18 Julho 2023
"Uma homenagem como essa vai fazer história. Afinal, como esquecer que o primeiro papa jesuíta da história presta homenagem a um dos mais impiedosos inimigos dos jesuítas da história?", questiona Jean de Saint-Cheron, escritor, colunista e diretor do gabinete do reitor do Institut Catholique de Paris, autor de “Blaise Pascal. Voilà ce que c'est que la foi” (Salvador), em artigo publicado por Le Monde, 12-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa Francisco acaba de publicar uma carta apostólica na qual presta homenagem ao filósofo francês Blaise Pascal, por ocasião do 400º aniversário de seu nascimento. Para o ensaísta Jean de Saint-Cheron o texto tem um caráter “histórico”, pois “o primeiro papa jesuíta da história presta homenagem a um dos mais implacáveis inimigos dos jesuítas da história”.
Para celebrar os 400 anos do nascimento de Blaise Pascal (1623-1662), o Papa Francisco lhe dedicou a carta apostólica, Sublimitas et miseria hominis (Grandeza e miséria do homem), na qual o soberano pontífice não apenas expressa sua admiração pela vida e obra do gênio de Clermont, mas também o desejo de torná-lo mais conhecido de “todos os homens e mulheres de boa vontade”. O Papa afirma que Pascal tendo “falado admiravelmente da condição humana”, pode “tocar a todos”. Mais do que um moralista visionário, o filósofo francês é justamente adequado a nos estimular “na busca da verdadeira felicidade”. Ele é um verdadeiro “companheiro de estrada”.
Uma homenagem como essa vai fazer história. Afinal, como esquecer que o primeiro papa jesuíta da história presta homenagem a um dos mais impiedosos inimigos dos jesuítas da história? O Papa Francisco renega com isso os membros da Companhia de Jesus, de quem Blaise Pascal, então próximo dos jansenistas, atacava as afirmações “cheias de falsidades escandalosas”? Para entender o caráter histórico dessa carta apostólica, é preciso recuar alguns séculos.
As sutilezas do embate que opôs violentamente jesuítas e jansenistas nos séculos XVII e XVIII provavelmente nos escapem em 2023. Para isso é preciso recuperar os termos da polêmica. De Santo Agostinho (354-430) e de sua disputa com o monge Pelágio (cerca de 350-418) nos anos 410, a questão da graça divina alimenta o debate intelectual. A controvérsia é, em linhas gerais, sobre esta pergunta: na salvação do homem (isto é, no seu acesso à vida eterna), qual é o papel atribuível, por um lado, à graça divina que eleva a natureza humana e, por outro lado, às forças do homem, dotado de razão e vontade?
Essa disputa agitava as mentes também na época de Pascal. Os jesuítas, sob a influência do teólogo Molina (1535-1600) opunham-se aos jansenistas, assim chamados em referência a Jansênio (1585- 1638), autor do Augustinus em 1640, obra inspirada nos escritos de Santo Agostinho contra Pelágio. Os jansenistas, portanto, posicionavam-se do lado do “agostinismo” (a graça vem antes e é absolutamente necessária para permitir ao homem fazer o bem e obter a vida eterna), enquanto seus adversários jesuítas defendiam uma visão chamada “semipelagiana” (segundo a qual o livre-arbítrio desempenha um papel decisivo na salvação).
A essa disputa sobre a graça se deve acrescentar que os jansenistas contestavam a moral dos jesuítas, que acusavam de laxismo e de hipocrisia: os confessores jesuítas tinham implementado um sistema com uma casuística destinada a desculpar todos ou quase todos os pecados imagináveis (incluindo o assassinato), graças a um arcabouço de circunstâncias atenuantes e “boas” intenções (por exemplo: “Eu não finco a espada no coração deste homem para matá-lo, mas para lavar a minha honra. O ato que cometi não é, portanto, um assassinato, mas um restabelecimento da justiça”). Isso confundia bastante as linhas de certo e do errado, do bem e do mal – portanto, da “verdadeira” religião, de acordo com os jansenistas, atrelados a um saudável rigor.
Por fim, a tudo isso juntava-se o fato de que no século XVII o jansenismo do mosteiro de Port-Royal era antiabsolutista e contrário à religião mundana imputada à Companhia de Jesus. É nesse contexto que Pascal entra na briga.
De fato, a profunda conversão ao cristianismo do genial matemático e inventor era ligada à influência de determinados jansenistas. Seus amigos de Port-Royal, que haviam intuído a sua genialidade tanto especulativa como retórica, o encarregaram de atacar as posições dos jesuítas e de ridicularizá-las.
Isso deu origem, entre 1656 e 1657, às Provinciales, algumas expressões das quais lembra irresistivelmente Moliere: “É, portanto, muito bom, Padre, que o senhor me trate como um herege, e é, portanto, igualmente bom em que eu lhe responda igualmente”.
Depois de Pascal, a guerra continuou. A dissolução da congregação jansenista de Port-Royal e um mosteiro arrasado por ordem do rei em 1711 não acabaram com ela. Em 25 de setembro de 1762, d'Alembert escreveu a Voltaire, seu mestre e amigo: “... Deixe que a corja jansenista e parlamentar nos liberte tranquilamente da corja jesuíta e não impeça que essas aranhas devorem umas às outras”.
Em 1763 nem mesmo a expulsão dos jesuítas do reino da França interrompeu o debate. Ainda em nossos dias, na teologia, as acusações de jansenismo ou jesuitismo continuam a ressoar em alguns corredores católicos. E, na linguagem corrente, os políticos julgados austeros são associados ao jansenismo, enquanto a qualificação de “jesuíta” é reservado a personagens condenados por hipocrisia.
O Papa Francisco, um jesuíta que presta homenagem a um defensor dos jansenistas, talvez estivesse tentando encerrar definitivamente o embate? Com certeza equipara jansenistas e pelagianos, cujas doutrinas são características aos seus olhos da rigidez excessiva e da falta de misericórdia por um lado, e do orgulho e da presunção pelo outro lado: “Pensemos naquelas heresias que pretendiam fazer avançar a Igreja, como o pelagianismo e depois o jansenismo declarava em 2021. Toda heresia terminou mal”.
Mas ao falar da disputa das Provinciales em Grandeza e miséria do homem, o faz essencialmente para dar credito a Pascal pela “franqueza e sinceridade de suas intenções” e para esclarecer que “esta carta não é certamente para reabrir a questão”. O papa não ratifica as afirmações de Pascal de que os jesuítas do século XVII eram infames semipelagianos, distinguindo Pascal do jansemismo, e chegando a afirmar que “a posição de Pascal relativamente à graça (…) aparece enunciada em termos perfeitamente católicos no final de sua vida”, isto é, em termos não jansenistas.
Quanto à disputa sobre a graça, a discussão continua aberta entre os molinistas (partidários do teólogo Molina) e jansenistas. Mas parece que o papa tenha tido a intenção de afastar o gênio de Auvérnia para colocá-lo acima da confusão, em seu devido lugar.
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“Por que a homenagem do Papa Francisco a Blaise Pascal vai fazer história” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU