02 Agosto 2023
Em 2022, foram registrados 416 casos de violência contra indígenas, dos quais 180 foram detalhados como assassinatos, 60 como diferentes tipos de ameaças e 38 relacionados ao racismo e à discriminação étnico-cultural, segundo o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil (julho de 2023), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Nos quatro anos de presidência do ultradireitista e militar Bolsonaro (2019-2023), foram totalizadas uma média de 373,8 casos de violência por ano.
A causa das populações indígenas na América Latina é um dos eixos dos livros e artigos do jornalista e pesquisador militante Raúl Zibechi (Montevidéu, 1952). Também de um de seus últimos ensaios: Navegar nuestras geografias: pueblos, movimientos y mundos otros, publicado em 2023 pelo projeto autônomo Libertad Bajo Palabra e por DesInformémonos (periodismo de abajo) do México.
O livro reúne vinte trabalhos de Zibechi, que começaram em Jalisco e Cidade do México e terminaram em Wall Mapu (territórios do povo mapuche). A entrevista a seguir foi realizada por e-mail.
A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 01-08-2023. A tradução é do Cepat.
No México, você conheceu a realidade do povo Otomí, as ocupações e a resistência às “desapropriações”. O que você destacaria sobre suas formas de organização?
As quase duas dezenas de visitas que fiz naquele ano aos movimentos foi na condição de membro da equipe do Desinformémonos, que, como você sabe, é um portal ligado às lutas de baixo. No espaço ocupado pelos e pelas otomis, o prédio do INPI (Instituto Nacional dos Povos Indígenas), pude ver a presença em massa de mulheres com seus filhos e filhas, a quase ausência de homens adultos, embora seja provável que uma parte deles estivesse trabalhando, e alguns jovens que atuavam na segurança e no apoio às atividades públicas.
Elas estão sempre vestidas do modo tradicional de seu povo, com roupas artesanais multicoloridas, porque uma das características desse povo é a riqueza de seus artesanatos, que são uma importante fonte de renda.
Talvez o que eu mais destacaria é a organização na cidade, porque os otomis migraram em grande medida para a Cidade do México. É nela que eles se organizam, algo raro, primeiro para resolver os problemas de moradia, já que habitam em prédios e espaços antigos e precários. Também se organizaram para a venda de seus artesanatos, e esses foram os primeiros passos como povo na cidade.
Penso que outros povos estão seguindo esse caminho. Na cidade, vivem cerca de um milhão e meio de pessoas que se autoidentificam como originárias, muitos têm suas próprias hortas e mercados (tianguis), em um processo que considero que está em pleno desenvolvimento e crescimento.
Também no México, em novembro de 2022, você faz menção especial ao Nuevo Poblado San Gregorio e à luta pela recuperação da terra. Qual é a sua relação com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN)?
Trata-se de um povoado que faz parte das bases de apoio do EZLN nas terras que recuperaram em 1994. O problema é que as políticas sociais dos sucessivos governos têm capturado muitas famílias que deixaram de cultivar a terra e que agora dependem inteiramente dos auxílios estatais, o que as torna reféns das máfias locais que controlam esse auxílio, geralmente, ligadas ao narcotráfico e aos paramilitares.
De fato, o atual governo de López Obrador se destacou por transformar muitas famílias em inimigas do zapatismo. Para receberem o auxílio, exige-se delas que tenham uma quantidade mínima de terra. Como as famílias não as possuem como propriedade, são estimuladas a se apropriarem das terras das bases zapatistas, conquistadas com fortes lutas e, então, operam como paramilitares, em aliança com as piores organizações pró-governamentais, geralmente, treinadas pelo exército mexicano.
Um dos territórios indígenas que você visitou no Brasil foi Tenondé Porá (a duas horas de São Paulo), onde vivem populações Guarani Mbya. Como são afetadas por diferentes políticas de extermínio?
Foi uma das experiências mais fortes que tive, semelhante ao que senti quando conheci o zapatismo em 1995. Os Guarani foram se recolhendo nas matas e áreas pouco acessíveis para escapar da colonização e, desse modo, poder se conservar como os povos que são. Nesse processo, a espiritualidade é central para o cuidado coletivo e a reprodução do povo.
Na história, o principal impacto foi o genocídio, que não parou até hoje, mas que vai assumindo diferentes formas. Agora, eu diria que se trata de genocídio cultural, porque a modernidade urbana que se manifesta nas redes sociais tem um imenso poder de atração sobre as e os jovens. Contudo, encontram modos de enfrentá-lo. Algumas líderes estudaram na universidade e retornaram à comunidade, o que lhes dá uma força enorme para combater o patriarcado.
De fato, um dos principais avanços de Tenondé Porá foi substituir a figura colonial do cacique pela assembleia de líderes nomeados pelas comunidades, onde a maioria são mulheres.
Uma das formas de defesa que possuem, além da participação coletiva diária na Casa de Reza, dançando e fazendo música, é o controle da internet. Só se conectam uma ou duas horas por dia à noite. Desse modo, protegem-se e protegem seus filhos e filhas da devastação da cultura capitalista.
No próximo dia 20 de agosto, ocorrerão as eleições presidenciais no Equador. Que experiência mais chamou sua atenção nos “intercâmbios” com Quito “rebelde”?
Como sempre, a das mulheres. Por um lado, as curandeiras, mulheres que cultivam plantas medicinais e as vendem no mercado central de Quito. Estão organizadas como coletivo e são enormemente respeitadas. Participaram com destaque nos levantes convocados pela CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador).
O outro coletivo de mulheres que eu já conhecia, mas com o qual não havia estado, é o Mulheres de Frente. É um grupo feminista que nasceu na prisão de Quito, entre mulheres condenadas por microtráfico e pequenos roubos, ou simplesmente por serem pobres e da cor da terra.
Mulheres de Frente é o grupo feminista mais poderoso que conheci, formado por vendedoras ambulantes, trabalhadoras do lar, todas com trabalhos precários. Quase todas são indígenas, negras e mestiças. São capazes de montar oficinas produtivas e escolas de formação, com um tremendo poder criativo.
Por outro lado, como o presidente progressista Gabriel Boric, que assumiu o cargo em março de 2022, está respondendo ao movimento pela recuperação de terras desenvolvido pelo povo mapuche?
Da pior maneira possível. Militarizou Wall Mapu com mais blindados e soldados que os governos neoliberais e não processou os carabineiros responsáveis por assassinatos e mais de 400 olhos arrebentados de manifestantes, durante a revolta iniciada em 2019.
O resultado é uma direitização notável da opinião pública que, em grande medida, foi impulsionada pelo fracasso do governo Boric, conservador, neoliberal e tremendamente ineficiente. Boric começou traindo a revolta, poucos dias após ter sido lançada, em novembro de 2019, ao assinar um pacto pela “paz” com toda a direita e nenhuma força, nem personalidade da esquerda.
Boric é o mais claro emergente dessa nova camada progressista, favorável ao extrativismo e profundamente repressiva, tanto que se distingue da direita só pelo discurso.
Que exemplos de movimento e organização “alternativos” você destacaria em Bogotá, após a Paralisação Nacional ou revolta social na Colômbia, iniciada em abril de 2021?
Durante a greve ou revolta, surgiram os “pontos de resistência” nas principais cidades, sobretudo em Cali e bem menos em Bogotá. Em Cali, houve até 25 pontos, já em Bogotá, bem menos. Foram espaços libertados pelas multidões, onde passavam dia e noite, acampando, com panelas comuns, debates, assembleias, espaços de saúde, educativos e esportivos. A polícia não entrava porque havia forte resistência.
Quando a revolta termina, esses espaços se dissolvem, exceto Puerto Resistencia, em Cali, onde se construiu um monumento que é um punho erguido e que foi batizado como Resiste. Contudo, da revolta só resta os grafites e uma nova autoestima, que é muito importante entre as mulheres e os jovens, embora alguns grupos de bairro já existentes também tenham se fortalecido e outros tenham surgido.
Um dos grandes problemas das revoltas é a continuidade das organizações que nascem durante a ação de rua, que tendem a se dissolver quando vem o refluxo. Isso acontece em quase todos os países.
Por último, quais você considera que são as chaves para entender a atual repressão na província argentina de Jujuy, promovida pelo governador Gerardo Morales, da União Cívica Radical (UCR)?
A exploração do lítio. Sempre dissemos que o extrativismo só funciona com a militarização, e é o que mostra de forma transparente o caso de Jujuy. O governador Morales reformou a constituição provincial com sua maioria parlamentar, com o objetivo de extinguir as comunidades originárias porque sabe que são as que resistem à pilhagem em todo o continente. São 400 comunidades que convergiram nas rotas com mestres e professores de escolas públicas e outros funcionários por reivindicações setoriais.
Ainda que Morales seja um político da direita antipopular e repressor, não se deve perder de vista que a militarização avança em toda a Argentina e que o presidente Alberto Fernández decidiu militarizar as principais iniciativas extrativistas, em particular Vaca Muerta, reservatório de hidrocarbonetos.
O último relatório da Correpi (Coordenadoria contra a Repressão Policial e Institucional), que revela a repressão desde 1985, com a volta da democracia, mostra claramente os perfis que a repressão estatal vem adquirindo.
Os dois dados mais importantes são que em cada governo, independentemente da cor política, crescem os assassinatos cometidos por policiais. O segundo é que há cada vez mais mortes sob custódia policial do que por “gatilho fácil” (disparos na rua em pessoas desarmadas).
Os mortos são sempre jovens pobres de pele escura. São os garotos que sobram no modelo atual, que não têm um lugar estrutural digno, nem emprego, nem condições de vida adequadas. São as vítimas da repressão em Jujuy, por exemplo, com a diferença de que os sujeitos do protesto são os povos originários de lá e, muito particularmente, são as mulheres originárias que encabeçam o protesto. Estamos diante de uma repressão colonial e patriarcal que lubrifica a cadeia da extração de lítio.
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“Estamos diante de uma repressão colonial e patriarcal que lubrifica a cadeia da extração de lítio”. Entrevista com Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU