30 Mai 2023
"A conferência de maio, por reconhecimento explícito dos organizadores, vem na sequência daquela organizada no ano passado para responder ao volume da Pontifícia Academia para a Vida Ética teológica da vida", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 20-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O jornal católico francês La Croix, em sua versão on-line (20 de maio), publica a manchete: “Batalha no Vaticano sobre a moral sexual”. Com o subtítulo: “Dois altos membros do Vaticano apresentaram visões diferentes da Humanae vitae. Um confronto raro, em público. A referência é à conferência realizada nos dias 19 e 20 de maio em Roma, intitulada “Humanae vitae, a audácia de uma encíclica sobre a sexualidade e sobre a procriação”, organizada pela Catedral Internacional de Bioética Jérôme Lejeune.
Na comissão organizadora estavam presentes vários membros da Pontifícia Academia para a Vida: Jean-Marie Le Méné, presidente da Fundação Jérôme Lejeune (e genro dos cônjuges Lejeune); Mounir Farag, presidente do Instituto St. Joseph para a Família, Bioética e Pro Vita (Egito); Elena Postigo Solana, bioética espanhola; Mónica López Barahona, da Cátedra Lejeune; Jokin de Irala Estévez, da Universidade de Navarra (Opus Dei). No entanto, a Pontifícia Academia para a Vida não foi convidada a falar, como se pode constatar no programa dos trabalhos e sobre essa ausência, na abertura dos trabalhos, a própria Barahona guardou completo silêncio.
A conferência recebeu uma mensagem do Cardeal Matteo Zuppi, presidente da CEI, na qual o cardeal destaca dois aspectos: questionar-se "seriamente sobre os problemas colocados pela distância entre as indicações do magistério da Igreja sobre a geração da vida e a vivência cotidiana da sociedade em geral, mas também dos próprios católicos". E “não devemos favorecer a lógica estéril dos alinhamentos, fácil e indevidamente amplificada pelos órgãos de imprensa”.
Os trabalhos foram abertos pelo cardeal Luis Ladaria, prefeito do dicastério para a Doutrina da fé, que só falou em tons positivos da encíclica 55 anos depois de sua publicação (1968). A coragem da Humanae vitae, para o cardeal, é de “natureza antropológica” porque mostrou “a conexão inseparável” que Deus quis entre o significado unitivo e procriativo do ato conjugal.
A moral contraceptiva que se afirmou em contraste com a encíclica coloca em oposição a natureza, o próprio corpo, com um conceito de liberdade que pretende mudar as "condições de vida do amor conjugal". De acordo com essa visão, o ato sexual é considerado absolutamente livre e o corpo é "reduzido a pura materialidade".
Primeiro foi aceita a sexualidade sem filhos, depois foi aceito gerar filhos sem o ato sexual. A própria vida foi reduzida de dom a produto. Por isso a encíclica continua sendo profética ainda hoje, para contrastar os "verdadeiros anti-humanismos" presentes na ideologia de gênero em que não é o corpo que identifica uma pessoa mas a sua orientação e no "transumanismo", em que a pessoa, sendo "reduzida à sua mente", pode transferir a sua essência "para outro corpo humano, para um corpo animal, para um ciborgue, para um simples arquivo de memória”.
A Pontifícia Academia para a Vida se materializou na conferência na forma de uma extensa entrevista na qual o presidente, mons. Vincenzo Paglia, aborda sem hesitação os temas candentes da Humanae vitae. A entrevista foi publicada (aparentemente de forma exclusiva) pelas mídias do Vaticano (VaticanNews) em italiano, inglês, espanhol, francês, português e outros idiomas. E foi amplamente reproduzida por vários sites católicos.
O arcebispo Paglia em tons muito diferentes daqueles do cardeal e mais próximos do presidente da CEI, primeiro convida a continuar a reflexão teológica sobre as questões postas pelo documento e a colocar a sua leitura no contexto mais amplo do magistério de Papa Francisco: “Penso que essa encíclica deva ser lida, hoje, na sua atualidade, que diz respeito à generatividade das relações humanas”.
Numa segunda e importante passagem, afirma: "Na década de 1960", afirma o arcebispo, "a ‘pílula’ parecia o mal absoluto. Hoje temos desafios ainda maiores: a vida de toda a humanidade está em risco se a espiral dos conflitos e das armas não for interrompida, se a destruição do meio ambiente não for detida. Gostaria que houvesse uma leitura que integrasse a Humanae vitae com as encíclicas do Papa Francisco (e de João Paulo II) e com a Amoris laetitia, para abrir uma nova época de humanismo integral". Abandonando assim as leituras parciais porque o desafio da tutela e do desenvolvimento da vida humana deve ser colocado de forma transversal, como nos ensinam a Laudato si' e a Fratelli tutti.
A conferência de maio, por reconhecimento explícito dos organizadores, vem na sequência daquela organizada no ano passado para responder ao volume da Pontifícia Academia para a Vida Ética teológica da vida.
Duas passagens desse livro (530 páginas) causaram discussão: a primeira, de abertura prudente à contracepção e, a segunda, de abertura igualmente prudente à fecundação homóloga. Ao todo 10 linhas e 10 linhas no contexto de um debate teológico que expressa posições e pontos de vista diferentes. Um debate cuja positividade recebeu o aval do próprio Papa Francisco justamente em referência ao livro.
No avião de volta do Canadá, ele respondeu a uma pergunta explícita: “o dever dos teólogos é a pesquisa, a reflexão teológica. Não se pode fazer teologia com um ‘não’ na frente. Depois será o magistério que dirá: ‘Não, você foi longe demais, volte’. Mas o desenvolvimento teológico deve estar aberto, os teólogos estão aí para isso. E o magistério deve ajudar a entender os limites. Sobre o problema dos anticoncepcionais, sei que saiu uma publicação sobre o tema e outros temas matrimoniais. São as atas de um congresso e no congresso existem as ‘ponenze’, depois discutem entre si e fazem as propostas. Devemos ser claros: aqueles que realizaram este congresso cumpriram o seu dever, porque procuraram avançar na doutrina, mas em sentido eclesial, não fora dele”.
Se esses são os fatos, o que pode ser dito para uma avaliação da situação?
Em primeiro lugar, que os membros eclesiais de "alto nível" envolvidos não são dois, como reconstrói o La Croix, mas três. A mensagem do Cardeal Zuppi, o terceiro expoente, foi muito aplaudida no final da leitura na conferência, mas talvez não tenha sido bem compreendida porque ia em outra direção.
O cardeal Ladaria foi muito aplaudido, mas expressou uma visão tradicional inteiramente baseada na condenação do feminismo (responsável pela moral da liberdade e do “corpo que é meu e faço o que quero”), apresentando o mundo católico como uma cidadela sitiada (e talvez incapaz de perceber as dinâmicas do contemporâneo e incapaz de dialogar).
Um pequeno número de acadêmicos da Pontifícia Academia para a Vida evidentemente "não concorda" com uma visão menos rígida dos temas clássicos da moral conjugal. Aberturas que são julgadas como traições à doutrina, como demonstra contraste que se desenrola sobretudo nas mídias sociais, que se tornaram um campo de batalha entre pontos de vista, com pouca profundidade e muita acrimônia.
Para concluir, vale a pena mencionar um ponto de vista oficioso recolhido nos meses passados nos corredores da Pontifícia Academia para a Vida. É basicamente um pesar que poderia ser expresso da seguinte forma: os próprios acadêmicos, aqueles poucos de retaguarda, mas com um razoável séquito no mundo católico conservador, tendem a pensar que D. Paglia, a direção da Pontifícia Academia e os teólogos a quem se alinham com eles, querem se livrar da moral tradicional. Não consideram que seja necessária uma abordagem diferente, um diálogo, uma perspectiva criativa para superar as aporias que uma visão fechada causou.
Sobre a Humanae vitae, por exemplo, não se consegue fazer entender que fechar-se sobre o nexo unitivo e procriativo do ato conjugal levou a desvalorizar, de fato, o valor do amor entre os cônjuges. E é justamente sobre tal aspecto que a Amoris laetitia procura restaurar uma visão mais humana e correta, menos mecanicista e alinhada com uma Igreja em diálogo e de mão estendida.
Portanto, concluía o raciocínio que estamos tentando resumir, essa "frente" faria melhor em buscar um diálogo, em vez de organizar conferências separadas e buscar o confronto a todo custo em nome de uma pretensa autêntica interpretação de quais seriam as tarefas da Pontifícia Academia pela vida.
Vale a pena ressaltar que o debate sobre a moral pessoal e familiar perpassa todas as Igrejas cristãs, chegando por vezes a confrontos diretos e ameaças de cisma. No catolicismo hoje, também graças ao magistério de Francisco, existe um espaço de liberdade real de pesquisa e confronto. Perseguir rigidismos ou fáceis acusações de heterodoxia impede que a Igreja tenha um diálogo fecundo com o contemporâneo e priva a vida histórico-civil de uma voz necessária para salvar o humano comum.
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Humanae vitae: teologia e magistério. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU