26 Março 2024
"Jeffrey Sachs, voz esclarecida, destaca um ponto muito simples: em vez de relançar a cada oportunidade a retórica contra a Rússia e contra Putin, é necessário sentar e negociar", escreve Pier Giorgio Ardeni, professor titular de Economia Política da Universidade de Bolonha, Itália, e Francesco Sylos Labini em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 24-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo um antigo aforismo atribuído a Ésquilo, “na guerra, a primeira vítima é a verdade”: nada de mais verdadeiro como temos visto nos últimos dois anos em que as mentiras em uníssono de políticos e da grande mídia não podem ser contadas. Se a realidade pode ser distorcida para convencer a opinião pública da adequação de certas escolhas políticas — um fenômeno a que já nos acostumamos — o problema torna-se dramático e perigoso quando a classe dirigente perde toda conexão com os fatos e passa a ser vítima do seu próprio autoconvencimento.
Logo após a invasão da Ucrânia as certezas contadas eram distintas: a Rússia, que tinha um PIB igual ao de Espanha, será rapidamente posta de joelhos pelas sanções e pela guerra econômica que os países do G7 estavam praticando contra ela; o exército russo está em condições desastrosas e sem tecnologia de ponta (para Von der Leyen os russos pegavam os chips das máquinas de lavar roubadas na Ucrânia); a saúde do presidente Putin está comprometida... Mas, mais de dois anos depois do fatídico dia 24 de fevereiro de 2022, o Fundo Monetário Internacional prevê uma taxa de crescimento da economia russa de 2,6% para 2024, enquanto a Alemanha, a força motriz da UE, está em recessão. Os russos já haviam se adaptado às sanções em 2014 e se preparado para serem autônomos nos setores da informática e bancários.
O exército russo está bem armado, abastecido e possui armas tecnologicamente avançadas, desde os mísseis hipersônicos aos instrumentos de guerra eletrônica.
Como destaca o sociólogo Emmanuel Todd no recente ensaio La sconfitta dell’Occidente (Gallimard) é a indústria militar ocidental que está em falta e incapaz de garantir o abastecimento para a Ucrânia. Às vésperas da guerra, o PIB da Rússia era inferior a 5% do PIB total dos G7. Um anão econômico e uma potência militar “pequena”, igual a um décimo daquela dos EUA, que se revelou capaz de produzir mais armas do que todo o Ocidente. Isso coloca um duplo problema: o primeiro ao exército ucraniano que perde a guerra devido à falta de recursos que o Ocidente não consegue fornecer, assim como de homens; o segundo é mais importante e devastador para a ciência econômica dominante que se descobre sem instrumentos conceituais para entender como é possível tal situação. Este é o ponto crucial: o turbocapitalismo financeiro pode ter condições de dominar o mercado virtual, mas a economia real, na qual também se baseia a economia de guerra, pode ser muito mais resiliente, como demonstrou aquela russa, diversificando as suas fontes e o seu comércio exterior.
Por fim, Putin parece estar em excelente forma física e política. O maciço consenso nas recentes eleições é devido a dois fatores determinantes: a diferença entre a Rússia atual e a que Putin tinha herdado de Yeltsin nos anos 1990 (devastada por uma profunda crise econômico-social, enquanto de 1999 o PIB per capita triplicou e o país saiu do fosso) e o renovado orgulho nacional russo, apoiado pela percepção generalizada de estar numa guerra existencial contra o Ocidente.
Em mais de dois anos, a guerra causou a morte de mais de meio milhão de soldados e a devastação de um país. A profunda incompreensão da realidade está tornando cada vez mais iminente o perigo de um conflito entre a OTAN e a Rússia, que poderá levar a uma guerra de aniquilação nuclear. Não há nenhuma reflexão pública sobre o fracasso da interpretação dos fatos básicos desde fevereiro de 2022 em diante. Letta, Draghi e Von der Leyen, para citar os mais conhecidos, nunca se encontraram na desconfortável posição de ter que explicar as razões da sua posição incorreta. Diante do fracasso narrativo inicial, estamos agora assistindo a uma mudança completa de narrativa: o exército russo, em vez de ser um bando de desesperados com pás para derrotar o inimigo no campo de batalha, tornou-se uma ameaça para toda a Europa. E, portanto, diz Charles Michel, é preciso “produzir mais armas e treinar soldados: se queremos a paz preparemo-nos para a guerra”. A guerra contra o país que tem o maior arsenal nuclear do planeta é uma evidente loucura, fato que ressalta mais uma vez a inadequação dessa classe dirigente.
Jeffrey Sachs, voz esclarecida, destaca um ponto muito simples: em vez de relançar a cada oportunidade a retórica contra a Rússia e contra Putin, é necessário sentar e negociar.
Gostemos ou não da contraparte, não somos nós que a escolhemos. Tudo foi dito e feito pelos governos ocidentais nos últimos dois anos, exceto por esse passo óbvio. Na verdade, como lembra entre outros o ex-primeiro-ministro israelense Naftali Bennett, foi o Ocidente, e em particular Boris Johnson, quem fez fracassar o acordo entre Rússia e Ucrânia na Turquia em março de 2022. Dois anos terríveis se passaram, chegou a hora de dizer basta a essa loucura.
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Você quer paz? Não prepare a guerra, mas as negociações. Artigo de Pier Giorgio Ardeni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU