06 Fevereiro 2024
"Se uma única letra, quase imperceptível, marca a diferença gráfica entre “domicídio” e domicílio, é imenso o abismo que divide essas palavras da realidade que indicam: uma se torna a negação da outra. O “domicídio” representa a distorção de um espaço que é acima de tudo o lugar da alma", escreve Donatella Puliga, pesquisadora italiana, em artigo publicado por La Lettura, 28-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O território do indizível é por natureza habitado pelo silêncio: acontece no amor como no seu oposto, o horror. Quando as atrocidades se espalham para além do pensável, as palavras já não bastam mais. Então inventamos novas, tentando chamar pelo nome – talvez para melhor governá-las na mente – as imagens que abarrotam sem trégua as nossas telas: televisões, PCs e smartphones.
É aqui que nasce o “domicídio”.
A casa, que havia surgido como refúgio contra a lei do mais forte, como lugar de proteção à qual entregar a própria nudez, torna-se objeto de um reiterado exercício de destruição, segundo um projeto de insensata desertificação. O que para os nossos olhos em progressiva anestesia é uma pilha de escombros, para outros era a vida: para a mulher que corre como uma vestal aterrorizada pelas escadas de um prédio destruído por bombas; para o pai que cava com as próprias mãos entre os escombros de sua própria habitação na busca desesperada de um sopro de vida; para a criança encurralada sob as vigas de um telhado que desmoronou sobre os seus sonhos; para o idoso, desorientado guardião de memórias infringidas.
“Domicídio” é a nova palavra deste primeiro tempo do novo ano. Palavra tão afiada quanto uma espada, palavra em que o primeiro elemento (domus) retorna a imagem da casa e do abrigo, enquanto o segundo (do verbo latino caedo) nos fala do seu oposto antropológico: a aniquilação, a destruição, o massacre. A matança.
É possível matar uma casa? Dois estudiosos estadunidenses se perguntaram isso já no início do nosso século (J. Douglas Porteous e Sandra E. Smith, autores de Domicide: The Global Destruction of Home, McGill-Queen's University Press, 2001), debruçando-se sobre as complexas redes de significado que se entrelaçam com a imagem da casa, um mundo que justamente em virtude dessa complexidade pode ser objeto de estudo ao mesmo tempo que a história, a arquitetura, a antropologia, a psicologia ambiental, a gerontologia, as ciências da educação.
A memória retorna às grandes destruições de casas e cidades já durante a história da Roma antiga, aquelas que enriqueciam o nosso léxico latino com um dos advérbios mais cruéis: funditus, desde as fundações. Desde as fundações foram destruídas Cartago e Corinto em 146 a.C., Numância em 133 a.C., Alésia em 52 a.C., Jerusalém em 70 d.C. E, para mencionar apenas algumas das mais próximas no tempo, Guernica em 1937, Dresden em 1945. Só muito recentemente, porém, o “domicídio” despontou no limiar da reflexão pública e política: pelo menos na Europa que - em perfeito alinhamento com o resto do mundo - parece assistir cada vez mais impotente, alternando miopias e presbiopias políticas, à destruição de cidades inteiras na Ucrânia, à demolição de assentamentos dos Rohingya em Mianmar (ou seja, a Birmânia), até àquela das habitações de Aleppo e Homs (à devastação síria dedicou um ensaio, publicado no ano passado pela Ava Pub Sa, Ammar Azzouz, pesquisador da Universidade de Oxford: Domicide: Architecture, War and the Destruction of Home in Syria) e, por último mas só por ordem temporal, o extermínio das casas de Gaza. O termo extermínio não deveria parecer inapropriado, no momento em que celebramos o Dia da Memória, a libertação do campo de Auschwitz em 27 de janeiro de 1945: “domicídio” e genocídio não estão ligados apenas por uma rima macabra; o parentesco entre esses dois termos está mais na substância.
Realizar assassinatos em massa e destruir, tornando inabitáveis os territórios, os lugares e espaços onde existências e culturas criaram raízes, deveriam ser considerados - ambos - crimes contra humanidade.
Essa foi a posição reiterada no dia 11 de dezembro por Balakrishnan Rajagopal, docente de Direito e Desenvolvimento no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Relator Especial das Nações Unidas sobre Direito à moradia, que reaproveitou de um relatório para Assembleia Geral da ONU (já o tinha feito em uma intervenção de outubro de 2022) precisamente o termo “domicídio” para se referir àqueles ataques sistemáticos e generalizados contra habitações e infraestruturas civis, e que acrescentam à morte das pessoas o desvalor da demolição de casas. “A destruição das habitações em Gaza foi de tamanha dimensão – disse Rajagopal – que nunca o tínhamos visto em nenhum conflito recente, incluindo aqueles na Síria e na Ucrânia".
Ao mesmo tempo, cresce a discussão sobre a falta de legislação que permita a punição do “domicídio” como crime contra a humanidade e o torne processável pelo direito internacional justamente como o recurso sistemático aos estupros e à tortura.
Se uma única letra, quase imperceptível, marca a diferença gráfica entre “domicídio” e domicílio, é imenso o abismo que divide essas palavras da realidade que indicam: uma se torna a negação da outra. O “domicídio” representa a distorção de um espaço que é acima de tudo o lugar da alma. De fato, se existe uma definição estreita e míope da casa, é aquela de “bem imóvel": nela, ao contrário, palpita a vida, o movimento, tomam forma dinâmica o sentido de pertencimento e a identidade - nutrida pela diferença - das pessoas que as habitam, e o eu torna-se o milagre do tu.
É, portanto, extremamente paradoxal o fato de que, embora em demasiados lugares se sacraliza a fronteira no plano político, ao mesmo tempo se aceite a violação, até à aniquilação, no plano da “banal” vida cotidiana: aquela que às paredes (e não aos muros) da casa pede acolhimento e abrigo, proteção do tempo interior e do tempo anterior, feito de lembranças doces e amargas, todas elas de qualquer maneira caras. Construir e habitar uma casa (o verbo habito, forma intensiva de habeo, indica uma ação muito mais articulada do que simplesmente possuir e ocupar) significa fazer dela um lugar da vida, afastada de toda abstração: significa intervir conscientemente sobre a existência nua, antropizando-a, dar uma curvatura à dimensão espacial que temos ao nosso redor.
A habitação é justamente o sinal dessa dinâmica: todo o humano, todo o vivente, nela pode receber acolhimento. Olhar para a sua estrutura, para a sua lei (a sua oiko-nomia) e no quanto nela se reúne é, portanto, vislumbrar o próprio rosto daquele que ali fixou morada. Mas esse olhar é, em vez disso, tornado impossível pela violência da guerra que apaga os traços do humano. Porque ser verdadeiramente homens e mulheres coincide com ser habitantes: em primeiro lugar da terra, casa da humanidade, e depois de alguma forma de casa, seja ela móvel, frágil, precária como a tenda ou estável, luxuosa, fortificada, como o palácio. Não é por acaso que até mesmo os deuses, no pensamento mitológico antigo, são definidos como habitantes, aqueles que ocupam as moradas sagradas do Olimpo.
Se o espaço externo mantém contornos indistintos e em todo caso inseguros, o espaço da casa transmite (ou deveria transmitir) proteção e cuidado. A partir disso, torna-se possível o diálogo entre a permanência, centrada no fogo doméstico (real ou simbólico) que é o umbigo desse microcosmo, e o movimento, a passagem, a transição de elementos estranhos, os itinerários através do território. Os gregos também conceituaram isso: ao deus Hermes, mensageiro e soberano da comunicação e do comércio, das passagens e, portanto, do movimento, também haviam atribuído a função de vigia noturno, de cuidador das portas. Ora, essa dialética entre interior e exterior, entre fechado e aberto, constitui o espaço privilegiado em que toma morada (deixemo-nos acompanhar por essa metáfora) a dimensão da xenìa, a hospitalidade, uma categoria antropológica fundamental no pensamento antigo. E – obstinamo-nos em acreditar e esperar - não só naquele.
É a própria estrutura da casa, com as suas vias de acesso (portas, janelas, espaços abertos) que nos lembra a própria vocação estrutural: ser encruzilhada de caminhos. Como não é possível conceber a casa sem o seu habitante, da mesma forma é impensável o habitar solitário, sem portas e janelas de onde possa entrar e ser acolhida a alteridade, que é a própria vida que mora com o homem. Ser simultaneamente figuras da estabilidade e figuras do movimento é o desafio que hoje nos é posto pelas formas do habitar. Não só isso: também pelos fenômenos migratórios que cada vez mais nos questionam sobre o significado profundo do ato de deixar as próprias casas - quando existem - em busca de moradias que ofereçam abrigo mais seguro (em termos de oportunidades de trabalho, econômicas e existenciais) do que aquele oferecido pelos locais de origem.
A amargura do neologismo do qual partimos (“domicídio”), e que corre o risco de conquistar o triste primado de nova palavra de 2024, porém nos sugere um passo à frente e nos descortina uma possibilidade. Se todos os termos compostos com o dramático sufixo -cídio (genocídio, homicídio, feminicídio) nos falam do assassinato de pessoas, nem mesmo a casa (como - e isso é muito significativo - a liberdade) é exceção: também ela é um ser vivo. O que pode, portanto, transformar-se (e nos transformar) de algo que se tem, em algo que se é. Ser casa. É a força desse verbo que se torna um grito contra a violação, contra uma violência que cobre o rosto com o véu da dura necessidade, aquela que toda guerra reivindica como sua proteção. Ser casa para se rebelar contra a partilha do pão da crueldade, para salvar a nós mesmos e aos outros da dança macabra do desaparecimento.
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“Domicídio”. Artigo de Donatella Puliga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU