01 Novembro 2023
"Nesta guerra, que segundo Benjamin Netanyahu será 'longa e difícil', parece que todas as partes aceitaram que os civis são 'dispensáveis'. São o dano colateral da violência bélica que efetivamente viola um dos princípios básicos do direito humanitário internacional, elaborado nos últimos cem anos para proteger a população indefesa e evitar inúmeras mortes", escreve Giuseppe Riggio, diretor da revista Aggiornamenti sociali, em artigo publicado por revista Aggiornamente sociali, 30-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O ataque desferido pelo Hamas no sul de Israel numa tranquila manhã de sábado de outubro foi súbito e horrível, causando a morte de centenas de civis e soldados, enquanto dezenas de pessoas de diferentes nacionalidades foram feitas reféns. Esperada e dura foi a reação violenta de Israel que começou a bombardear a Faixa de Gaza, reduto do Hamas, submetendo-a a um verdadeiro cerco, sem água, eletricidade e combustível durante dias. A surpresa inicial face ao que aconteceu em 7 de outubro de 2023, tanto em Israel (a começar pelas forças armadas e serviços de segurança israelenses que não tinham a menor ideia do que estava sendo preparado) como no mundo, deu imediatamente lugar à perplexidade e à preocupação porque – como declarou Tor Wennesland, coordenador especial das Nações Unidas para o processo de paz no Médio Oriente – “Estamos à beira de um abismo profundo e perigoso. […] O risco de expansão deste conflito é muito real e extremamente perigoso” [1]. Diante de uma perspectiva tão dramática, é importante recordar alguns elementos que podem ajudar a manter a lucidez numa situação onde prevalecem as reações emocionais, a incerteza e a confusão.
Independentemente da duração ou da violência, o número de militares e civis mortos e feridos no corpo e não só, desenraizados de suas casas e privados de seus afetos pelas devastações econômicas que disso decorrem, da destruição causada nas cidades ou dos danos causados ao meio ambiente, todos as guerras representam um beco sem saída na história dos povos envolvidos e uma derrota para toda a humanidade. Se perdermos essa consciência corremos concretamente o risco de nos acostumar com a ideia da “normalidade” da guerra – ou da sua inevitabilidade – como forma de resolver os conflitos entre os povos. A constatação de que há numerosas guerras em curso no mundo não desmente a importância da afirmação de princípio, mas dá a medida do trabalho que as instituições internacionais, os Estados e a sociedade civil são chamados a desempenhar.
Contudo, nem todas as guerras ou conflitos dentro de um país têm o mesmo impacto sobre a política internacional ou a mesma ressonância junto à opinião pública em nível mundial. É assim, por exemplo, pelas poucas informações que circularam sobre o que aconteceu nos últimos dez anos na África (ver Mateos nas págs. 611-618). A maior ou menor atenção não depende tanto dos “números” de cada conflito individual, que também poderiam ser graves (e, em qualquer caso, mesmo uma única vítima já seria demais), mas por outros fatores, como o “peso” internacional dos Estados envolvidos, a história que precedeu e muitas vezes preparou as violências de hoje, as consequências que se determinam no cenário global.
Certamente o conflito árabe-israelense ultrapassa as fronteiras da relevância regional, para investir o mundo inteiro, como foi o caso da invasão russa na Ucrânia que, pelas repercussões políticas, econômicas e diplomáticas que dela derivaram não é apenas um evento europeu. Devido a essa razão, desde que chegaram as primeiras notícias do ataque do Hamas, tem havido atenção geral máxima e envolvimento emotivo enorme, devido não só aos acontecimentos das últimas semanas, mas a uma história de violências e tentativas de paz que dura mais de setenta anos. Ao longo dessas décadas os Estados, e dentro deles o mundo político e a opinião pública, tomaram uma posição, apoiando e defendendo as reivindicações de uma das partes envolvidas contra a outra. E tudo isso o percebemos claramente na forma como na Itália discutimos as notícias da guerra que chegam.
Quando nos deparamos com eventos violentos, ficamos profundamente abalados e quase naturalmente começamos a busca pelo culpado para que a justiça seja feita, especialmente quando as vítimas são pessoas inocentes.
Isso acontece evidentemente nos povos afetados, mas também se percebe na opinião pública internacional, e traduz-se na necessidade de dar nome ao responsável e chamá-lo em causa pelo que fez.
Trata-se de uma exigência legítima que, no entanto, entra em conflito com a constatação de que identificar as responsabilidades materiais e morais é tudo menos uma operação simples. Pode ser fácil de fazer para um único episódio, como no caso da ofensiva realizada pelo Hamas, que está na origem da crise atual, mas não é uma regra que vale sempre. Não vale, por exemplo, para o bombardeio do hospital al-Alhi na cidade de Gaza (pelo menos até o momento desta publicação deste texto), pelo qual ninguém até o momento assume a responsabilidade e há várias interpretações possíveis.
O que torna essa avaliação ainda mais complexa no plano da opinião pública é a propaganda inevitável das partes em conflito em tempos de guerra, a que hoje se soma a extrema facilidade de fazer circular de forma viral fake news por vídeos, fotos, mensagens graças a um clique nas mídias sociais.
Acima de tudo, certamente não é fácil identificar as responsabilidades quando se trata de um conflito que dura há 70 anos, como no caso de Israel e da Palestina. Ao longo dessas décadas foi se estratificando uma história marcada por injustiças e atos de violência perpetrados e sofridos por um lado e pelo outro, em que ambos foram ora vítimas ora algozes.
Neste momento é muito concreto o risco de cair na armadilha das simplificações e das polarizações que se cristalizaram durante décadas no contexto internacional e nos vários
Países em relação aos acontecimentos deste pedaço do Oriente Médio. A primeira delas é aquela binária, que coloca a alternativa seca entre "estar com o governo israelense ou com o Hamas, esquecendo, por exemplo, que os sujeitos envolvidos são muito mais numerosos, basta pensar na Autoridade Nacional Palestina, ou identificando indevidamente todos os palestinos com as escolhas violentas feitas pelo Hamas ou todos os israelenses com as decisões do seu Governo.
Por outro lado, muitas vezes as polarizações presentes dentro de um país em relação à situação árabe-israelense são o espelho de tensões e divisões que existem na realidade política e social local, em vez de expressar um ponto de vista baseado na consideração atenta ao que aconteceu ao longo dos anos em Israel e na Palestina. Por isso seria interessante perguntar: por que aquela parte política, aquela realidade da sociedade civil, tem mais empatia por um lado ou pelo outro? Apoiam-se os israelenses por serem considerados mais próximos de nós no plano cultural? Por que foram ‘guetizados’ e vítimas de racismo ao longo da história? Fica-se do lado palestinos por estarem entre os povos mais pobres do mundo? Ou pelo fato de seu desejo de ter uma terra não conseguir encontrar uma resposta concreta? Buscar respostas para essas perguntas pode lançar alguma luz sobre as posições que são apoiadas conforme o momento e, ao fazê-lo, ajudar a tomar consciência das próprias convicções. Não será um exercício que ajudará diretamente a superar a atual crise entre Israel e a Palestina, mas permitir-nos-á estar mais conscientes e lúcidos nesta conjuntura histórica, bem como noutros contextos que nos são mais próximos e nos quais corremos o risco de escorregar nas polarizações. Dessa forma, podem ser desmanteladas as dinâmicas que alimentam as visões preconcebidas e ideológicas que dificultam os processos de diálogo necessários para construir a convivência e a paz.
Nesta guerra, que segundo Benjamin Netanyahu será “longa e difícil”, parece que todas as partes aceitaram que os civis são “dispensáveis”. São o dano colateral da violência bélica que efetivamente viola um dos princípios básicos do direito humanitário internacional, elaborado nos últimos cem anos para proteger a população indefesa e evitar inúmeras mortes. A outra pedra angular é o critério da "proporcionalidade", segundo o qual também as ações são dirigidas contra objetivos militares não podem causar danos excessivos ou desproporcionais aos civis em relação ao objetivo militar definido.
No atual conflito entre Israel e o Hamas, como em muitas outras guerras em todo o mundo, a questão é, portanto, sobre o limite que não pode ser ultrapassado do ponto de vista político, jurídico e ético. Esta pergunta coloca-se aos povos em conflito, mas também vale para a comunidade internacional: qual é a limite que não pode ser ultrapassado para que a resposta a um ataque sofrido não se transforme em algo bem diferente? A resposta também depende de como é definido o destinatário das próprias ações. Um jornalista do New York Times, vinte anos atrás, perguntou a uma mulher palestina cuja casa havia sido destruída num ataque se queria que outra mãe sofresse o mesmo. Sua resposta foi: “Claro que não, espero que Deus não faça com que mais ninguém passe pelo nosso sofrimento"2. Quando estamos em um conflito a tentativa de desumanizar o inimigo constitui uma velha tática conhecida, que nenhuma convenção ou acordo internacional conseguiu alterar, igual àquela de generalizar e despersonalizar a responsabilidade, a ponto que mesmo os menores se tornam culpados e merecem ser punidos. Tudo isso acaba alimentando a espiral do ódio, aumentando o rastro de dor e de incompreensão e afastando a paz. Por isso também é nossa responsabilidade tentar desmascarar essas narrativas sempre que aparecerem à nossa frente, quer se trate da guerra árabe-israelense ou de conflitos mais domésticos, para construir uma cultura que saiba olhar tanto o adversário, quanto o interlocutor e o vizinho, reconhecendo e abraçando todas as nuances de sua pessoa, positivas e negativas, sem desfigurá-lo ou transformá-lo num personagem anônimo.
1 - O texto refere-se à situação do conflito entre Israel e o Hamas no momento do fechamento da edição para impressão (19 de outubro de 2023). UN News, Security Council meets over Israel-Gaza: ‘Very real risk’ of conflict expanding warns top envoy, 18 outubro 2023.
2 - Texto disponível aqui.
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A humanidade deve ser defendida, mesmo na guerra. Artigo de Giuseppe Riggio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU