14 Setembro 2023
Está chegando às chancelarias e reitorias de todo o país o livro “The Synodal Process Is a Pandora's Box: 100 Questions and Answers” [O processo sinodal é uma caixa de Pandora: 100 perguntas e respostas] com o objetivo óbvio de tentar minar o processo sinodal iniciado pelo Papa Francisco. Fiquei surpreso que eles não pararam no número 95 e pregaram o texto nas portas da Basílica de São Pedro.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 13-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Meu colega Christopher White, correspondente do NCR no Vaticano, explicou a origem do livro. A obra é publicada pela Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), um grupo reacionário que começou no Brasil em 1960 e se destacou pela oposição ao Vaticano II e pela afinidade com juntas militares de direita.
Não é de se surpreender que os autores tenham conseguido um chocante prefácio ao volume escrito pelo cardeal estadunidense Raymond Burke, uma figura tragicômica na Igreja de hoje, envolto em seda e com nostalgia melancólica de uma Igreja que nunca existiu fora de sua imaginação.
Embora dois membros da Tradição, Família e Propriedade sejam listados como autores, a maior parte do livro consiste em grande parte de citações de outros:
- Pe. Michael Nazir-Ali, ex-bispo anglicano de Rochester, Inglaterra, e agora padre católico;
- Gavin Ashenden, também ex-clérigo anglicano;
- Edward Pentin, correspondente do Vaticano para o National Catholic Register, da rede EWTN;
- Pe. Gerald Murray, padre da Arquidiocese de Nova York, convidado frequente do programa “The World Over with Raymond Arroyo”, da EWTN;
- Jayd Henricks, ex-lobista da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos e atual diretor do grupo Catholic Clergy and Laity for Renewal, que rastreia dados de celulares para flagrar padres que usam sites moralmente questionáveis;
- Carl Olson, editor do Catholic World Report, publicado pela editora conservadora Ignatius Press;
- Dom Robert Mutsaerts, bispo auxiliar da diocese holandesa de 's-Hertogenbosch, que já renunciou à maior parte de suas funções administrativas devido a divergências com seu ordinário.
A lista demonstra algo que tem ficado óbvio há algum tempo: a oposição a Francisco se localiza principalmente na anglosfera e evidencia toda a atitude defensiva que surgiu entre alguns católicos que cresceram em uma cultura não católica. Há outros, como Sandro Magister, mas a maior parte das citações a opiniões e críticas são de falantes de inglês.
Não sou um acadêmico e nem pretendo sê-lo, mas também vale a pena ressaltar que nenhum dos homens citados se destacou por qualquer especialização em teologia católica.
Eu gosto dos convertidos tanto quanto qualquer pessoa, mas admito que acho estranho que Nazir-Ali e Ashenden possam ter vivido a maior parte de suas vidas adultas fora da comunhão com o bispo de Roma, aceitando promoções e preferências em comunhão com uma eclesiologia muito diferente, e, depois de nadarem no Tibre, se declarem mais católicos do que o papa.
Pentin e Murray são cúmplices típicos da EWTN para um tipo peculiar de cristianismo conservador, e o jornal online de Olson é seguramente reacionário. Não sei nada sobre Mutsaerts, exceto que sua devoção aos ritos litúrgicos tridentinos parece tê-lo colocado em oposição a Francisco.
O que o livro diz? Em uma palavra, absurdos. Em uma expressão, absurdos datados.
Ele pergunta: “Um papa ou um Sínodo dos Bispos pode mudar a doutrina ou as estruturas da Igreja Católica?”. E a resposta poderia ter sido escrita em 1870. “Não. Nem o papa, nem o Sínodo dos Bispos, nem qualquer outro órgão eclesiástico ou secular tem a autoridade para mudar a doutrina ou as estruturas da Igreja, estabelecidas e confiadas em depósito por seu divino Fundador.” A citação que se segue é do Concílio Vaticano I.
Eu amo o Concílio Vaticano I tanto quanto qualquer outro católico e gostei especialmente de resenhar o livro magistral do falecido John Quinn, intitulado “Revered and Reviled: A Re-examination of Vatican Council I” [Reverenciado e injuriado: um reexame do Concílio Vaticano I]. Mas, a menos que estejamos familiarizados com a fermentação ideológica daquela época, é difícil recortar, copiar e colar uma citação do Vaticano I e inseri-la em uma discussão sobre a Igreja no século XXI sem violentar a história e a teologia.
Às vezes, o problema não é um transtorno mental histórico, mas sim uma incapacidade de assumir a boa-fé do papa, combinada com uma necessidade bizarra de expor os próprios receios do autor.
Por exemplo, questiona-se: “O que está por trás da proposta de ‘inclusão’?”. O texto cita Ashenden:
“O truque das palavras é facilmente explicado. A associação com ser excluído é não ser amado. Visto que Deus é amor, ele obviamente não quer que ninguém se sinta não amado e, portanto, excluído; logo, Deus, que é Amor, deve ser a favor da inclusão radical. Consequentemente, a linguagem do inferno e do julgamento no Novo Testamento deve ser alguma forma de hipérbole aberrante que não deve ser levada a sério, porque a ideia de Deus como amor inclusivo tem precedência. E, como esses dois conceitos são mutuamente contraditórios, um deles tem que ser eliminado. A inclusão fica; o julgamento e o inferno vão embora. Essa é outra forma de dizer: ‘Jesus vai embora, Marx fica’. Isso é então aplicado para derrubar todo o ensinamento dogmático e ético da Igreja.
Uau. Suponho que essa seja uma forma de interpretar os documentos preparatórios. Para mim, o chamado à inclusão significava apenas que não deveríamos colocar obstáculos desnecessários na porta da Igreja.
Algumas perguntas são tão indutoras, até mesmo passivo-agressivas, que você não precisa esperar pela resposta. Por exemplo: “Os promotores do Sínodo distinguem entre o papel ativo do magistério e o papel passivo dos fiéis no desenvolvimento orgânico do depósito da fé?” e “Existem segundas intenções por trás do Synodaler Weg?”. Isso é o equivalente eclesial de um pai ofendido perguntando a uma filha adolescente: “Então, é isso que você vai vestir hoje?”.
Existe a preocupação de que os prelados que levantam questões difíceis de boa-fé sejam punidos por perturbarem as consciências gentis dos trogloditas.
“Por exemplo, é impressionante a ausência de qualquer reprimenda das autoridades do Vaticano ao cardeal Robert McElroy pelo seu escandaloso artigo na revista jesuíta America”, afirma o livro. “Por sua vez, o cardeal [Jean-Claude] Hollerich foi confirmado no papel decisivo de relator geral do Sínodo, mesmo depois de suas escandalosas declarações sobre a necessidade de mudar o magistério da Igreja sobre a homossexualidade.”
Ora, eu discordei de partes do artigo de McElroy na America e acho que Hollerich não reconhece como será difícil mudar o ensinamento da Igreja sobre a homossexualidade. Mas “escandaloso”? Parece-me que esses opositores do Sínodo se escandalizam facilmente. Não está claro por que a homossexualidade parece ser geralmente a fonte de seus medos mais fervorosos.
É um pouco surpreendente que os autores tenham recorrido à mitologia grega para o título dessa obra. Evidentemente, eles não conseguiram encontrar nada nas Sagradas Escrituras nem nos ensinamentos magisteriais que resumisse seus medos. É algo digno de nota.
Esse ataque profilático e do tamanho de um livro ao Sínodo não está sozinho. No site Catholic Culture, Phil Lawler disparou o alarme e de uma forma semelhante. Eis como ele introduz um experimento mental: “Imagine que de alguma forma um herege declarado ganhou a eleição para o papado”. Isso e o que se segue não têm nenhuma semelhança com nada que Francisco tenha feito ou planeje fazer.
A coluna de Lawler, assim como o livro da Tradição, Família e Propriedade, pretende mutilar o Sínodo. Eles não têm vergonha de lançar calúnias sobre o Santo Padre e sobre seu caráter.
Esses críticos deveriam se lembrar do cânon 1.373: “Quem publicamente excitar aversão ou ódios dos súditos contra a Sé Apostólica ou contra o Ordinário por causa de algum ato do poder ou do ministério eclesiástico, ou provocar os súditos à desobediência a eles, seja punido com o interdito ou outras penas justas”.
O Sínodo poderia fracassar? Eu espero que não. E não acho que isso ocorrerá. Francisco não teve medo de recusar a recomendação do Sínodo para a Amazônia de ordenar homens mais velhos de virtude comprovada, os viri probati, porque a proposta obteve a maioria, mas não refletia um consenso sinodal. Não vejo nada em nenhum de seus escritos que sugira que Francisco esteja planejando derrubar as nossas doutrinas fundamentais.
Se a Igreja se tornar mais evangélica e menos rígida, mais engajada e menos desligada, será que isso não será algo bom, independentemente do que o processo sinodal determinar sobre qualquer questão específica?
Essas acusações antecipadas, no entanto, não estão sendo divulgadas porque os autores acham que a sinodalidade irá fracassar. Eles estão com medo de que ela seja bem-sucedida. Esses extremistas de direita estão reconhecendo que a maioria dos católicos ama Francisco, até mesmo na anglosfera. Eles sabem, no fundo, que as pessoas não ficam confusas com a fixação dele na terna misericórdia de Deus. Eles sabem, no fundo, que nenhum de nós deveria julgar os nossos irmãos e irmãs que sofrem. Eles sabem que, quando a liderança é menos remota, é menos provável que ocorram crimes horríveis como o encobrimento dos abusos sexuais clericais.
Eles estão chateados porque são o tipo de pessoas que só ficam felizes quando estão chateadas, só ficam contentes quando olham os outros de cima para baixo, caçadores de heresia que perscrutaram o mundo durante tanto tempo com apenas um tipo de lente que não conseguem mais distinguir a realidade dos seus óculos. Eles são o inspetor Javert e se ressentem de qualquer pessoa que atrapalhe sua busca por um senso distorcido de retribuição divina. Não devemos dar ouvidos a eles, mas sim sentir pena deles.
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Críticos conservadores do Sínodo e de Francisco estão passando vergonha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU