19 Fevereiro 2024
A socióloga franco-israelense Eva Illouz (Fez, 1961) é uma renomada intelectual judia de esquerda. Conhecida pelos seus ensaios sobre o amor e as relações afetivas no século XXI, dedicou o seu último livro, La vida emocional del populismo – publicado no ano passado, na Espanha, por Katz Editores –, aos afetos que alimentam o populismo de direita e à forma como Israel se tornou um laboratório para isso.
Muito crítica ao primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, esta professora da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, em Paris, analisa a situação atual da guerra devastadora em Gaza, que já causou a morte de mais de 27.000 palestinos e 1.200 israelenses. “Em nível internacional, esta resposta militar está sendo um desastre para Israel”, lembrou Illouz, durante uma extensa conversa em um café de Paris.
A entrevista é de Enric Bonet, publicada por Ctxt, 15-02-2024. A tradução é do Cepat.
Quatro meses após o início da guerra em Gaza, como analisa este conflito sangrento entre israelenses e palestinos?
Os avanços militares de Israel foram poucos: só conseguiu destruir 20% dos túneis e não está claro qual é o número de combatentes do Hamas que foram abatidos. De fato, desconhece-se a diferença entre o número de milicianos e civis mortos. Contudo, não há dúvida alguma a respeito do alto número de civis de Gaza que perderam a vida, embora o Hamas não seja uma fonte confiável. Este conflito está sendo uma catástrofe humanitária para Gaza.
Soma-se a isso a decisão do Tribunal Penal Internacional, em 26 de janeiro…
Sim, exato. A nível internacional, esta resposta militar está sendo um desastre para Israel. Embora o Tribunal Penal Internacional não tenha pedido uma interrupção dos combates, a palavra genocídio ficou associada ao nome de Israel. De momento, o governo de Netanyahu realiza uma guerra catastrófica, tanto para os habitantes de Gaza como para os israelenses.
O todo-poderoso exército israelense tem grandes dificuldades neste conflito. Por qual motivo?
Em primeiro lugar, porque não é nada fácil distinguir entre os habitantes de Gaza que fazem parte do Hamas e aqueles que não. Todos aqueles que não portam armas, mas recebem um salário do Hamas fazem parte do Hamas? Boa parte dos líderes da organização palestina estão no estrangeiro e esta dispõe de centenas de túneis, onde os combates são muito difíceis. Após meses de bombardeios e 29.000 bombas lançadas, apenas 20% dos túneis foram destruídos.
E não se pode descartar que se as forças armadas israelenses destruírem o Hamas, ocorrerá uma situação ainda mais caótica em Gaza, como aconteceu no Iraque com a queda de Saddam Hussein e o surgimento do Estado Islâmico. De fato, a hipótese de que possam surgir facções ainda mais radicais e extremistas do que o Hamas não é inadmissível.
Durante uma entrevista que você concedeu para a revista ‘Le Grand Continent’, logo após o dia 7 de outubro, afirmou que “dois campos se formarão rapidamente em Israel. Por um lado, aqueles que acusam o governo (de Netanyahu) como responsável. Por outro, aqueles que vão querer devolver Gaza à idade da pedra”. Qual destes dois campos é, atualmente, majoritário em Israel?
Estes dois campos deixaram de ser contraditórios em Israel. Seus habitantes podem desejar que Netanyahu saia e que Gaza deixe de ser uma ameaça para eles, mesmo que isto implique a destruição total da Faixa. Apesar disso, há grandes contradições na opinião pública israelense, sobretudo por causa dos reféns.
O governo não parece fazer grande coisa para libertá-los. Netanyahu, inclusive, colocou em risco as negociações acusando o Catar de fomentar a guerra. Os anti-Netanyahu são os que mais pressionam o Executivo para que faça tudo o que estiver a seu alcance para conseguir a sua libertação. Embora este setor seja atualmente maioritário, é muito responsável e pacífico para mudar a situação em Israel da única forma possível: através da força.
Quais serão as repercussões desta guerra na política interna de Israel? O conflito está enfraquecendo ou fortalecendo Netanyahu?
Todo mundo diz em Israel que Netanyahu está com os seus dias contados, mas o primeiro-ministro israelense é como o malvado dos filmes de terror: quando se pensa que está morto, ressuscita no último momento. Sempre sabe se aproveitar dos momentos mais difíceis.
Netanyahu é responsável criminalmente e deveria renunciar. Contudo, permanece no poder mais arrogante e mentiroso do que nunca e cheio de ódio. Seu caso deveria servir de exemplo para o restante dos povos: quando se elege um populista, ele destrói o seu país.
E a parte secular de Israel que se opõe a Netanyahu também é a favor de uma solução política que permita uma paz duradoura?
Atualmente, a solução de um só Estado plurinacional compartilhado entre israelenses e palestinos me parece uma utopia irrealizável. Já era uma opção muito complicada antes, mas agora me parece praticamente impossível. O ódio e as feridas que existem entre israelenses e palestinos são tão importantes que as respectivas populações não serão capazes de superar as desconfianças mútuas.
Penso que a única solução viável neste momento é a de dois Estados. Contudo, como criar as condições em campo? Parece-me muito difícil. A população israelense está traumatizada e pedirá garantias de segurança muito importantes. Há colonos judeus nos territórios palestinos ocupados, mas também há organizações palestinas, como o Hamas, que se aproveitam da situação atual e preferem o contexto de guerra, em vez da paz. A guerra beneficia os extremistas dos dois lados.
Sua análise é realmente pessimista...
Sim, estou muito pessimista, a menos que a comunidade internacional aja de forma coordenada e exija uma solução política realista que respeite os traumas de ambos os lados. Deveria funcionar como uma espécie de deus ex machina.
Os atentados de 7 de outubro refletiram o fracasso da estratégia de Netanyahu que pretendia administrar a situação só pela força e com um conflito permanente de baixa intensidade. Será que o fracasso militar de Israel, em 7 de outubro, e o fato de a imagem do país ter sido fortemente enfraquecida poderão propiciar uma reflexão lúcida na sociedade e a aceitação de uma solução política?
Receio e lamento que esteja acontecendo totalmente o contrário. A maioria dos israelenses pensa mais do que nunca que só a força pode ajudá-los. Antes de 7 de outubro, o governo israelense havia colaborado com o Hamas e havia permitido a entrada de dinheiro do Catar em Gaza, que foi utilizado para a compra de armas e a construção de túneis. Por isso, agora, muitos israelenses acreditam que só podem vencer esta guerra através do uso da força militar.
Contudo, mais de 27.000 palestinos morreram por causa deste conflito, uma parte de seus territórios está ocupada, seus habitantes não podem se deslocar livremente... Quais podem ser as consequências desta insistência israelense no uso da força?
Israel tem uma doutrina militar segundo a qual deve reagir ao ataque do inimigo com grande dureza, com o objetivo de que não se atreva a atacar novamente. Atualmente, no entanto, está travando outro tipo de guerra.
Penso que uma parte dos israelenses quer vencer este conflito que já dura mais de um século e que não consegue vencer completamente. Para eles, representa uma guerra muito mais relevante do que outras do passado.
Dirigentes da ultradireita falam sem subterfúgios de uma segunda Nakba – referência à expulsão dos palestinos de suas terras, em 1948. Eles só querem vencer esta guerra e não consideram qualquer solução política.
Em seu livro ‘La vida emocional del populismo’, destaca que Israel não é uma democracia como as outras, mas, sim, uma democracia securitária. Também afirma que o Estado de Israel se tornou um laboratório para o populismo de direita.
Israel enfrenta o islamismo radical de forma muito mais direta do que os países ocidentais. É um país onde a relação entre a maioria e a minoria é muito mais acentuada, uma vez que a minoria árabe representa cerca de 20% da população israelense e é uma população autóctone. O medo está muito mais presente no Estado de Israel do que nos países europeus.
Não obstante, líderes de ultradireita como o neerlandês Geert Wilders, o francês Éric Zemmour e a italiana Giorgia Meloni querem estabelecer um sentimento parecido em seus respectivos países, ou seja, o sentimento de que os bárbaros estão às portas da Europa e que estão entre nós. Pretendem recriar uma situação parecida à de Israel, um país cercado por Estados inimigos e que se tornou um laboratório do populismo de direita. Tudo isto fez com que na democracia israelense a segurança tenha substituído a política
Soma-se a isto o supremacismo judeu reivindicado pelo atual governo de Israel, o mais direitista na história do país.
Sim, exato. Netanyahu defende que Israel só pertence aos judeus, da mesma forma que Zemmour e Le Pen afirmam que a França só pertence aos franceses e o trumpista David Duke (ex-líder da Ku Klux Klan) afirma que os Estados Unidos pertencem aos brancos e aos cristãos. Em Israel existe uma imbricação entre religião, nacionalismo e Estado.
Durante as primeiras décadas após a criação do Estado de Israel, a ideia de uma nação judaica havia estado muito mais vinculada a uma cultura democrática, mas Netanyahu reforçou o supremacismo judeu. E este mesmo supremacismo nacionalista está se expandindo agora no restante das democracias ocidentais.
Como este modelo de “democracia securitária” está irradiando no restante dos países ocidentais?
Provavelmente, de modo menos evidente do que em Israel, mas em países como a França, Países Baixos e Reino Unido há um sentimento crescente de insegurança, que a direita e a ultradireita instrumentalizam. Ambas alimentam a ideia de que as suas respectivas nações e a Europa enfrentam uma ameaça existencial.
Uma parte dos debates públicos refletem esta tendência “securitária”. Por exemplo, na França, com todas os debates que existem sobre o modo como controlar as pessoas autuadas por radicalismo. Contudo, também acontece algo parecido no Reino Unido, onde desde 2016 existem pesquisas que mostram que 40% dos muçulmanos residentes em território britânico gostariam de viver sob a lei da Sharia.
Nas sociedades europeias, há uma fratura crescente em torno da religião e da segurança. Isto não corresponde de forma fidedigna ao eixo esquerda-direita, uma vez que uma parte dos eleitores de esquerda defende uma visão mais securitária do Estado. Não podemos esquecer que o islã político se infiltrou no seio das sociedades ocidentais, o que deveria nos preocupar.
O que você pensa do clima político que existe desde o 7 de outubro na França, onde há muita insistência em uma suposta “importação do conflito”?
Mais do que uma importação do conflito, penso que tem havido muito oportunismo político em França, especialmente por parte dos populistas de direita, mas também dos populistas de esquerda. De modo irônico e inclusive chocante, a direita e a ultradireita parecem ser as que estão mais dispostas a defender os judeus, já que isso confirma a sua narrativa de que o islã representa uma ameaça existencial.
Não tenho dúvida alguma de que se trata de uma posição temporária e oportunista e que o antissemitismo de direita reaparecerá. No entanto, também houve oportunismo por parte da esquerda de Jean-Luc Mélenchon, que não demonstrou qualquer forma de empatia para com Israel, em 7 de outubro, em prol de seduzir o eleitorado muçulmano.
Você parece decepcionada com a posição da esquerda acerca deste conflito...
A reação mundial de uma parte da esquerda, após os atentados de 7 de outubro, foi para mim um verdadeiro choque moral e político. Penso que representará um ponto de inflexão nas relações entre os judeus e a esquerda. Em um mundo normal, deveria haver um consenso entre a esquerda e a direita para denunciar os crimes contra a humanidade, mas muitas pessoas da esquerda não denunciaram os massacres de 7 de outubro e, inclusive, alegraram-se com eles. Isto ficará marcado em nossa memória coletiva.
Tentem imaginar um grande massacre de ucranianos pela Rússia e que uma parte da esquerda se alegrasse com isso. Seria chocante, mas foi isto que vivemos depois do 7 de outubro. S durante ao menos uma semana, nós os tivéssemos ouvido condenar os horrores perpetrados naquele dia e se solidarizar com a dor das famílias das vítimas, e que depois denunciassem a resposta israelense, eu teria compreendido essa posição. Contudo, não foi isto que aconteceu. A esquerda nos traiu e também traiu a si mesma.
No entanto, não é excessivo acusar uma parte da esquerda de antissemitismo? Talvez alguns de seus representantes tenham falhado em não demonstrar empatia pelos civis israelenses assassinados em 7 de outubro, mas suas críticas a Israel se devem a motivos políticos, não religiosos.
Em primeiro lugar, parece-me que o antissionismo não é legítimo. Tenho dificuldades em entender por qual motivo os palestinos e os jordanianos têm direito a um Estado e não os judeus. Se é feita uma exceção aos judeus, considero que isso se deve ao antissemitismo.
Sou a primeira a pensar que o atual governo israelense é composto por alguns cretinos e que alguns de seus dirigentes são fascistas, mas o fato de que há 20 ou 30 anos a palavra sionista tenha se tornado um insulto é fruto da propaganda islamo-antissemita. E uma parte da esquerda sofre certa miopia em relação aos discursos islâmicos.
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“Netanyahu reforçou o supremacismo judeu”. Entrevista com Eva Illouz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU