09 Mai 2023
Paz Peña (El Salvador, 1980) não está preocupada apenas com a mudança climática, mas também com o tamanho do poder existe por trás daqueles que dizem estar trabalhando para detê-la. Esta pesquisadora independente tem se concentrado na intersecção entre tecnologias digitais, feminismo e justiça social, em compreender os impactos socioambientais da digitalização, sua relação com as energias verdes e o papel da América Latina nesse cenário. É o que sintetiza em um livro que intitulou Tecnologías para un planeta en llamas (Paidós), no qual repassa os perigos do tecnocapitalismo e a necessidade de uma transição digital justa nesta era de emergência climática e ecológica.
Em um tempo de grande volume de narrativas apocalípticas e futuros distópicos, Peña faz uma pausa para se perguntar de onde vêm esses discursos e a quem servem. “Existe uma espécie de ideia de que o mundo vai acabar e tudo é muito derrotista. No fundo, isso está muito a serviço do poder, pois significa despolitizar muito as pessoas. E, no caso particular da tecnologia, é o momento em que surgem os heróis tecnológicos para dizer: ‘Não se preocupem, vamos salvá-los através de uma nova tecnologia’”, diz Peña.
É quando surgem os planos de grandes milionários como Jeff Bezos e Elon Musk, explica a autora, propondo soluções que passam por ir ao espaço sideral e colocar para fora empresas poluidoras, seguindo uma ideia de superioridade humana. Contudo, o discurso apocalíptico não é exclusivo de milionários excêntricos. “É também uma narrativa de marketing porque no fundo permite justamente a esses heróis tecnológicos, que são os que criam a inteligência artificial, dizer que vão pensar na humanidade”, diz Paz Peña, que analisa a falta de crítica existente no jornalismo tecnológico, que costuma retratar “esses supostos deuses que são os mesmos que, depois, apresentam soluções para os problemas climáticos”.
Não deixa de chamar a atenção da pesquisadora o fato de que, até o momento, o interesse por seu primeiro livro venha apenas de redações que falam sobre temas ambientais e crises climáticas, mas não da seção que publica sobre novas tecnologias.
Nas 179 páginas de Tecnologías para un planeta en llamas, Peña traça um ziguezague entre as realidades e diferenças do Norte e o Sul globais. As apostas e soluções que surgem entre discursos hegemônicos e espaços de resistência em torno de recursos naturais como o lítio e o cobre, chaves na transição energética.
A entrevista é de Yasna Mussa, publicada por El País, 08-05-2023. A tradução é do Cepat.
No lançamento, você disse que, na realidade, este é um livro sobre o poder.
A ideia do livro tem a ver com quanto poder, na crise climática, estamos entregando a um punhado de atores que são as grandes empresas tecnológicas. Isso me interessa muito porque trabalho há bastante tempo com tecnologia e você pode ver em sua vida diária o poder que essas grandes empresas tecnológicas possuem: desde conhecer todos os seus dados pessoais no trabalho ou em áreas públicas.
Depois da pandemia, agora estão dentro da sua casa, na sua vida íntima, estão em outras esferas que antes não eram consideradas produtivas e agora são por meio da produção de dados pessoais, que funciona como o grande coração do tecnocapitalismo. E ocorre que já possuem esse poder extraordinário que me parece histórico a nível do capitalismo mundial.
O que me chamou a atenção quando comecei a fazer a pesquisa para este livro é a forma como essas mesmas empresas tecnológicas, agora, estão se repensando como as grandes solucionadoras ou parceiras da transição energética. Não só elas, também as políticas públicas estão as colocando nesse papel e, então, esse poder que possuem vai aumentar. É muito preocupante porque é uma crise política e agimos dando a um punhado de atores a possibilidade de responder com uma proposta tecnológica, que é importante, mas não é fundamental.
Qual é o mundo que morre com a crise climática?
Morre um mundo que é muito particular: o desenvolvimento do Norte global, mas dentro da América Latina você consegue ver diferentes mundos em resistência, muitos a ponto de morrer, mas que nunca morrem. Por exemplo, Silvia Rivera Cusicanqui, da Bolívia, fala sobre realidades abarrotadas, que no fundo se misturam um pouco, mas cada uma vive em sua própria temporalidade.
Eu penso que é possível acabar com um tipo de consumo, uma forma de ver o mundo em termos de natureza. Nesse sentido, acredito que a América Latina tem uma visão que pode ser superchave nesta crise planetária.
Você propõe deixar de falar em era do antropoceno e começar a falar em capitaloceno...
Utilizo o termo capitaloceno porque efetivamente me pareceu importante situar politicamente qual é o ponto de crítica ao assunto e não me pareceu que tinha lógica falar do poder das grandes empresas tecnológicas dizendo que era antropoceno. No fundo, o poder que as grandes empresas tecnológicas têm hoje é um poder em termos do capitalismo que cultivam e particularmente na vida que estão dando a esse capitalismo.
Não só em termos de extrativismo de dados, extrativismo de recursos naturais para fazer as tecnologias, mas também, por exemplo, hoje, existem muitos precedentes e denúncias de que as mesmas grandes empresas tecnológicas estão ajudando a indústria de energia fóssil a aumentar e melhorar através da inteligência artificial. Ou seja, no fundo, é uma indústria basicamente interessada em continuar com o atual modelo econômico.
Costuma-se falar da inteligência artificial como uma dicotomia: uma contribuição maravilhosa ou uma ameaça à humanidade. Não há muitas nuances. No que é importante se concentrar quando falamos de inteligência artificial?
Penso que essa é uma questão-chave, hoje, para o poder tecnológico. Como estranhamente, em algum momento, esquecemos que isso tem um dono e que tem uma ideologia[?]. Este livro se preocupa em entender quem é esse dono e está forçando a ideia de que comecemos a compreender que toda tecnologia tem um efeito material.
Não pode haver tecnologia digital sem materialidade. O movimento ideológico fala da nuvem, do etéreo, como se a tecnologia fosse uma questão que está fora e que não tem qualquer impacto socioambiental.
Nesse caso em particular, o livro busca forçar as pessoas a olharem um pouco para isso, porque permite entender basicamente que os efeitos socioambientais disso que se supõe que é etéreo são reais. Então, você começa a ver qual é o custo que significa fazer uma transição digital nesse contexto da transição energética. Na minha opinião, é também um problema sociopolítico.
Paz Peña tem se perguntado por que a inteligência artificial é um assunto feminista. É assim que denominou o projeto em que atua junto com a organização brasileira Coding Rights, com o qual pretendem mostrar porque os efeitos da inteligência artificial são uma pauta feminista. Com isso, analisam os vieses que podem existir em seu desenho e como isso afeta, por exemplo, pessoas racializadas ou segundo o gênero. Um olhar que compartilha em seu ensaio com uma visão panorâmica de quem conhece o campo em que atua, há anos, com projetos de pesquisa e políticas públicas.
Pode existir uma inteligência artificial feminista?
É impossível fazer uma inteligência artificial feminista porque, afinal, o que constrói é uma visão binária do mundo: você é A ou você é B, porque precisa ser reduzida a um banco de dados e não se pode permitir essas áreas claras, escuras e cinzas, que me parece ser a coisa mais bonita da agenda feminista. Ou seja, sair desse binarismo.
Mas, sim, é preciso que exista uma inteligência artificial fora do tecnocapitalismo. Essa inteligência artificial feminista, primeiro, tem que se mostrar completa e sair dessa ideia da tecnologia como uma varinha de condão.
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“A América Latina tem uma visão que pode ser superchave nesta crise planetária”. Entrevista com Paz Peña - Instituto Humanitas Unisinos - IHU