21 Dezembro 2023
Reforma tributária aprovada no Congresso mantém, até 2073, as vantagens competitivas das indústrias do Polo Industrial de Manaus, que têm mão de obra barata diante de outros mercados globais, e a ZFM é criticada por falta de uma política contra os desmatamentos, alerta o Banco Mundial.
A reportagem é de Tainá Aragão, publicada por Amazônia Real, 19-12-23.
Manaus é o quinto município mais rico do Brasil porque tem uma zona franca (ZFM) para chamar de sua. Herança da ditadura militar, a ZFM manterá seus privilégios fiscais pelas próximas cinco décadas. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma tributária foi aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, na sexta-feira (15), após passar pelo Senado, e agora segue para a promulgação do Executivo sem alterar a essência dos incentivos fiscais que favorecem a capital do Amazonas.
A ZFM, que faturou 130,8 bilhões de reais de janeiro a setembro de 2023, corria o risco de perder uma vantagem econômica com a reforma tributária. A ideia de simplificar o sistema nacional de tributação poderia representar uma perda de competitividade para os empresários do Polo Industrial de Manaus (PIM), caso eles tivessem de recolher impostos como em qualquer outro lugar do País.
Na PEC aprovada a toque de caixa, mas a partir de um pleito que se arrastou por 30 anos, o Congresso decidiu manter a isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) até 2073. A partir de 2027, o IPI continuará a incidir apenas sobre produtos fora da ZFM. Ou seja, continuará sendo vantagem para os empresários manterem a fabricação em Manaus de TVs, motocicletas, aparelhos de som, vídeo e de ar-condicionado, celulares, microcomputadores, chips e colchões, entre outros produtos.
A PEC 45/2019, relatada no Senado por Eduardo Braga (MDB-AM) e na Câmara pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), cria um Imposto Sobre Valor Agregado (IVA), uma cesta básica nacional isenta de taxas e um Imposto Seletivo. Serão, na verdade, dois IVAs, alíquota que se especula ficará em torno de 25% e será uma das maiores do mundo. Um unirá os impostos federais (PIS, Cofins e IPI) em torno da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e outro vai unificar taxações estaduais (ICMS) e municipais (ISS) para criar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
Caso o IPI fosse eliminado por completo, a ZFM, como área de livre comércio de importação e exportação, deixaria de ser atrativa para inúmeras companhias. A maioria delas migrou para a capital do Amazonas não com a intenção de proteger a floresta amazônica, mas para pagar menos impostos. Grandes companhias como Honda, BMW, Yamaha e Caloi têm plantas industriais em Manaus. Na discussão sobre a reforma, o senador amazonense Eduardo Braga tentou incluir a cobrança da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) para produtos de fora da ZFM, mas esse trecho foi retirado na discussão na Câmara dos Deputados, que preferiu manter o IPI para o PIM.
Desmatamento na região metropolitana de Manaus (Foto: Alberto César Araújo | Amazônia Real).
Em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo, de 2013, a pesquisadora Thaís Brianezi não poupa o discurso fatalista – e autoritário – que se criou em torno da manutenção da ZFM, que é administrada pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), uma autarquia subordinada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
“Um slogan possível, parafraseando os ditadores militares dos anos 1970, seria: ‘Zona Franca de Manaus’: ame-a ou deixe-a’”, afirmou em sua pesquisa. Brianezi mostra que o discurso em torno de uma área de livre comércio fincada na Amazônia passou do ideário de progresso preconizado pelos militares para o atual que prega o desenvolvimento sustentável. Nesse discurso vigente, as indústrias ali instaladas seriam responsáveis pela conservação florestal, já que estariam gerando empregos urbanos e evitariam a destruição das matas por pessoas que não teriam alternativa para se sustentar.
O cientista Philip Fearnside, uma das maiores autoridades mundiais nas discussões ambientais, contesta a ideia de que a ZFM diminua o desmatamento. Este continua em curso, por obra de grandes fazendeiros. “Este argumento não se sustenta, pois quem vem para Manaus para trabalhar nas fábricas geralmente são pessoas ou das pequenas cidades ao longo dos rios no interior do Estado ou de outros Estados. Essas não são os grupos que estão desmatando no Amazonas, onde quase todo o desmatamento está ocorrendo no sul do Estado, como mostra o mapa do desmatamento de 2023, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Nenhum fazendeiro de Apuí ou Lábrea vem para Manaus para trabalhar nas fábricas da ZFM”, ironiza.
Em artigo publicado na revista científica Environmental Conservation, em 2008, Fearnside já alertava que a urbanização acelerada da Amazônia não se deveu a um deslocamento migratório da população rural para as cidades, mas pela própria forma de classificar esses aglomerados. “O número de assentos municipais cresce continuamente porque há uma pressão constante para a criação de novos municípios, o que aumenta a representação política, os subsídios governamentais e posições lucrativas na folha de pagamento do governo (além de estimular o desmatamento)”, anotou.
Em fins dos anos 1960, a criação da ZFM fazia parte de um “conjunto de ações estruturantes para a região” planejada pelos militares, o que incluía abrir rodovias, construir hidrelétricas nos rios amazônicos, explorar à exaustão as commodities de gás, petróleo, minérios e madeira e incentivar a imigração em larga escala, dentro do contexto “integrar para não entregar”, como explicou o geógrafo e colunista da Amazônia Real, Carlos Durigan, em texto de 2014, quando já se discutia uma PEC para prorrogar os incentivos fiscais.
Durigan já indicava, naquela ocasião, que uma das maiores consequências da implementação de uma ZFM foi o crescimento populacional. No Censo de 1960, Manaus tinha uma população de 175.343 habitantes, saltando para 314.197 na década seguinte (já sob efeito dos planos militares para a região), mas nada comparável aos atuais 2.063.547, captados pelo Censo 2022.
Ao ano, a ZFM é beneficiada com uma isenção fiscal de 24 bilhões a 26 bilhões de reais, segundo a Receita Federal. As pouco mais de 500 indústrias recebem benefícios no Imposto de Importação (II), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), PIS Pasep, Cofins e ICMS.
Essa renúncia fiscal foi criticada este ano pelo Banco Mundial, que divulgou a publicação “Equilíbrio Delicado Para a Amazônia Legal Brasileira: Um Memorando Econômico”, no qual destaca que a ZFM não garante a incorporação de critérios ambientais na perspectiva econômica, tampouco garante diretamente a contenção do desmatamento. A União Europeia também tece a mesma crítica.
“É possível combinar a elevação dos padrões de vida e a preservação das florestas em pé num modelo de desenvolvimento que promova, ao mesmo tempo, a produtividade urbana e rural, a proteção florestal e meios sustentáveis de subsistência para a população rural”, recomenda o Banco Mundial. Em outro ponto, o documento alerta: “O desmatamento ameaça a excepcional riqueza natural dos Estados amazônicos, que abrigam cerca de 60% da floresta amazônica e partes de outros importantes biomas, como o cerrado e o pantanal”.
De janeiro a setembro deste ano, conforme os indicadores divulgados pela Suframa, às 514 indústrias instaladas no polo empregaram efetivamente 112.079 trabalhadores e demitiram 25.651 pessoas. No entanto, é apontado como o melhor desempenho desde o ano de 2018, quando o setor contratou 87.460 pessoas, que trabalhavam em 456 empresas. A Suframa afirma que a ZF emprega indiretamente cerca de 700 mil pessoas contando com a mão de obra terceirizada, temporária e até o ambulante que vende comida nas portas das fábricas.
Segundo o Banco Mundial, a Zona Franca recebeu, em 2018, subsídios fiscais que totalizaram 26 bilhões de reais da União e 6,2 bilhões de reais do governo estadual- quase um terço do PIB do Amazonas. “Os incentivos foram equivalentes a aproximadamente 402.500 reais por trabalhador (sem levar em conta os potenciais multiplicadores de empregos), o que é cerca de seis vezes mais do que o salário médio anual dos trabalhadores da ZFM (70.418 reais). Embora não seja algo incomum em termos globais, o alto gasto fiscal para geração de empregos é, em geral, altamente ineficiente”, diz o banco.
“Apesar de serem considerados uma ferramenta para a criação de empregos e o crescimento econômico, esses incentivos tendem a criar distorções, reduzindo a intensidade de mão de obra”, pontuou o Banco Mundial. O PIB per capita, em 2021, do manauara foi de 45.782,75 reais, muito abaixo dos incentivos fiscais por trabalhador.
Valdemir Santana, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos e presidente da CUT em Manaus, reconhece que as indústrias do PIM contribuem para o desenvolvimento do Estado, mas que esse lucro não é socializado para beneficiar os trabalhadores na ponta. “Nós temos uma questão séria: um problema social na Zona Franca. Por mais que hoje as empresas faturam bilhões de reais, ela não dá salário digno para os trabalhadores. Tem empresa que paga de folha de pagamento 0,5% sobre o faturamento. É muito baixo, né?”, questiona.
Santana esteve atento à aprovação da PEC no Congresso e considera que é de extrema importância a reforma tributária para o País. No caso da Zona Franca de Manaus, o sindicalista ressalta que é necessária a inclusão dos sindicatos na regulamentação e fiscalização da isenção dos impostos. “Queremos é a participação dos trabalhadores para ajudar a fiscalizar esse tributo que é dado para as empresas”, reivindica.
O governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), já se pronunciou, durante a tramitação da PEC, sobre a reforma tributária utilizando o discurso ambiental como justificativa para a redução de tributos das empresas da ZFM, corroborando a tese de Thaís Brianezi. O governador usa o argumento de que a área de livre comércio na capital do seu Estado deve ser mantida ou, então, a ZFM perderá seus empregos e a floresta será alvo dos predadores. Mas, em seu governo, Wilson Lima não deixa de apoiar a extração de potássio no Território Indígena dos Mura, em Autazes, e, mais gravemente, o asfaltamento da BR-319. Por ser intransitável, a rodovia federal tem segurado o avanço da destruição no Amazonas.
À Amazônia Real, Eduardo Braga se apresenta como outro político que justifica as isenções fiscais do PIM como uma estratégia para preservar a cobertura vegetal. “Veja, por conta da Zona Franca, a cidade de Manaus foi transformada em uma cidade-estado. E 97% da nossa floresta acabou ficando intacta, porque a população foi para a área urbana e tirou a pressão da floresta. Na minha avaliação, a ZFM é o maior programa de preservação ambiental que o Brasil tem.” A taxa de desmatamento no Amazonas registrou uma diminuição de 40,1% entre de agosto de 2022 a julho de 2023 em comparação com o período anterior, conforme divulgado pelo Inpe.
O Banco Mundial, contudo, critica os benefícios tributários concedidos à Zona Franca de Manaus, apontando a necessidade de revisão. O relatório destaca que o Amazonas é o estado mais industrializado da Amazônia Legal, “apoiado por sua zona econômica especial (ZEE), a Zona Franca de Manaus (ZFM). Mais de 70% de sua população (2,7 milhões) vivem na Região Metropolitana de Manaus”.
Com um Produto Interno Bruto de 103 bilhões de reais, Manaus ascendeu duas posições no ranking dos municípios brasileiros, desbancando Curitiba e Porto Alegre. O setor industrial corresponde a 36,5% do PIB da capital amazonense, acima dos 32% da área de Serviços. A reforma tributária aprovada vai manter estático esse quadro, mas não necessariamente se reverterá para a proteção ambiental, como alerta Fearnside. “A reforma tributária visa diminuir o imposto pago pelas empresas em geral, estimulando investimentos nas empresas e aumento da sua atividade. Teoricamente, este alívio poderia estar ligado a algum compromisso das empresas para ajudar na área ambiental, mas desconheço tais provisões”, explica o cientista.
A reforma tributária prevê a criação do Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica do Amazonas e outro para Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá, que serão constituídos com recursos da União. Os dois fundos serão criados por lei complementar. O texto prevê ainda que indústrias instaladas nas áreas de livre comércio de Roraima, Rondônia, do Amapá e Acre passem a ter os mesmos privilégios que as instaladas na ZFM.
Para André Cutrim Carvalho, professor da Universidade Federal do Pará e membro do Conselho Regional de Economia (PA/AP), a manutenção da ZFM não é suficiente para colocar em prática a sustentabilidade como aliada ao futuro da região. “A reforma deve criar um fomento, oferecendo benefícios fiscais para práticas de agricultura sustentável e de conservação de áreas de floresta na Amazônia. Isso inclui apoio a agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais, que utilizam práticas de cultivo e protegem a diversidade ali da região”, afirma Cutrim. “É preciso diversificar ainda mais a indústria e olhar para essas outras economias. Com a adoção desses ajustes, [a reforma] pode forçar a mudança na mentalidade corporativa dessas empresas.”
Para Dione Torquato, secretário-geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), a ZFM é importante, mas há a necessidade de diversificar esses benefícios para favorecer outros tipos de economia. “Deveria haver uma política de incentivo, incluindo a isenção de impostos relacionados aos produtos da sociobiodiversidade e diversidade que vêm diretamente do território, não se limitando apenas à questão industrial. Essa é uma disparidade inicial que precisa ser corrigida,” enfatiza Torquato, que é integrante do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade, uma união de organizações representativas de povos e comunidades tradicionais e o terceiro setor.
O observatório destaca as economias da sociobiodiversidade como estratégia de desenvolvimento, pois vão além da simples produção de bens. Elas têm raízes profundas no conhecimento tradicional sobre a biodiversidade e na utilização sustentável dos recursos naturais. “A diversidade biológica que temos no Brasil é uma riqueza que precisa ser preservada, assim como nossa riqueza sociocultural. Qualquer plano político ou econômico que viole esses direitos tende a invisibilizar especialmente aqueles que constituem as bases e a identidade deste país, ou seja, os povos das comunidades tradicionais.”
Já o documento do Banco Mundial reforça que a região que abriga a ZFM tem uma tributação fundiária inadequada: “O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), originalmente destinado a fomentar a intensificação agrícola em seu formato atual, promove a agricultura extensiva e o desmatamento”. E com efeitos prejudiciais nas terras indígenas: “Há uma aplicação ineficaz da lei destinada a preservar a integridade das áreas protegidas ou territórios indígenas e garantir que pelo menos 80% das propriedades privadas no bioma Amazônia (e porcentagens um pouco inferiores em outros biomas) permaneçam preservadas. Na prática, a má aplicação da lei reduz o custo da extração ilegal de madeira e do uso da terra”.
A reportagem procurou a assessoria do governador do Amazonas, Wilson Lima, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. (Colaborou Kátia Brasil)
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Zona Franca de Manaus ganha, mas não preserva a floresta amazônica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU