15 Março 2024
"A revolução é feminina" é o título deste artigo do líder histórico do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, Abdullah Öcalan, escrito na prisão turca de Imrali e que foi publicado simultaneamente por Il Manifesto e GARA, em 09-03-2010. O político e intelectual curdo continua preso na Turquia, condenado à prisão perpétua. Seu pensamento, porém, não está aprisionado. Devido à sua importância, reproduzimos este texto.
Em sua avaliação, “na formação de uma nova civilização, a liberdade da mulher é fundamental para a realização da igualdade. Diferente das experiências do socialismo real ou das lutas pela libertação nacional, considero a libertação da mulher mais importante do que a libertação de classe ou da nação”.
O artigo é publicado por Naiz, 09-03-2024. A tradução é do Cepat.
Refletir sobre a questão dos direitos da mulher e escrever a seu respeito significa pôr em questão toda a história e toda a sociedade, pois a exploração sistemática da mulher alcançou dimensões inigualáveis.
Observada sob esta perspectiva, a história da civilização pode ser definida como uma história de perdas para a mulher. No curso desta história, impôs-se a personalidade patriarcal do homem. Com grandes perdas para toda a sociedade, o resultado foi uma sociedade sexista.
O sexismo é um instrumento de poder e, ao mesmo tempo, uma arma utilizada no curso da história de forma permanente em todos os sistemas da civilização. De fato, nenhum outro grupo social foi em algum momento explorado fisicamente e psicologicamente como as mulheres. A multiplicidade de exploração da mulher é evidente.
A mulher gera descendência. Serve como força de trabalho gratuita. Tocam a ela aqueles trabalhos que ninguém quer fazer. É uma escrava obediente. É objeto permanente de avidez sexual. É utilizada para fins publicitários. É a rainha de todas as mercadorias. Constrói a base sobre a qual o homem produz e reproduz o seu poder como instrumento de violência contínua. É por isso que os 5.000 anos de história da civilização também podem ser descritos como uma “cultura da violência”.
Na era do capitalismo, o sexismo é utilizado como instrumento ideológico de forma particularmente pérfida. O capitalismo, que herdou a sociedade sexista, não se contenta em utilizar a mulher como força de trabalho gratuita no lar. Transforma-a em objeto sexual e a reduz a mercadoria para colocá-la à venda no mercado.
Enquanto o homem vende apenas a sua força de trabalho, a mulher é completamente reduzida a uma mercadoria, seja no plano físico ou no psicológico. O sistema confere um papel estratégico ao domínio sobre a mulher no tocante à ampliação da exploração e do poder. Expandindo subsequentemente a repressão tradicional da mulher, cada homem se transforma em um sócio do poder. A sociedade é, portanto, golpeada pela síndrome da expansão total do poder.
A condição da mulher confere à sociedade patriarcal um sentido do conceito de poder sem limites. Considerar a mulher como o sexo biologicamente imperfeito é pura ideologia e uma herança da mentalidade patriarcal. Esta doutrina é parte essencial de todas as tentativas científicas, éticas e políticas de apresentar a sua condição como natural. O triste é que a própria mulher também está acostumada a aceitar este paradigma como verdade.
A natureza e a sacralidade desta condição de suposta inferioridade condicionam o seu pensamento e comportamento. Assim, devemos ter sempre presente o fato de que nenhum povo, nenhuma classe e nenhuma nação foram sistematicamente escravizados como a mulher.
Habituando a mulher à escravidão, estabeleceram-se hierarquias e se abriu o caminho à escravização de outras partes da sociedade. A escravidão do homem só veio após a escravidão da mulher. A diferença entre a escravidão fundada no sexo e a escravidão de uma classe e de uma nação reside no fato de ser garantida, além de por uma repressão em massa e sutil, também por falsidades com uma forte carga emocional.
Originalmente, a propagação da escravidão da mulher para toda a sociedade preparou o caminho para todos os outros tipos de hierarquias e estruturas estatais. Isto foi devastador não só para a mulher, mas também para toda a sociedade, exceto para um pequeno grupo de forças hierárquicas e estatais.
Por esta razão, nenhum caminho leva a uma crítica profunda à ideologia patriarcal e às instituições que estão fundadas sobre ela. Um dos pilares mais importantes deste sistema é a instituição da família. Família concebida como um pequeno estado do homem. A importância da família no curso da história da civilização reside na força que ela confere aos dominadores e ao estamento estatal.
Uma família orientada para o domínio masculino, e daí a sua função como núcleo da sociedade estatal, garante que a mulher cumpra sem limites um trabalho não remunerado. Ao mesmo tempo, cria os filhos, satisfaz as necessidades estatais de uma população suficiente e é colocada como modelo para a propagação da escravidão em toda a sociedade.
Se a família não for entendida como um micromodelo de estado, não é possível analisar corretamente a civilização do Oriente Médio. O homem do Oriente Médio, que sofreu perdas em todas as frentes, rebela-se contra a mulher. Quanto mais é humilhado em público, mais descarrega seus impulsos agressivos contra a mulher. O homem que na esfera social permite que todos os seus valores sejam pisoteados, com os chamados “crimes de honra” busca apaziguar a sua ira descarregando-a sobre a mulher.
No que diz respeito às sociedades do Oriente Médio, devo acrescentar que as influências tradicionais da sociedade patriarcal e estatal não encontram uma síntese com as influências das formas modernas da civilização ocidental, mas antes formam um conjunto comparável a um nó górdio.
Analisar os conceitos de poder e domínio fazendo referência ao homem é muito difícil. Não é tanto a mulher que rejeita a mudança, mas, sim, o homem. Abandonar o papel de macho dominante faz com que o homem se sinta como um soberano que perdeu o seu estado. Devemos, pois, ensinar-lhe que é essa mesma forma vazia de domínio que lhe tira a liberdade e o faz ser um reacionário.
Análises deste tipo são muito mais do que simples observações teóricas, pois são de vital importância para a luta pela libertação curda. Consideramos a liberdade do povo curdo inseparável da libertação da mulher, por isso nos organizamos em consonância.
Se hoje a nossa aspiração à liberdade não está destruída, apesar dos ataques das potências imperialistas e das forças reacionárias locais, devemos isso inestimavelmente ao Movimento de Libertação da Mulher e à consciência que se criou a partir dele. Para nós, sem a mulher livre não pode haver um Curdistão livre.
Esta visão filosófica e social não é de forma alguma uma manobra tática e política para manter a mulher ligada à luta. Nosso objetivo é a construção de uma sociedade democrática que se dê através de uma mudança do homem. Analisando a práxis da luta desenvolvida por nós até agora, penso que passamos a compreender o homem viciado, despótico, opressor e explorador da sociedade patriarcal.
Esta foi a resposta mais adequada na busca pela liberdade da mulher que consegui encontrar: compreender o homem patriarcal, analisá-lo e ‘matá-lo’. Gostaria de dar um novo passo à frente. Tentarei delinear a personalidade de um homem novo, amante da paz. Analisar e ‘matar’ o homem clássico para aplainar o caminho para o amor e a paz. Neste sentido, considero-me um trabalhador na luta pela libertação da mulher.
A contraposição entre os sexos representa a contraposição mais importante do século XXI. Sem a luta contra a ideologia e a moral do patriarcado, contra a sua influência na sociedade e contra os indivíduos patriarcais, não podemos alcançar uma vida livre, nem construir uma sociedade verdadeiramente democrática e, assim, realizar o socialismo.
Os povos não só almejam a democracia, mas também uma sociedade democrática, sem sexismo. Sem a igualdade entre os sexos, todo pedido de liberdade e igualdade é sem sentido e ilusório. Assim como os povos têm direito à autodeterminação, as mulheres também devem determinar por si mesmas o seu próprio destino. É uma questão que não podemos deixar de lado, nem postergar.
Ao contrário, na formação de uma nova civilização, a liberdade da mulher é fundamental para a realização da igualdade. Diferente das experiências do socialismo real ou das lutas pela libertação nacional, considero a libertação da mulher mais importante do que a libertação de classe ou da nação.
A partir da experiência de nossa luta, sei que quando o movimento de libertação da mulher entra no campo da política, enfrenta oposições extremamente ferozes. No entanto, se não vence no âmbito político, não pode obter qualquer resultado duradouro.
Vencer no campo político não significa que a mulher tome o poder. Ao contrário, significa a luta contra as estruturas estatais e hierárquicas, significa a criação de estruturas que não sejam orientadas para um estado, mas que conduzam a uma sociedade democrática e ecológica, com a liberdade de ambos os sexos. Desta forma, não só a mulher ganhará, mas também toda a humanidade.
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A revolução é feminina. Artigo de Addullah Öcalan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU