Pesquisadora chama atenção para a violência psicológica que, sem a devida atenção, se converte em violência física e até feminicídio
A taxa de feminicídio "do Brasil é uma das mais altas do mundo e chega a ser três vezes maior que a taxa das Américas”. Esta observação é da pesquisadora Nádia Machado de Vasconcelos, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Médica, ela trabalha na área de violência contra a mulher e é enfática ao descrever o que significa sermos o quinto país do mundo em feminicídios: “não existe outra interpretação para esses dados: o Brasil é um dos países mais inseguros para as mulheres”.
Nádia considera que “o machismo estrutural e uma sociedade patriarcal” são tristes ingredientes culturais que sustentam estes números. Assim, muitas vezes os assédios e a violência psicológica contra as mulheres emergem como algo corriqueiro, ignorado por muitos. “A população costuma naturalizar a violência psicológica, muitas vezes feita na forma de ‘brincadeiras’ ou ‘comentários inofensivos’ e que são rapidamente descartadas como violência com pedidos de desculpas, pois ‘não precisa levar tudo tão a sério’”, analisa.
O problema é que onde germina a violência psicológica há um terreno fértil para que cresça também a violência física, podendo ainda chegar a mortes. “Em números absolutos, em 2022 ocorreram 1.437 feminicídios, o que significa que quase quatro mulheres morrem todos os dias no país pelo simples fato de serem mulheres”, acrescenta a pesquisadora.
Diante deste cenário complexo, não existem soluções fáceis. Mas Nádia enfatiza que a educação e políticas públicas têm centralidade neste processo. “A violência não costuma ser episódica, ela está presente no cotidiano e por isso a mulher precisa de apoio para ser capaz de se desvincular do agressor. Logicamente, os agressores precisam ser punidos. Mas isso não é suficiente. Essas mulheres precisam de independência financeira, de educação, de moradia, de assistência médica e social”, sintetiza.
Nádia Machado de Vasconcelos | Foto: Acervo pessoal
Nádia Machado de Vasconcelos é formada em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, com residência médica em Ginecologia e Obstetrícia pelo Instituto de Previdência dos Servidores de Minas Gerais e especialização em Ultrassonografia em Ginecologia e Obstetrícia pelo Centro de Ensino em Tomografia, Ressonância e Ultrassonografia. Trabalha como médica plantonista em Ginecologia e Obstetrícia no Hospital Municipal Odilon Behrens, em Belo Horizonte, onde atende no Ambulatório de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual. Possui mestrado em Saúde Pública pela Faculdade de Medicina da UFMG, onde atualmente cursa doutorado no PPG de Saúde Pública.
A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 12-12-2023.
IHU – Segundo a sua pesquisa, a violência psicológica contra a mulher é subnotificada em até 98,5% em todo o país. Como define violência psicológica?
Nádia Machado de Vasconcelos – A violência psicológica pode ser entendida como qualquer conduta que cause um dano emocional ou diminua a autoestima da pessoa violentada. Contra as mulheres, ela geralmente surge como ameaças, constrangimentos, humilhação, ridicularização e insultos. Mas pode acontecer também na forma de perseguição, vigilância constante, chantagem e manipulação emocional.
IHU – Como interpreta este dado de subnotificação no contexto brasileiro?
Nádia Machado de Vasconcelos – No nosso país, temos o machismo estrutural e uma sociedade patriarcal. A população costuma naturalizar a violência psicológica, muitas vezes feita na forma de “brincadeiras” ou “comentários inofensivos” e que são rapidamente descartadas como violência com pedidos de desculpas, pois “não precisa levar tudo tão a sério”. Dessa forma, a subnotificação acontece porque não se tem um ensinamento da gravidade desse tipo de violência, que muitas vezes pode ser desconsiderada pelos profissionais de saúde que atendem uma mulher violentada.
Além disso, a saúde no Brasil ainda é muito pautada no modelo biomédico. A mulher é diagnosticada com ansiedade, depressão e medicada. Mas dificilmente irão tentar investigar a raiz desses transtornos e perceber que, na verdade, o que a mulher tem são consequências da convivência com a violência psicológica.
IHU – Qual é o perfil das mulheres que sofrem violência psicológica e em quais ambientes este tipo de violência é praticado com mais recorrência?
Nádia Machado de Vasconcelos – A violência psicológica, como todas as outras, é praticada principalmente pelos companheiros e ex-companheiros das mulheres no ambiente doméstico. São mulheres que estão em relacionamentos tóxicos, em que o parceiro se sente no direito de controlar sua vida. Mulheres impedidas de estudar ou trabalhar fora de casa, que são vigiadas em suas relações com amigos e familiares e que se mantêm dependentes de seus parceiros.
Um dado muito interessante é que as mulheres em processo de dissolução de relacionamentos sofrem mais violência psicológica. Isso mostra que os parceiros muitas vezes não aceitam o fim daquele relacionamento e passam a ameaçar, humilhar ou perseguir a mulher, o que dificulta a saída dela do ciclo de violência em que se encontra.
IHU – Por outro lado, a pesquisa indica que 75,9% dos casos de violência física e 89,4% da violência sexual são subnotificados. Como interpreta estes dados e a que atribui a subnotificação?
Nádia Machado de Vasconcelos – A menor subnotificação da violência física provavelmente é explicada pelo fato de ela ser a mais visível das violências. São agressões que deixam roxos, machucados, levam a cortes ou mesmo fraturas. Dessa forma, os profissionais de saúde devem conseguir diagnosticar de forma mais rápida e fácil essa violência. Mesmo assim, é chocante que apenas 25% delas sejam notificadas.
Para a violência sexual, imaginamos que as mulheres relatem de forma mais clara os episódios. Afinal, elas geralmente procuram atendimento em saúde com urgência pelo medo das consequências: as infecções sexualmente transmissíveis e, especialmente, uma gestação indesejada. Dessa forma, os profissionais de saúde, por precisarem seguir protocolos específicos para dispensar as medicações de profilaxia, acabam por se atentarem mais para a notificação.
IHU – Em quais regiões do país se concentram os maiores índices de violência e subnotificação?
Nádia Machado de Vasconcelos – Norte e Nordeste são as regiões que sistematicamente mostram os maiores índices de violência, não apenas contra as mulheres, mas também outras minorias sociais. No nosso estudo, achamos que os estados dessas duas regiões também são os com maiores índices de subnotificação. Isto mostra que tais regiões ainda precisam de muito investimento para avançar na vigilância e promoção da cultura de paz.
IHU – O Brasil é o quinto país na classificação mundial de homicídios de mulheres. O que isso significa e indica?
Nádia Machado de Vasconcelos – A taxa de homicídio do Brasil é uma das mais altas do mundo e chega a ser três vezes maior que a taxa das Américas. Em números absolutos, em 2022 ocorreram 1.437 feminicídios, o que significa que quase quatro mulheres morrem todos os dias no país pelo simples fato de serem mulheres. São mortas dentro de casa, por seus companheiros e familiares, pela escalada de uma violência doméstica que muitas vezes começa como violência psicológica, mas que não é vista ou valorizada.
Feminicídio: Policial militar dá socos em esposa e assassina a mulher a tiros em rua de São Paulo (vídeo)https://t.co/XVHFF8ikRW
— Brasil 247 (@brasil247) December 4, 2023
Não existe outra interpretação para estes dados: o Brasil é um dos países mais inseguros para as mulheres no mundo. Aqui, mulheres morrem por conta de um desprezo enraizado à condição feminina. Elas são mortas como uma forma de reafirmação de controle, como punição por comportamentos considerados inaceitáveis ou moralmente inadequados.
IHU – Como o Sistema de Saúde brasileiro tem assistido às mulheres vítimas de violência? Quais os avanços e desafios nesse sentido?
Nádia Machado de Vasconcelos – Desde muito, os profissionais de saúde já lidavam diariamente com as consequências físicas da violência, como lesões, traumas e fraturas. Mas foi a partir de 2003 que o tema da violência contra as mulheres se tornou prioritário para o Estado, concomitante com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres. De lá para cá, foram feitas inúmeras portarias e leis.
Em 2011, a notificação da violência contra as mulheres se tornou compulsória e no mesmo ano foi lançada a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que formulou o atendimento em rede intersetorial. Além disso, em 2013 houve uma legislação para o atendimento das mulheres vítimas de violência nos equipamentos do Sistema Único de Saúde – SUS.
Nós tivemos alguns retrocessos no último período, mas esse ano já vimos alguns novos avanços, principalmente na tentativa de melhorar o acesso das mulheres vítimas de violência sexual ao aborto legal.
Os desafios são inúmeros. Conhecer a violência é um deles. Se não há notificação da violência, como poderemos criar Políticas Públicas eficazes voltadas para quem mais precisa? A ficha de notificação traz muitas informações fundamentais para se desenhar um perfil das mulheres que sofrem violência no país. Ela precisa ser preenchida com qualidade por todos os profissionais de todos os níveis de atenção.
IHU – Que atores sociais podem contribuir para o enfrentamento da violência contra as mulheres, trabalhando com as vítimas e os agressores?
Nádia Machado de Vasconcelos – A violência contra as mulheres é multifacetada e complexa. Como tal, precisa de articulação para seu real enfrentamento. A violência não costuma ser episódica, ela está presente no cotidiano e por isso a mulher precisa de apoio para ser capaz de se desvincular do agressor. Logicamente, os agressores precisam ser punidos. Mas isso não é suficiente. Essas mulheres precisam de independência financeira, de educação, de moradia, de assistência médica e social...
A sociedade precisa se unir e se movimentar a favor do fim desse tipo de violência. Precisamos de medidas protetivas, de cursos profissionalizantes, de vagas de emprego, de moradia social, creche, cesta básica.
E precisamos também educar os agressores. Para que eles entendam a gravidade do crime que cometeram e para que não voltem a cometê-lo. Precisamos educar nossa população para o respeito às mulheres e seus corpos. Precisamos realmente viver em uma sociedade com cultura de paz.