05 Agosto 2023
O livro “The Oxford Handbook to Vatican II”, organizado por Catherine Clifford e Massimo Faggioli, é uma conquista substancial, um recurso-chave para a compreensão do Concílio.
O comentário é de Alexander Faludy, presbítero da Igreja da Inglaterra e um jornalista freelancer que vive em Budapeste, Hungria. O artigo foi publicado por La Croix Internacional, 31-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) foi um evento crucial não apenas na vida católica, mas também no cristianismo global. No entanto, desde o início, surgiram divisões no rastro do Concílio.
Nos extremos, havia duas escolas contrastantes de “rejeicionistas”: aqueles que consideravam que o Concílio havia oferecido ou muito ou pouco demais. Principalmente eles romperam com o Concílio – seja por cisma corporativo (lefebvrianos), seja por lapso pessoal (progressistas). Entre eles, estavam duas linhas de pensamento que ofereciam, respectivamente, interpretações mais “conservadoras” e mais “liberais” do próprio Vaticano II.
A abordagem conservadora da “continuidade do texto”, defendida por Joseph Ratzinger e Yves Congar OP, via os textos do Vaticano II como um ponto fixo até ao qual (e não mais do que ele!) a reforma deveria avançar. Hoje, os porta-vozes do Concílio costumam enfatizar a continuidade com a substância do ensino pré-conciliar (suavizando sua expressão).
Por outro lado, os defensores do paradigma do “evento do Espírito” (liderados por Hans Küng e Karl Rahner) consideravam os textos do Concílio como diretrizes que sinalizavam para uma “direção de viagem” rumo a uma reforma mais aberta. Para eles, o Vaticano II tornou-se um processo inaugurado pelo evento conciliar que evoluiria organicamente na vida da Igreja sob a orientação do Espírito Santo.
Essas posições correspondem, em parte, a dois leitmotivs do Concílio. Os conservadores enfatizam a dimensão de ressourcement do Vaticano II, ou seja, a recuperação da tradição perdida. Os liberais acentuam seu apelo ao aggiornamento, ou seja, a abertura à modernidade e aos “sinais dos tempos”.
Durante grande parte do período entre o Vaticano II e hoje, a abordagem conservadora dominou – especialmente sob o pontificado de Bento XVI (2005-2013), que, como Joseph Ratzinger, deu forma à abordagem da “continuidade do texto”. Durante o pontificado do Papa Francisco, no entanto, testemunhamos a ascendência da perspectiva do “evento do Espírito”.
Na “Introdução” do “The Oxford Handbook of Vatican II”, os editores, Catherine Clifford e Massimo Faggioli, posicionam sua obra enfaticamente nessa última corrente. O livro tem cinco seções (e 44 capítulos). Vou me concentrar, portanto, naqueles ensaios que se destacam como contribuições de destaque – ao menos para este leitor anglicano.
Oxford Handbook of Vatican II foi lançado em 2023 pela Oxford University Press. (Foto: Divulgação)
A Parte I – “Contexto e Fontes” – abre com uma contribuição do falecido John O’Malley SJ, que é especialmente interessante sobre a complexa conexão do Vaticano II com seu antecessor imediato, o Concílio Vaticano I, de 1869-1970.
Tendo sido suspenso em circunstâncias caóticas, quando as forças italianas tomaram a Roma papal (1870), o Vaticano I só teve tempo de publicar duas constituições dogmáticas: a Dei Filius (sobre a fé católica) e a Pastor Aeternus (sobre a Igreja). Esta última continha a notoriamente controversa afirmação da infalibilidade papal. Isso, diz O’Malley, “parecia ter tornado os concílios supérfluos”, dada a implicação de que o papa “poderia – e deveria – tomar todas as decisões”.
O Vaticano I ainda estava em curso, juridicamente falando, quando João XXIII anunciou seu sucessor, em 25 de janeiro de 1959. Antes do Vaticano II começar, o Papa João XXIII precisaria fechar formalmente um corpo que havia sido uma ficção legal fantasmagórica durante 90 anos. Para realizar algo significativo, o Vaticano II teria primeiro que lidar com o legado do Vaticano I.
Felizmente, o trabalho preparatório para o novo Concílio revelou um fato surpreendente – o truncamento do Vaticano I havia distorcido seu ensinamento. A declaração sobre a infalibilidade papal foi desequilibrada por um texto planejado sobre a Igreja, mais abrangente do que a Pastor Aeternus, que enfatizava a autoridade dos bispos (e não apenas do papa) como sucessores dos apóstolos. Esse equilíbrio foi fornecido pela constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen gentium (1964), que destacou a natureza colegial do episcopado e localizou a infalibilidade dentro de “todo o corpo dos fiéis”.
É notável entre as análises da Parte II dos textos do Concílio a opinião de John Baldovin SJ sobre a Sacrosanctum Concilium, a constituição sobre a Sagrada Liturgia. Ela oferece importantes correções aos (des)entendimentos. Dado que as atitudes em relação à liturgia são hoje um marcador-chave nas guerras culturais internas ao catolicismo, é surpreendente saber que o decreto sobre a liturgia foi aprovado primeiro, mais rapidamente e com uma oposição insignificante.
Aqueles que defendem uma “hermenêutica da continuidade” reclamam que a diretriz para os padres presidirem a liturgia eucarística voltada para o povo não se encontra em nenhum lugar da Sacrosanctum Concilium e, portanto, representa uma inovação “inautêntica” e “pós-conciliar”. Mas Baldovin nos lembra que a Inter Oecumenici, a instrução sobre como implementar a constituição sobre a liturgia – que Paulo VI emitiu em setembro de 1964 enquanto o Concílio ainda estava em sessão –, recomenda explicitamente a construção de altares livres que privilegiem as celebrações com o presidente voltado para o povo.
A Parte III oferece reflexões temáticas sobre a recepção católica do Concílio. A abordagem mais cheia de frescor vem do texto “A recepção do Vaticano II pelos católicos tradicionalistas”, de Phillipe Roy-Lissencourt (capítulo 22). Tem sido uma história mais complicada do que geralmente se supõe.
Examinando as respostas pós-conciliares iniciais dos membros da facção ultraconservadora do Vaticano II (Cœtus Internationalis Patrum), ele aponta algo notável: “Inicialmente nenhum deles criticou abertamente os documentos promulgados pelo Concílio”. Pelo contrário, “eles defenderam os documentos, apelando a que fossem interpretados segundo a doutrina tradicional da Igreja”, antecipando assim o conceito mais recente de “hermenêutica da continuidade”.
Roy-Lissent nos conta que o arcebispo Marcel Lefebvre proferiu uma homilia em maio de 1966, amplificada em “La Pensée Catholique”, na qual o futuro prelado cismático “chamava seus ouvintes a uma renovação interior em nome do Concílio”. Mas, em dezembro, Lefebvre expressava sua total hostilidade ao Vaticano II em uma carta ao cardeal Alfredo Ottaviani, chefe do Santo Ofício, alegando que as próprias decisões do Concílio – e não apenas as interpretações liberais delas – “encorajaram, de uma forma inconcebível maneira, a propagação de erros liberais”, de modo que “a fé, a moral e a disciplina eclesiástica são abaladas até aos seus fundamentos”. Exatamente o que estimulou a volta face de Lefebvre em 1966 pede uma investigação mais aprofundada.
A Parte IV avalia o impacto do Vaticano II para além do catolicismo. A meditação de William G. Rusch sobre a recepção luterana (capítulo 31) é estimulante. Subvertendo os entendimentos de “recepção” como pós-conciliar e “reativa”, ele identifica sua gênese dentro do próprio Concílio: os observadores luteranos nas sessões foram os primeiros a assimilar os desenvolvimentos – desenvolvimentos que eles também influenciaram por meio de consultas informais sobre os projetos dos decretos.
Paradoxalmente, argumenta Rusch, o Vaticano II ajudou a criar a atual Federação Luterana Mundial (FLM). A intensificação da cooperação intraluterana precisava apresentar uma face comum a Roma no diálogo, o que estimulou a decisão (em 1990) de mover a FLM de sua autodesignação como uma “associação livre” para uma “Comunhão de Igrejas” mutuamente responsável, uma expressão encontrada na Lumen gentium.
A Parte V oferece estudos regionais sobre a recepção católica. Perspectivas globais sobre o texto oferecem algumas críticas severas ao eurocentrismo do Vaticano II. “É óbvio, a partir do exame dos 16 documentos, que o Concílio foi em grande parte um fórum para as preocupações das Igrejas da Europa e da América nos anos 1960”, observa Agbonkhianmeghe Orobator SJ. “Os problemas e as preocupações de África, portanto, surgiram apenas indiretamente”, diz.
No entanto, Orobator vê o Concílio como algo valioso para a África, apesar de seu processo local de recepção ter começado mais lentamente do que em outros lugares. Assim, a inauguração por parte do Vaticano II de “uma nova abordagem que reconhece as reivindicações das ‘outras religiões’” inaugurou uma era aprimorada de relações de boa vizinhança. Também ofereceu uma nova estrutura para honrar o que havia de bom na cultura autóctone dos cristãos africanos, realizado notavelmente no “Missel Romain pour les diocèses du Zaire” (1988), um ponto alto (até hoje) nos esforços de inculturação litúrgica.
Uma das lacunas mais frustrantes nessa obra impressionante é a completa ausência de ilustrações no “Handbook”. Piero Doria nos diz em “Um arquivo para o Vaticano II” (capítulo 5) que “fotos e imagens [televisivas]” fizeram do Concílio “um dos eventos mais seguidos na história do cristianismo contemporâneo”.
“Outras fontes para o estudo do Vaticano II”, de Federico Ruozzi (capítulo 6), vai além, considerando a cobertura midiática não como uma apresentação dos procedimentos do Concílio, mas sim como uma parte deles: afinal, algumas expressões cunhadas pela primeira vez pelos bispos nas coletivas de imprensa encontraram seu caminho até aos textos conciliares. Diante dessas afirmações sobre a importância da mídia para o Vaticano II, é decepcionante que nenhuma fotografia do evento tenha sido incluída no volume.
Respostas protestantes e ortodoxas ao Unitatis redintegratio (o decreto sobre o ecumenismo) são, com razão, dadas por membros dessas comunidades (capítulos 28-34). Infelizmente, porém, as reações de judeus, muçulmanos e outros ao Nostra aetete (o decreto sobre as relações inter-religiosas) foram aqui ventriloquizadas por escritores católicos (capítulos 35-37).
No entanto, o “Oxford Handbook to Vatican II” é uma conquista substancial, um recurso-chave para a compreensão do Concílio. Sem dúvida, ele irá gerar sua própria história de recepção ricamente diversificada.
CLIFFORD, Catherine; FAGGIOLI, Massimo (orgs.). The Oxford Handbook to Vatican II. Reino Unido: OUP, 2023.
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Um impressionante “manual” sobre o Concílio Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU