão da demanda está muito mais forte do que a capacidade do avanço científico de resolver, através de novas tecnologias, esses impasses” (IHU, 2008).
De fato, a questão populacional sempre foi um tabu para o pensamento econômico hegemônico no Brasil. Durante, muito tempo predominou uma ideologia que o crescimento demográfico era neutro em relação à dinâmica econômica e ecológica. Porém, é impossível negar o impacto do crescimento populacional. O gráfico abaixo mostra que a população mundial demorou 12 mil anos para passar de 10 milhões de habitantes para 4 bilhões de habitantes em 1974. Mas em apenas 50 anos adicionou outros 4 bilhões, chegando a mais de 8 bilhões de habitantes em 2024.
Reprodução: EcoDebate
Como mostrei no artigo “Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico” (Alves, 2022) o crescimento populacional alimenta o crescimento econômico, tendo um efeito conjunto sobre a crise climática e ambiental.
Os gráficos abaixo mostram a inequívoca correlação entre o crescimento da população mundial e o aumento das emissões de CO2 que são responsáveis pelo aumento da temperatura global. Fica claro (no painel da esquerda) que o aumento das emissões globais acompanha o aumento do número de habitantes terrestres. A reta de tendência linear entre as duas variáveis (painel da direita), indica que 99% da variabilidade das emissões de CO2 estão associadas, diretamente, ao crescimento demográfico ao longo dos anos de 1880 e 2018.
Reprodução: EcoDebate
Para os “céticos da demografia” – aquelas pessoas que se recusam a considerar os impactos negativos de um elevado volume de habitantes (“mundo cheio”) sobre o meio ambiente – os gráficos acima servem para mostrar que o ritmo ascendente de variação populacional importa, impacta e tem uma correlação enorme com a crise climática. Evidentemente, a dinâmica demográfica não atua no vácuo, pois a resultante do aumento do número de habitantes sobre as mudanças climáticas acontece com o incremento do padrão de consumo, com os ricos tendo muito mais impacto do que os pobres. Mas o efeito demográfico é geral e inequívoco.
Portanto, está na hora perceber os males que o crescimento demoeconômico tem feito ao Planeta, nesta Era do Antropoceno. A perda de biodiversidade, a degradação dos ecossistemas e aquecimento global estão rompendo com o equilíbrio homeostático do Planeta e a estabilidade climática que prevaleceu no Holoceno.
O economista e pesquisador Clóvis Cavalcanti (2012), com base nos princípios da economia ecológica, caracteriza o atual modelo hegemônico de desenvolvimento como “Extrai-Produz-Descarta”. Ele explica como funciona o modelo: “O que a economia moderna faz, na verdade, em última análise, é cavar um buraco eterno que não para de aumentar (extração de matéria e energia de baixa entropia). Cumprido o processo do transumo, os recursos terão virado inevitavelmente dejetos – matéria neutra, detritos, poeira, cinzas, sucata, energia dissipada – que não servem para quase absolutamente nada (matéria e energia de alta entropia). Amontoam-se formando um lixão, também eterno, que não para de crescer. Assim, a extração de recursos e a deposição de lixo deixam como legado uma pegada ecológica cada vez maior” (p. 40).
De maneira sintética podemos dizer que é necessário mudar o modelo “Extrai-Produz-Descarta” e iniciar um decrescimento demoeconômico para colocar a Pegada Ecológica em equilíbrio com a Biocapacidade até se chegar ao Estado Estacionário, ecologicamente sustentável, com regeneração ecológica e aumento da resiliência, evitando um desastre global. E embora John Stuart Mill já tenha tocado nestes assuntos em 1848, Furtado foi muito corajoso de retomar estas questões tão desafiadoras naquele momento histórico brasileiro.
Enfim, não é mais possível tergiversar nos 50 anos do lançamento livro “O mito do desenvolvimento econômico”. A concentração de CO2 na atmosfera estava em 330 partes por milhão (ppm) em 1974 e está se aproximando de 430 ppm em 2024. Em consequência as temperaturas globais, em 2023, atingiram o nível mais elevado em 125 mil anos. A possibilidade de um colapso ambiental global é cada vez mais possível e provável. O desenvolvimento econômico global continua sendo um mito para a maior parte da população mundial, mas a crise ambiental e climática é cada vez mais real e ameaçadora.
ALVES, JED. Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico, Liinc em Revista, RJ, v. 18, n. 1, maio 2022 https://revista.ibict.br/liinc/article/view/5942/5595
ALVES, JED. A dinâmica demográfica global em uma “Terra inabitável”, Revista Latinoamericana de Población, Vol. 14 Núm. 26, dezembro de 2019
https://revistarelap.org/index.php/relap/article/view/239
CASTRO, A.B. Resenha sobre O mito do desenvolvimento econômico, Revista Pesquisa e Planejamento Econômico, IPEA, dez 1974.
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6700/1/PPE_v4_n3_O%20Mito.pdf
IHU. Duas crises e o limite ecológico do mundo. Onde vamos parar? Entrevista especial com Paul Singer, 2008 http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/14026-duas-crises-e-o-limite-ecologico-do-mundo-onde-vamos-parar-entrevista-especial-com-paul-singer
CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade: mantra ou escolha moral? Uma abordagem ecológico-econômica. SP, Estudos avançados 26 (74), 2012 http://www.scielo.br/pdf/ea/v26n74/a04v26n74.pdf
CAVALCANTI, Clóvis. Celso Furtado e o mito do desenvolvimento econômico, Fundação Joaquim Nabuco, Trabalhos para Discussão, n. 104/2001, Março de 2001
https://periodicos.fundaj.gov.br/TPD/article/view/920/641#
FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974
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Os 50 anos do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU