29 Agosto 2023
"A história de Renk é a história de uma crise esquecida e de um fracasso coletivo. Aquele dos governos cegos às crises mais distantes, de uma ajuda impraticável porque a miopia para com os mais pobres do mundo tem sido tão longa e duradoura que não é possível encontrar soluções rápidas para as emergências que se acumulam", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 28-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em Joba, última fronteira que separa o Sudão do Sul do Sudão, fronteira é uma palavra transparente. Ao longo de uma estrada asfaltada quatro pneus sustentam a bandeira do país: três faixas horizontais separados por listras brancas e um triângulo azul com uma estrela, no mastro. Símbolos da paz, da terra e do Nilo e dos povos que habitam o Sudão do Sul, o mais jovem país do mundo, independente desde 2011, e ao mesmo tempo palco de uma das mais graves crises humanitárias do mundo.
De acordo com as Nações Unidas, desde que a guerra no Sudão começou em abril passado, mais de 200 mil pessoas cruzaram as fronteiras do Sudão do Sul, a maioria delas vinda de Renk, a cidade fronteiriça mais próxima, geralmente árida, que fica inundada na estação das chuvas, como agora.
Renk é pouco mais que um ponto no mapa. Uma pequena área de agricultores no Alto Nilo a mil quilômetros de Juba, a capital, sem nenhuma estrada que as ligue. Existe apenas uma estrada asfaltada que garantia os comércios transfronteiriços, a rede telefônica mal e mal existe, a água corrente é um luxo, não há banheiros nas casas. Um vaso sanitário no chão e um balde de água do rio são a higiene de quem mora aqui. A essas condições já dramáticas se acrescentou o fluxo ininterrupto de quem tenta se salvar da guerra. Mil e 500 pessoas por dia que caminham ao lado da bandeira, alguns chegam depois de ter caminhado por dias, outros montados em mulas, os mais sortudos e abastados param algumas dezenas de metros antes descendo dos ônibus coletivos que os transportaram para a zona de cruzamento.
São quase todos cidadãos do Sudão do Sul que deixaram o país há anos devido à instabilidade e os conflitos e reconstruíram as suas vidas no Sudão. Hoje outra guerra os está trazendo de volta em busca de segurança, um movimento de repatriação espontânea em massa. Mas depois de anos de guerra e anos de ausência, as casas de onde fugiram já não existem mais, foram reivindicadas por outros ou estão em áreas onde não há mais água nem estradas. Outros ficaram sem terras, destruídas pelas inundações que são mais intensas a cada ano, mais danosas a cada ano. Ainda outros correriam o risco de regressar para áreas disputadas e atravessadas por tensões étnicas que o governo ainda não consegui resolver mediando.
Aysha fugiu do Sudão do Sul para Cartum há dez anos, agora está de volta ao seu país de origem fugindo de outra guerra. Levou dois meses para fugir e alcançar a fronteira.
Ela morava no bairro do mercado e na manhã de 15 de abril lembra de ter olhado pela janela e ver o prédio em frente ao seu em chamas, os vizinhos mortos assim, diante dos seus olhos. Apenas diz: não consigo contar os mortos que vi.
Ela ficou presa em casa por duas semanas, alimentando-se e alimentando seus filhos como podia e dividindo a água gota a gota.
Ela se lembra dos mortos pela rua e que não havia ninguém para levá-los embora. Ela e sua irmã juntaram as forças, o dinheiro, o contato de um motorista que as levasse embora e escolheram quem deveria sair primeiro. Elas trocaram seis motoristas e quatro cidades, se separaram e depois se reencontraram. Perderam tudo e sabem que é mais sensato não olhar para trás do que esperar voltar para casa, cedo ou tarde. Aysha em Cartum trabalhava numa empresa de construção, dos quatro filhos que tem conseguiu trazer consigo o maior e o menor. O mais novo, de dois anos, mama no peito. O maior, de quatorze anos, teve que trazê-lo para não correr o risco de que os livros escolares fossem substituídos pelo rifle, que a educação fosse substituída pelo recrutamento forçado. Os outros dois estão com a sua mãe de quem perdeu o paradeiro.
Está sentada num pano, o sol do meio da tarde não dá trégua, atrás dela está um caminhão que espera os funcionários estatais para carregar homens, mulheres e crianças e fazer a viagem de ida e volta da fronteira para o Centro de Trânsito de Renk.
Renk é o espelho do que significa, ao mesmo tempo, pensar em chegar num lugar seguro e compreender, uma vez cruzada a fronteira terrestre, que a salvação assume a forma do barro, de um campo não equipado, no meio do nada, que a temporadas das chuvas já transformou num atoleiro.
Instalado no início da guerra no Sudão, nos edifícios abandonados de uma antiga universidade, o Centro de Trânsito foi projetado para acomodar no máximo 2 mil pessoas. O governo não tinha intenções de criar um campo permanente, por isso nenhuma organização pôde montar tendas, latrinas apropriadas, imaginar projetos de saneamento de água ou estruturas médicas de médio e longo prazo. A intenção declarada era reassentar o maior número possível de pessoas em zonas mais ao sul, onde existem melhores conexões de transporte e infraestrutura, a intenção não declarada, aqui como em similares locais de trânsito de vidas em fuga da guerra, é que quanto mais inóspito for um lugar tanto menos um refugiado sente-se motivado a ficar.
A ideia inicial era que quem passasse pelo Centro de Trânsito de Renk deveria, em até dois, no máximo três dias, ser transferido por via terrestre para outros destinos: os refugiados sudaneses no campo de refugiados de Maban (que já acolhe 160 mil pessoas) a três horas de distância de ônibus, enquanto os deslocados sudaneses do Sul que viviam no Sudão, no centro de Malakal (que já acolhe 40 mil pessoas), a sete horas.
Assim, durante as primeiras semanas após o início do conflito em Cartum, as Nações Unidas organizaram o revezamento de transporte, então, para complicar a situação e os planos de inospitalidade, chegou a temporada das chuvas. As poucas estradas na região do Alto Nilo foram inundadas, o barro as deixou intransitáveis e refugiados e deslocados que deveriam ter sido transferidos em poucos dias, estão trancados em Renk há semanas.
O espaço que deveria e poderia acomodar duas mil pessoas agora abriga 15 mil.
Como todas as áreas setentrionais, Renk também dependia das importações do Sudão para os itens de primeira necessidade e alimentação.
Antes do início dos confrontos em Cartum, a fronteira de Joba era atravessada todos os dias por caminhões que transportavam alimentos, remédios e gasolina para a cidade.
Desde o fechamento das rotas comerciais os preços aumentaram dez vezes. Uma garrafa de água, que antes de abril custava 20 centavos, hoje custa um dólar e meio. O que chega agora, chega à cidade por via aérea ou fluvial ao longo do Nilo, portanto tudo que chega não só custa mais, mas deve ser partilhado com pessoas deslocadas e refugiados. A agravar as preocupações das organizações humanitário, para o futuro, existe o efeito dominó comum a muitos conflitos. O medo de que quando o pouco deve ser dividido entre muitos, as tensões étnicas se reacenderão, que os sul-sudaneses que fugiram anos atrás da guerra civil que tentam regressar às suas aldeias de origem, em Malakal, ou na própria Juba, não só não sejam acolhidos, mas que a sua presença, exercendo pressão sobre serviços já limitados, possa reavivar os pavios de tensões étnicas nunca resolvidas.
Mesmo antes da guerra no Sudão, três quartos da população necessitavam de ajudas humanitárias, hoje o Sudão do Sul continua a ser a maior crise de refugiados na África, enquanto a resposta operacional é uma das mais subfinanciados em nível mundial.
Em julho, um agente humanitário foi assaltado e espancado porque não havia água para todos. No centro de trânsito, dizem os poucos médicos que atendem a zona, uma criança morre por dia.
De acordo com estimativas das Nações Unidas, 800 mil refugiados sul-sudaneses residiam no Sudão em abril, um quarto dos quais em Cartum.
Joseph no Sudão tinha uma vida “muito boa”. Ele a descreve assim, duas palavras para esconder o destino do duplo exílio. Ele também fingiu da guerra civil, abandonando o Sudão do Sul e deixando para trás seu trabalho como professor. A vida como refugiado em Cartum transformou-o num carregador, mas Joseph nunca reclamou, pois o esforço era a pagamento pela segurança.
Depois, em abril, a sua vida se transformou novamente em fuga. As milícias haviam começado a invadir as casas das pessoas para roubar dinheiro, comida, água e recrutar as crianças.
José estava escondido em casa e abriu a porta de sua casa para três famílias de conhecidas. Era preciso ficar juntos, conta ele, para não ter medo de morrer de fome e sede. Por sua vez, os homens saíram para recolher alguns grãos que os mercadores deixavam ao longo das estradas antes de barricar as lojas, pensando que alguém precisaria disso para comer. Depois de um mês, tendo entendido que a situação só poderia piorar, que não havia mais medicamentos e que os ataques aéreos estavam atingindo também os hospitais, saqueados como as casas civis, pegaram um saco com aquele pouco de comida que restava e se colocaram em caminho para o sul. Foram assaltados no caminho e, sem mais dinheiro, depois de seis semanas, chegaram a Joba. Para os seus netos era o início da vida como deslocados, para Joseph era voltar à estaca zero sem mais nada nas mãos. Nem uma poupança, nem a esperança de um futuro melhor. Ele sabia, ao retornar ao seu país de origem, que nada era mais como havia deixado. A sua casa, em Malakal, já não existe mais. Voltar para lá significa voltar como deslocado interno, viver numa tenda, alimentando-se com as rações das Nações Unidas, que ao longo dos anos foram reduzidas para metade porque não há mais fundos.
É difícil dizer o que será do outono, mas de acordo com os movimentos destes meses, até 400 mil pessoas poderiam chegar à fronteira de Joba. Significa, realisticamente, ter que transportá-las se a política governamental permanecer aquela do no- camp. Isto é, nenhum campo de refugiados organizados na fronteira. Antes do início da estação das chuvas, a OIM, a Organização Internacional para as Migrações, tinha conseguido deslocar poucos milhares de pessoas. Não há aeroporto em Renk, as pistas são estreitas estradas de terra seca, não adequadas para a decolagem e aterrissagem de veículos de grande porte. Apenas pequenos aviões pousam e quando chove muito, nem mesmo aqueles, os voos são cancelados, a ajuda em entrada e os refugiados em saída ficam retidos no solo.
A história de Renk é a história de uma crise esquecida e de um fracasso coletivo. Aquele dos governos cegos às crises mais distantes, de uma ajuda impraticável porque a miopia para com os mais pobres do mundo tem sido tão longa e duradoura que não é possível encontrar soluções rápidas para as emergências que se acumulam.
É fácil pensar que milhares de pessoas permanecerão paradas em Renk nos próximos meses e por mais meses ainda. Que a transitoriedade, como o nome do centro gostaria, possa ser - como no caso dos hotspots nas fronteiras da Europa – nada mais que um engano semântico.
Que permanecerão atolados destinos de milhares de crianças que não têm acesso a cuidados e vacinas num local onde a água estagnada já causou a morte de quatro recém-nascidos por diarreia nas últimas semanas.
Joseph está trancado em Renk há três semanas, recolheu quatro pedaços de madeira, esticou um lençol para fazer sombra ao neto. É para ele que olha para não reclamar. "Ele poderia ter sido obrigado a combater, mas está aqui." Mesmo que “aqui” seja uma latrina ao ar livre, sem sequer lonas plásticas para se proteger das chuvas, onde as crianças choram de fome ao lado de pilhas de resíduos podres, e os rostos de todos estão cobertos de moscas e barro.
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Duas vezes exilados. Os esquecidos de Joba, entre Sudão e Sudão do Sul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU