“Depois da Reforma Trabalhista e da terceirização, o que temos observado concretamente é um caudal de fraudes, especialmente no campo do combate ao trabalho análogo ao de escravidão”, diz o auditor fiscal do trabalho
A desumanização da vítima é o aspecto que caracteriza o trabalho escravo contemporâneo e o assemelha à escravidão clássica de séculos passados, diz Marcelo Gonçalves Campos, que há três décadas acompanha fraudes no mundo do trabalho, especialmente nos processos de terceirização. “A analogia que fazemos entre trabalho escravo contemporâneo e a escravidão clássica é quando nos defrontamos, hoje, com um cidadão sujeito de direitos legalmente, para os quais, na prática, estes direitos são negados. Portanto, do ponto de vista do usufruto de direitos negados ao trabalhador, o trabalhador se aproxima, de forma analógica, àquele trabalhador que, no Império e na Colônia, era um indivíduo sem direitos. Essa é a marca fundamental da escravização contemporânea e da analogia com o artigo 149 do Código Penal”.
Em conferência virtual intitulada “Pseudoterceirização, agronegócio e trabalho escravo contemporâneo no Brasil”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Campos relaciona a terceirização a práticas de trabalho escravo contemporâneo, especialmente no caso de trabalhadores migrantes que vêm do Nordeste para trabalhar em fazendas do Rio Grande do Sul e Minas Gerais. “Eles vêm intermediados através de ‘gatos’ informais e não lhes são garantidos alojamentos dignos, direitos mínimos nas frentes de trabalho, como equipamentos de proteção individual, água potável etc.”
Na avaliação do entrevistado, o crescente fenômeno da terceirização no país “nada tem a ver com a estratégia empresarial de dotar as empresas de maior fluidez e maior dinâmica, maior capacidade de relacionamento com os entes no mundo do capital das empresas. A terceirização no Brasil tem como conteúdo uma estratégia de suprimir direitos laborais”.
A seguir, publicamos a conferência de Marcelo Campos no formato de entrevista.
Marcelo Gonçalves Campos é formado em História e em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Coordena o Projeto de Combate ao Trabalho Análogo ao Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Minas Gerais – SRTE/MG.
IHU – Por que nas últimas décadas a terceirização aumentou no Brasil?
Marcelo Campos – O ordenamento jurídico brasileiro, por princípio, estabelece de uma forma padrão uma relação direta entre patrões e empregados. Segundo a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, esta seria a quadratura padrão: há um patrão e um empregado. O patrão com suas obrigações e o empregado também, com obrigações e direitos. Há cerca de 30 anos, a relação direta entre patrões e empregados vem sendo questionada. A possibilidades de uma relação não direta e atípica entre patrão e empregado já ocorria anteriormente, via contratos de natureza civil, como parcerias, comodato, ou seja, contratos que afastavam a possível relação empregatícia. Mas eles eram raros e, quando necessários, enfrentados.
O processo de globalização das economias no âmbito internacional repercutiu fortemente no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, nos governos de então e no próprio parlamento, e levou a uma conformação dessas possibilidades contratuais e a uma forte tendência de tentar relativizar a relação direta entre patrões e empregados. A terceirização ganhou um amplo espaço de discussão e de constantes tentativas de atualização na legislação trabalhista. Os doutrinadores e defensores da terceirização, desde a década de 1980 e 1990, vendiam a terceirização como uma forma de gestão do setor empresarial, com vistas a aumentar a sua capacidade, a sua dinâmica, flexibilizar as formas de relação e dotar o sistema empresarial com uma maior eficácia e eficiência.
Nunca nenhum doutrinador que postulava a aprovação de uma nova legislação relativa à terceirização colocava a terceirização como estratégia empresarial para maximizar os interesses e os lucros do setor patronal, via de regra pela supressão dos direitos laborais. Esse nunca foi um argumento utilizado, seja pelo parlamento ou pelos tribunais. Até porque se alguém, de forma clara, diz que vai aprovar uma legislação para tirar direitos dos trabalhadores, terá dificuldade em aprová-la. Todas as propostas e tentativas de introdução à flexibilização e a flexibilização da forma de contratação vinham com um douramento da pílula e com o argumento de que, ao introduzir a terceirização, as empresas ficariam mais competitivas, mais dinâmicas, e que seria também um benefício para os trabalhadores, especialmente na medida em que aumentariam e criariam muitos empregos. A realidade, a partir de todos esses anos e da reforma trabalhista de Temer, mostra que isso não se concretiza.
IHU – Historicamente, como a terceirização foi introduzida e tratada na legislação trabalhista brasileira?
Marcelo Campos – Anteriormente à mudança da legislação no período Temer, a terceirização vinha sendo tratada na lei n. 6.019 e à luz do enunciado 331, do Tribunal Superior do Trabalho – TST. O enunciado 331 limitava as formas e possibilidade de terceirização de mão de obra das empresas, estabelecendo que a terceirização poderia ocorrer dentro de regramentos na atividade meio do empregador e vedava a sua utilização na atividade finalística. Por exemplo, se um produtor de café tivesse que contratar trabalhadores na lavoura, sob a égide do enunciado 331, seja na colheita, seja nos tratos culturais ou no plantio, ele teria que fazer isso contratando diretamente os trabalhadores. É claro que atividades paralelas, como uma construção civil na fazenda ou uma reforma de alojamento, poderiam ser feitas com contratos de prestação de serviço a partir de uma outra empresa. Isso tinha alguma consequência direta para os empregadores porque, na perspectiva deles, eles estavam mais amarrados à medida que teriam que fazer a contratação formal dos trabalhadores e garantir seus direitos. Para os trabalhadores, a perspectiva dessa limitação na atividade fim da terceirização era a da garantia mais efetiva dos seus direitos.
Ocorre, como todos nós sabemos, especialmente no meio rural, que os índices de contratação informal são imensos e há uma tradição cultural de não formalização dos vínculos de trabalho e de não respeito aos direitos trabalhistas. Mas, em contrapartida, há uma maior atuação da auditoria fiscal do trabalho e do Ministério Público do Trabalho. A partir de meados da década de 1990, começou a haver e a se fortalecer uma reação do setor patronal pela presença dessas instituições de fiscalização e também pela atuação do movimento sindical representativo dos trabalhadores, que cobrava pela aplicação da legislação laboral. O setor patronal se organizou através de suas representações no parlamento e nos governos, com vistas a mudar a legislação no sentido de flexibilizar a terceirização para além daquele limite estabelecido no enunciado 331 do TST, ou seja, a fim de permitir que a terceirização fosse aplicada independentemente da atividade fim e atividade meio.
No governo FHC houve muitas tentativas de fazer isso e quase houve a aprovação dessa mudança. Nos governos Lula essa questão foi afastada, assim como no governo Dilma, mas, no início do governo Temer essa questão voltou com força no parlamento e no próprio governo que, de alguma forma – ou de todas as formas – representava muito o setor patronal. A reforma trabalhista de Temer nos brindou com uma reforma trabalhista ampla e com mudanças na questão da terceirização. Aprovou-se uma nova legislação sobre a terceirização, permitindo que ela ocorresse não mais conforme o limite estabelecido pelo enunciado 331 do TST, restringindo a atividade meio. A nova legislação concedeu uma autorização para que a terceirização ocorra tanto na atividade meio quanto na atividade finalística. Todos nós que convivemos com a reforma, não só as do governo Temer, mas também as que ocorreram no governo Bolsonaro, sabemos como foram vendidas essas reformas para o conjunto da sociedade.
A partir dessas reformas, especialmente da legislação referente à terceirização, quando nos defrontamos com as fiscalizações no campo ou na cidade, mas especialmente no campo, percebemos que a leitura da reforma trabalhista de muitos empregadores é a de que não há mais direitos garantidos para os trabalhadores porque a terceirização exercida na atividade fim e na atividade meio é tal como não tivesse qualquer limite. Alguns empregadores argumentam que determinada atividade está sendo terceirizada e, portanto, eles não têm nenhuma responsabilidade. Isso não é verdade, e mesmo lendo a atual legislação da terceirização, precarizada, não se pode depreender que a terceirização esteja ilimitada.
A própria terceirização precarizada e aprovada estabelece regras para sua utilização. Se a auditoria fiscal do trabalho ou o Ministério Público chegam em uma fazenda e se defrontam com casos de alegação de terceirização, cabe-nos verificar se aquela terceirização atende aos ditames, limites e requisitos exigidos pela atual e precarizada legislação. Apesar de muitos imaginarem que não, existem alguns limites.
Pseudoterceirização, agronegócio e trabalho escravo contemporâneo no Brasil:
IHU – Pode exemplificar?
Marcelo Campos – Por exemplo, a relação de terceirização entre as partes precisa estar regulada por contrato escrito e as partes serem competentes. Se um fazendeiro contrata uma empresa de terceirização para colher e plantar alho ou maçãs em sua propriedade ou para colher uva, ele precisa contratar uma empresa devidamente estabelecida sob o olhar da legislação precarizada vigente. Que tipo de empresa ele precisa contratar? Os requisitos estão na lei. A empresa de terceirização precisa ter idoneidade, capacidade financeira, capital social mínimo em relação ao número de trabalhadores que contrata. Uma empresa que tem um capital social de 5 mil reais vai poder contratar e intermediar, na relação com o serviço, um número muito reduzido de trabalhadores. Esses são aspectos que nós, quando estamos em campo, precisamos verificar. Então, se eu chego em determinada fazenda e ouço argumentos de que o trabalho foi terceirizado e o proprietário da fazenda não tem responsabilidade sobre esse processo, isso é um problema.
Na lei da terceirização, o tomador do serviço terá responsabilidade, seja a terceirização lícita ou ilícita. Ela é ilícita quando não tiver um contrato formal, e se a empresa contratada não tiver capital social mínimo de acordo com os trabalhadores ali empregados. Por exemplo, se em uma fazenda tem 100 empregados, mas o capital social da empresa não está compatível com aquele número de empregados, obviamente ela não está apta a ser contratada para aquele processo. Então ela não será, pela auditoria fiscal do trabalho, aceita. Verificada a ilicitude da terceirização, se ela não cumpre os requisitos legais, ou se ela cumpre os requisitos legais, mas insere trabalhadores de uma forma precarizada, com práticas de exploração de trabalho escravo, é claro que devemos questionar essa terceirização. Infelizmente, mesmo nas instituições públicas, mesmo na auditoria fiscal do trabalho, no Ministério Público do Trabalho e no judiciário, nos defrontamos, não raro, com posicionamentos segundo os quais a terceirização foi liberada e é um oba-oba. Não é. Precisamos, frente a cada caso concreto, verificar os requisitos formais.
Trago um contraponto: suponhamos que um jovem de 22 anos se candidate à Presidência da República, estando filiado a um partido. Será que ele vai conseguir se candidatar? Não, porque não tem um dos requisitos necessários, isto é, uma idade adequada. A idade de 22 anos não é a idade mínima adequada. Da mesma forma, na atual lei da terceirização, existem requisitos legais para que a empresa terceira possa figurar naquela situação como empresa terceira e empregadora. Encontrando a falta de requisitos, é necessário que as instituições, especialmente a auditoria fiscal do trabalho, que é a primeira instituição que tem contato com a terceirização, descaracterize a presença daquele terceiro e estabeleça o vínculo com o tomador.
IHU – O que tem observado em relação à prática da terceirização após a reforma trabalhista?
Marcelo Campos – É inegável que os processos de terceirização, anteriormente à reforma trabalhista, estavam crescendo, assim como as fraudes e tentativas de burlar aqueles limites estabelecidos pelo STF. Mas, depois da reforma trabalhista e da terceirização, o que temos observado concretamente é um caudal de fraudes, especialmente no campo do combate ao trabalho análogo à escravidão. Encontramos, não raro, “gatos”, intermediadores de mão de obra, travestidos de pequenos empreendedores, de empresários, que não guardam qualquer condição de figurarem como terceiros no processo de terceirização, mesmo nesta precarizante terceirização existente.
O fenômeno da terceirização no Brasil, no meu sentir como auditor fiscal do trabalho e como quem convive com esse fenômeno há décadas, nada tem a ver com a estratégia empresarial de dotar as empresas de maior fluidez e maior dinâmica, maior capacidade de relacionamento com os entes no mundo do capital das empresas. A terceirização no Brasil tem como conteúdo uma estratégia de suprimir direitos laborais. O trabalhador terceirizado, que é inserido muitas vezes ao lado de um trabalhador não terceirizado, vive um processo que subtrai direitos. Muitas vezes os trabalhadores terceirizados têm uma pior condição de trabalho, seja na formalização, seja nos direitos cotidianos, como férias e 13º salário, seja em relação ao próprio valor do salário se comparado ao valor dos salários da tomadora, mas especialmente as condições de saúde e segurança desses trabalhadores são muito deterioradas, quando não negadas em sua inteireza.
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IHU – Qual é a expectativa acerca do tratamento desta matéria no terceiro governo Lula? Espera alguma mudança em relação à legislação?
Marcelo Campos – A expectativa, com mais ampla participação sindical e da sociedade, e o que se almeja e espera, é que a lei precarizante seja revista na medida do possível, aumentando aqueles dispositivos que permitam um maior enfrentamento das fraudes e do conteúdo de utilizar-se da terceirização com o intuito de suprimir e precarizar direitos.
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IHU – Por que ainda persiste no Brasil trabalho em condições análogas à de escravo? O que é o chamado “trabalho escravo contemporâneo”?
Marcelo Campos – Este é um fenômeno que, para ser compreendido, precisamos retroceder até a escravidão clássica da Colônia e do Império. É importante observar que o Brasil foi o último país do mundo a fazer a libertação dos escravos. Durante mais de 300 anos, nossa economia e nosso modo de produção estiveram baseados na exploração de mão de obra escrava, na exploração do trabalhador que não possuía nenhum direito; ele nem sequer possuía um status de pessoa e cidadão.
É preciso observar que a escravidão, que passou pelo período da Colônia e do Império, não é algo que possamos estereotipar e dizer que era relativo a pessoas más e homens cruéis. Não se tratava de maldade ou crueldade; era o modo de produção da época. Era a forma como o capitalismo estava se formando, fazendo acumulação primitiva, e a forma como grandes empreendedores, relacionados ao tráfico de pessoas, ao tráfico negreiro, faziam imensas fortunas e, com elas, dinamizavam o próprio sistema capitalista. Se lermos o livro de Luiz Felipe de Alencastro, intitulado Trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (Companhia das Letras, 2000), veremos a importância do tráfico negreiro como principal motor da economia capitalista naquele momento. Ter essa dimensão de que o negócio da escravidão na Colônia e no Império era algo para além de mera crueldade de fazendeiros é importante porque 300 anos de escravidão impactaram a cultura no mundo laboral brasileiro.
Em 1888, com a “liberdade” dos escravos pela Lei Áurea, não se enganem, não houve uma libertação dos cidadãos negros e afrodescentes que estavam trabalhando no Brasil. Não houve por que a elite brasileira, em 1850, havia criado as condições para aprovar a chamada lei de terras, caso houvesse a libertação – e eles sabiam que ela iria ocorrer, principalmente por causa do capitalismo mais dinâmico da Inglaterra naquele momento. Resumidamente, esta lei diz que nenhum acesso à terra será dado no Brasil a não ser pela sua compra em dinheiro. Sabemos que os negros, os escravizados, não possuíam rendimento e, portanto, não teriam acesso à terra. O Império, quando aprovou a Lei Áurea, não fez a previsão de indenização aos escravos. Quem foi libertado em 13 de maio de 1888, foi tornado livre, mas acham que no dia 14 de maio eles estavam livres para ofertar, negociar e vender sua mão de obra na perspectiva do capitalismo? Obviamente não. Quem estava escravo no dia 13, do ponto de vista real, continuou escravo a partir do dia 14.
É importante observar como evolui a legislação trabalhista no fim do século XIX e pelo menos na primeira metade do século XX. Todos sabemos que a sociedade brasileira, no fim do Império e na primeira metade do século XX, sempre foi majoritariamente agrária; a maioria da população estava no meio rural e não houve a criação de nenhuma legislação pós-Lei Áurea garantindo direitos aos trabalhadores, especialmente no meio rural. No fim do século XIX, a partir da vinda de imigrantes, especialmente italianos e outros para o Brasil, esses trabalhadores trouxeram formas de organização e de lutas, mas elas se operacionalizaram basicamente no meio urbano. Então as primeiras legislações que vão sendo criadas no século XIX são limitantes a esse público, especialmente no meio urbano. As legislações aplicadas no meio rural, quando aplicadas, eram contratos de natureza civil; não havia contratos de natureza trabalhista.
Quando foram criadas a legislação trabalhista e a CLT, no governo Getúlio Vargas, é importante que tenhamos em mente que havia dispositivos na CLT dizendo claramente que ela não se aplicaria aos trabalhadores rurais. Isso mostra a força do setor patronal rural. A CLT nasce excluindo os trabalhadores rurais, mesmo eles sendo a maioria no Brasil. Somente na década de 1960, com o estatuto do trabalhador rural, que alguns direitos são criados para os trabalhadores rurais.
Temos que contextualizar essa legislação com o que ocorria na sociedade naquele momento. Qual era o fenômeno que estava ocorrendo no meio rural naquele momento? As ligas camponesas, capitaneadas por Francisco Julião, no Nordeste, que propunha um questionamento sobre a exploração dos trabalhadores, exigindo a garantia de direitos. Quando nasce o estatuto dos trabalhadores rurais, é como se o parlamento dissesse aos trabalhadores: “Não sigam Francisco Julião porque nós, o parlamento e o Estado, estamos trazendo para vocês proteção e direitos”. Indaguemos: o estatuto do trabalhador rural foi aplicado? Não. Os direitos lá presentes não se concretizaram. O estatuto do trabalhador rural e as legislações que vieram depois são o que se costumava ser chamado no Império de “lei para inglês ver”.
Na década de 1970, surge uma nova legislação para o meio rural, a lei n. 4.889, que agregava os direitos presentes no estatuto do trabalhador rural e aumentava um pouco mais esses direitos, mas ainda não era a aplicação da CLT. Nesta época, estavam ocorrendo no Brasil a Guerrilha do Araguaia e a ditadura militar. A guerrilha estava tentando produzir uma revolução do proletariado, via uma revolução do campesinato. Muito espertamente, a elite aprovou, no Congresso Nacional, a lei n. 5.889, como se dissessem aos trabalhadores: “Não sigam José Genoíno” porque estamos trazendo, nesta lei, os direitos para vocês. A lei n. 5.889 foi aplicada, diminuiu os índices de informalidade, garantiu efetividade de direitos aos trabalhadores? Não, porque essas foram leis criadas para gerar uma certa ilusão, uma vez que não existe legislação que se efetive sem instrumentos de Estado que garantam sua aplicação. No meio rural, naquele período a presença de Varas do Trabalho era praticamente inexistente, a presença da inspeção do trabalho era algo completamente inexistente e o Ministério Público não existia com as competências que hoje conhecemos. Então, passamos, do fim do século XIX até o fim da década de 1970 e 1980, com legislações não efetivadas para os trabalhadores rurais em uma sociedade prevalentemente rural.
Esse fenômeno de negação dos direitos infelizmente é uma herança que a sociedade possui do período escravocrata da Colônia e do Império, onde o setor patronal, mesmo depois da abolição, sempre atuou no sentido de que direitos laborais não fossem garantidos aos trabalhadores. Persiste a ideia de que oferecer trabalho é quase uma dádiva, que o trabalhador tem que estar satisfeito apenas pela oportunidade do trabalho, com trabalho sem direitos. Essa é uma perspectiva que vivenciamos nos séculos XIX e XX.
A escravidão contemporânea nas cadeias globais de valor: dinâmicas sociais e efeitos territoriais:
IHU – Esse cenário tem se modificado nas últimas décadas?
Marcelo Campos – Esses fenômenos evoluem ao longo de anos, mas é inegável que foram importantes todos os movimentos que permitiram romper com a ditadura e fizeram retornar à democracia pela constituinte e pela Constituição de 1988. A Constituição empoderou as organizações sociais, sindicais, as instituições do Estado, como o Ministério Público do Trabalho, a justiça do trabalho e a auditoria do trabalho, dotando essas instituições estatais com competências e prerrogativas que lhes permitiram iniciar, a partir de demandas do conjunto da sociedade civil, uma presença civil no meio rural, combatendo as irregularidades e exigindo que empregadores formalizassem as relações laborais e garantissem os direitos aos trabalhadores.
Na medida em que começamos esse processo de interiorização das instituições do mundo do trabalho na década de 1990, isso obviamente criou uma pressão sobre o setor patronal e teve como contrapartida do próprio setor patronal uma estratégia de buscar formas de flexibilização da legislação trabalhista aplicável. A atuação do setor patronal é uma reação a uma maior presença do Estado e a uma maior presença das instituições representativas dos trabalhadores pós-Constituição Federal. É uma reação que se materializa nas tentativas de introduzir formas contratuais alternativas à CLT, alternativas ao vínculo clássico da típica relação de emprego, via contratações exóticas, ou via formas de contratação do setor patronal para introduzir contratações, como é o caso da terceirização.
IHU – Que relações estabelece entre a terceirização e o trabalho em condição análoga à de escravo? Como esse tipo de situação tem ocorrido no país?
Marcelo Campos – O que é trabalho escravo? Às vezes há muita confusão e muitas pessoas pensam que em qualquer situação em que haja a negação de direitos há a caracterização de trabalho escravo. Sim, no trabalho escravo há uma ampla negação de direitos, mas, às vezes, um mero atraso salarial não se configura como trabalho escravo, uma jornada episodicamente além dos seus limites também não irá caracterizar trabalho escravo.
A legislação penal foi atualizada no governo Lula, e o artigo 149 do Código Penal ganhou uma nova redação porque previa, desde a década de 1940, a possibilidade de alguém ser submetido ao trabalho análogo ao de escravo. Mas de 1940 até 1995, não havia política de Estado de combate ao trabalho escravo. A própria redação antiga do artigo 149 era capciosa; era o que os doutrinadores chamam de tipo aberto, que dizia mais ou menos assim: “submeter alguém à condição análoga à de escravo, pena de tanto a tanto”. Tanto o conjunto da sociedade quanto os operadores do direito tinham uma visão equivocada e estereotipada do que seria uma condição de trabalho análoga à de escravo. No conjunto da sociedade, alguém entende trabalho escravo como um trabalhador acorrentado, açoitado e sem condição de ir e vir. Ora, se a escravidão no Brasil fosse depender de que todo escravo estivesse acorrentado, açoitado e impedido de ir e vir, não teria dado certo. Não é isso que caracteriza o trabalho escravo na Colônia e no Império. O que o caracterizava o trabalho escravo era que o ordenamento jurídico, segundo o qual aquele ser humano que foi traficado da África para o Brasil não tinha características humanas, não tinha características de um ser detentor de direitos. Ele tinha equivalência a um animal de carga, como uma mula, um burro e poderia ser transacionado já na chegada, no porto, como mercadoria. Era vendido como mercadoria e, como um ser não detentor de direitos, era explorado no meio urbano e rural. Isso estava na lei. Ele era coisa, ele era objeto. Um fazendeiro que quisesse fazer dinheiro de modo rápido, certamente tinha como bem mais valioso o seu escravo, o qual poderia vender. Essa era a característica da escravidão: o ser humano escravizado era visto como objeto do ponto de vista social, era visto e considerado objeto do ponto de vista jurídico. O Estado, com suas ferramentas, se incumbia de garantir a ordem. Ou seja, se um trabalhador escravo se revoltasse, o dono poderia levá-lo ao tronco e açoitá-lo. A lei previa isso. Mas é claro que ninguém levaria ao tronco, todos os dias, todos os trabalhadores porque isso impactaria diretamente a produtividade. Todo escravo era informado que se tentasse fugir, o capitão do mato iria atrás.
Quando se criaram os quilombos, como o de Zumbi dos Palmares, o Estado se organizava para destruir essa forma alternativa de organização dos escravizados que tentavam buscar a liberdade. Não era o fazendeiro que precisava correr atrás do escravo fugido; o Estado corria atrás dele para mantê-lo cativo. Quando, modernamente, o Código Penal refere-se em submeter alguém à condição análoga de escravo, não é submeter essa pessoa a uma condição meramente de supressão da liberdade de ir e vir, porque esse não era um elemento essencial caracterizador da escravidão na Colônia e no Império.
A analogia que se faz e que nós devemos perseguir é a desumanização da vítima. Se encontramos um trabalhador na colheita de uva, de maçã ou de café, ao qual não são garantidos os direitos previstos na Constituição Federal e na CLT – direitos como formalização do vínculo empregatício, por exemplo –, isso é um problema porque a formalização é a porta de entrada do trabalhador-cidadão para o mundo dos direitos previstos na legislação. Se o trabalhador não está formalizado, ele não possui direitos. Além disso, se não está formalizado, ele é traficado: trabalhadores migrantes vêm do Nordeste para trabalhar no Rio Grande do Sul e no Sul de Minas Gerais. Eles vêm intermediados através de “gatos” informais e não lhes são garantidos alojamentos dignos, direitos mínimos nas frentes de trabalho, como equipamentos de proteção individual, água potável etc.
A analogia que fazemos entre trabalho escravo contemporâneo e a escravidão clássica é quando nos defrontamos, hoje, com um cidadão sujeito de direitos legalmente, para os quais, na prática, estes direitos são negados. Portanto, do ponto de vista do usufruto de direitos negados ao trabalhador, o trabalhador se aproxima, de forma analógica, àquele trabalhador que, no Império e na Colônia, era um indivíduo sem direitos. Essa é a marca fundamental da escravização contemporânea e da analogia com o artigo 149 do Código Penal.
Especialmente com a mudança na redação do artigo 149, que ocorreu no governo Lula, hoje temos quatro hipóteses de trabalho escravo contemporâneo. A primeira é o trabalho forçado. Essa hipótese é a menos presente na realidade brasileira, que é quando o indivíduo, seja pela força das armas, seja por uma pressão física e psicológica, não consegue se desvincular da relação de exploração.
A servidão por dívida é a segunda hipótese. É quando alguém, enredado em dívidas ilegais, tenta romper com aquela relação de trabalho, mas o patrão ou gerente da fazenda alega que ele só poderá ir embora quando quitar a dívida. Como ele não vai conseguir quitar a dívida, ele só conseguirá ter liberdade no dia em que o trabalho acabar. Essa é uma das formas mais cruéis da escravização contemporânea porque antigamente o escravo possuía valor de troca, enquanto o escravo contemporâneo não possui valor nenhum a não ser a prestação daquele trabalho enquanto o trabalho interessar àquele que o explora.
A terceira forma é a jornada exaustiva que pode ocorrer em duas dimensões, pela quantidade de horas trabalhadas e pela intensidade das horas trabalhadas. Pela quantidade, todos nós conhecemos os limites de jornadas estabelecidos pela legislação. Em geral, oito horas diárias. Se alguém trabalha 14, 16 horas diárias, não tem intervalo intrajornada de 11 horas, não tem descanso semanal remunerado, trabalha aos domingos, feriados, isso caracteriza uma situação de trabalho análogo à de escravo pela quantidade de horas trabalhadas. Essa é uma realidade que encontramos a rodo no meio rural.
Existe também a jornada exaustiva pela intensidade. Existem atividades que, para executá-las, o trabalhador despende grande energia e força física. Vou citar o exemplo do corte de cana-de-açúcar, que era muito comum, especialmente na década de 1980, quando os trabalhadores cortavam cana-de-açúcar com facão. Os trabalhadores não aguentavam o número de esforços e movimentos repetitivos que faziam. Mesmo em uma jornada hipotética de oito horas, eles não aguentavam, entravam em exaustão e muitos morriam por exaustão. Nos frigoríficos têm atividades repetitivas extremamente intensas que podem levar a uma caracterização de trabalho escravo por jornada exaustiva em razão da intensidade.
A última hipótese de trabalho análogo à condição de escravo prevista na legislação é exatamente o trabalho degradante, que é a hipótese mais presente, ou seja, a supressão do conjunto dos direitos laborais do trabalhador. Hoje, em muitos trabalhadores são levados a verdadeiras pocilgas, onde não lhes são garantidos direitos, não tem colchão, não tem roupa de cama, não tem local para refeição, os banheiros são fétidos, os alojamentos degradados e, na frente de trabalho, não é garantido o conjunto dos direitos. Quando ocorre a supressão dos direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista, estamos diante do trabalho degradante. Essa é a hipótese mais presente de trabalho análogo ao de escravo.
Para a caracterização do trabalho escravo, não é necessário que estejam presentes essas quatro hipóteses; basta uma. Na quase totalidade dos casos, encontramos mais de uma hipótese. Estávamos fazendo o enfrentamento no combate ao trabalho escravo desde 1995, com a política pública criada no governo FHC e aprofundada nos governos Lula e Dilma, que sobreviveu às tentativas de destruição nos governos Temer e Bolsonaro. Certamente é possível diagnosticar uma presença muito maior e mais intensa da terceirização nos ambientes de trabalho e, na quase totalidade, a terceirização ilícita, que não atende aos requisitos mínimos previstos na lei precarizada em vigor. É importante ter clara essa dimensão: a terceirização prejudica os trabalhadores, suprime os direitos laborais constitucionais e da legislação infraconstitucional, torna a vida dos trabalhadores, no limite do trabalho escravo, sem direitos e, portanto, precisa ser enfrentada.
A nossa orientação na auditoria fiscal do trabalho é tentar fazer o enfrentamento dessa questão com as ferramentas que ainda existem na legislação atual, mas temos a esperança de que a sociedade refletirá sobre esses acontecimentos e realizará mudanças na legislação, impedindo que o que está ocorrendo continue a ser, ou seja, que essa legislação seja usada como roubo do direito dos trabalhadores.
É intolerável que nós, da auditoria fiscal do trabalho, do Ministério Público do Trabalho e do Judiciário, sejamos tolerantes com as famigeradas figuras dos “gatos”, dos intermediadores de mão de obra travestidos de empreendedores, que fazem contratos de terceirização com grandes tomadores de serviços, com empreendedores do grande capital, que se dedicam inclusive à exportação dos seus produtos, utilizando-se dessa forma precarizada de trabalho. Entendemos que a Constituição e a legislação trabalhista devem garantir os direitos dos trabalhadores, para que construamos, no futuro, uma sociedade mais justa e com dignidade para quem trabalha. É preciso romper com a cultura escravocrata de que basta oferecer trabalho. O trabalho a ser oferecido tem que estar à luz do ordenamento jurídico nacional e internacional. O trabalho tem que ser trabalho descente.