Ucrânia e pandemia: releitura político-filosófica. Curso ministrado pelo Prof. Dr. Rafael Bayce, da Universidad de la República, Uruguai

Foto: Reprodução

Por: Rafael Bayce | 26 Mai 2023

O conflito na Ucrânia e a pandemia de Covid-19 foram os temas mais interessantes e partilhados nos últimos três anos em quase todo o mundo. No entanto, a espetacularidade dos fatos e sua publicidade midiática muitas vezes operavam contra a profundidade da reflexão sobre eles. Propomos uma releitura político-filosófica de ambos os temas, procurando desviar a atenção dos aspectos mais sangrentos e dramáticos para analisar os mais profundos e duradouros.

Uma pequena lista de novos pontos focais para reflexão:

1. Declínio acelerado da verdade e da realidade na comunicação midiática em benefício do lucro comercial e da propaganda político-ideológica.

2. Inversão perversa do processo de construção da notícia.

3. Melhoria da indução manipuladora do medo em massa.

4. Aumento do grau de alucinação coletiva e hiper-realidade, com álibi racional e científico.

5. Ditado suave global de uma opinião pública assim formada: maiorias emocionais instantâneas e irreversíveis.

6. O melodrama formativo, modelo do discurso narrativo-midiático.

7. Ciência incompreendida, aplicada como religião fanática.

1. Declínio acelerado da verdade e da realidade na comunicação midiática em benefício do lucro comercial e da propaganda político-ideológica (Bayce, 2020)

Sabemos que há muitos conceitos filosóficos sofisticados de “verdade” e “realidade”. Não vamos revisá-los porque vamos adotar as noções comuns à imprensa e ao povo.

Não nos referiremos ao grau variável de satisfação das esperanças de “realidade” e “verdade” que os destinatários da comunicação jornalística exigem e esperam dela. Quando exigem que a imprensa lhes forneça a “realidade”, aspiram mais ou menos a que lhes digam o que é “real”: tudo o que é espirituoso, que não seja miragem ou ficção construída. Quando aspiram à “verdade”, referem-se, grosso modo, à fidelidade do que foi comunicado pela imprensa em relação ao que recebeu ou como aconteceu. De resto, é ou é o que a imprensa diz oferecer aos seus destinatários: fidelidade do que foi comunicado ao que aconteceu, e do que aconteceu “naturalmente”, sem cair em miragens, muito menos em ficções construídas. Há plena concordância entre o que os receptores da comunicação jornalística exigem no pacto original, de quando a imprensa emergia como uma importante instituição humana (digamos século XIX), e o que seus emissores oferecem. Mas a oferta e a demanda vão mudar.

Cada vez mais, e sem deixar de oferecê-lo ou exigi-lo, os emissores/ofertantes constroem cada vez mais as notícias que emitem, arriscando assim cada vez mais a realidade do que é comunicado e a verdade do ajuste da construção oferecida com a ocorrência básica recebida como insumo básico. E do lado da demanda/recepção, objetivos inicialmente secundários – a adrenalina, o entretenimento e o treinamento que a imprensa proporciona – adquirem maior importância, com isso aumenta a tentação da imprensa de lucrar comercialmente com suas transmissões e satisfazer com elas as tentativas de transmitir ideologia política. A notícia, cada vez mais construída para obter lucro comercial e canalizar ideologia política, ameaça a fidelidade à realidade e a abertura à verdade para avaliar essa realidade. O lucro comercial e a qualificação político-ideológica da notícia são a priori o que marcam a construção da notícia, tanto ou mais do que a fidelidade à realidade do que aconteceu. Os conteúdos da imprensa são, então, cada vez menos fiéis ao ocorrido, menos abertos à construção da verdade pelos receptores, e mais condicionados em sua construção pelos objetivos do lucro comercial, e pelo alinhamento e comunicação de dados político-ideológicos a priori, o que impede a liberdade construtiva de interpretações autônomas com aspiração de verdade pelos destinatários.

Há, então, uma evolução perversa da imprensa, pela qual os objetivos originais da imprensa, como necessidade humana histórica – a fidelidade à comunicação de novas realidades e de novas ideias sobre a verdade – perdem importância diante dos novos objetivos de lucro comercial e propaganda político-ideológica permanentemente renovados na dinâmica cotidiana das notícias, e colocam realidade e verdade, objetivos implicitamente acordados como tal inicialmente, em risco de insatisfação e secundários.

Embora sinceros e influenciados por essa perversão, adotando-a em parte, os receptores pedem à imprensa mais entretenimento, adrenalina e alinhamento político-ideológico do que antes, quando as principais demandas eram a realidade e a verdade. A oferta jornalística pervertida, em certo sentido, perverte a demanda/recepção, cujas prioridades também sofrem certa perversão, paralela e sucessiva à da oferta/emissão.

Assim, não só a imprensa como oferta de radiodifusão abandona a fidelidade à realidade, e a abertura à verdade como prioridades primeiras, mas as audiências, como demanda receptora, também são cúmplices da imprensa nessa perversão, e não apenas vítimas angélicas dela: a sociedade da abundância, do espetáculo e do consumo tem suas consequências na comunicação midiática. A prioridade da espetacularidade não é apenas a perversidade tendencial típica da voracidade da imprensa (e sempre dadas suas funções primárias), também os receptores exigem adrenalina espetacular. Mas a perversidade da prioridade da propaganda político-ideológica como objetivo e insumo é característica da nova imprensa comprada e cooptada de várias formas, embora também haja pessoas que queiram, mais do que tudo, se divertir, se empolgar e adotar “bandeirinha” sem se informar ou pensar muito, e imbecilizar quando informada pelas redes sociais.

Durante o curso, serão mostrados exemplos da pandemia e do conflito na Ucrânia, dessa mudança na funcionalidade social da imprensa, e dessa secundarização da verdade e da realidade como objetivos da comunicação em relação ao lucro comercial e à propaganda político-ideológica. É o “assassinato da realidade”, “o crime perfeito” (Baudrillard, 1995).

2. Inversão perversa do processo de construção da notícia (Bayce, 2022)

Junto com o processo descrito, há uma inversão da ordem de construção da notícia. Paradigmática e normalmente, a produção de informação pressupõe que, globalmente, há:
a) primeiramente, uma realidade fática; Então, b), dessa ocorrência apenas uma parte – obviamente não toda – chega aos editores emissores da oferta jornalística comunicacional; c) daquela parcela da realidade ocorrida que chega com clareza suficiente para editar e veicular como notícia, selecionam-se os fatos e ditos mais suscetíveis de gerar rating, publicidade; d) aqueles fatos selecionados, daqueles registrados, devem ser emitidos, contados por meio de algum tipo de narração, algum formato de história. O mais escolhido – e sempre para a melhor chegada em massa – foi e é o melodrama, francamente ficcional no passado, simulando a realidade agora. Essa narração melodramática de notícias comercial e politicamente selecionadas entre as registradas, sintaticamente armadas para seu melhor impacto, deve oferecer também um discurso jurídico e moral legitimador para completar sua jornada do emissor ao receptor.
O caminho de construção do noticiário jornalístico é, então, originalmente: a) realidade espirituosa; b) realidade bem registrada; c) comercial e politicamente selecionado; d) articulado sintaticamente, narrativamente, como um melodrama plausível; e) justificada semântica e pragmaticamente por um discurso moral-jurídico, político-ideológico.

Pois bem, com a mudança das prioridades de comunicação da verdade e da realidade para o lucro e a doutrinação, a ordem dos passos na construção da notícia se inverte completamente: o primeiro passo é o último e vice-versa, o primeiro não é mais a realidade ou a verdade do que aconteceu, mas, antes, quais ideias, instituições, pessoas e o que defender ou atacar político-ideologicamente sobre os fatos mercadológicos escolhidos dentro do que aconteceu. Então o ponto d) passa a ser o b): aquelas ideias, pessoas, instituições, para atacar ou defender, para seu melhor impacto comercial e político, serão melodramatizadas narrativamente, para melhor servir ao lucro e à doutrinação discursiva; os comerciais e políticos, a priori, são critérios de seleção e edição superiores e anteriores aos da ocorrência da realidade mais ou menos “natural”. No ponto c), o que os receptores receberão, melodramatizados e discursivamente enviesados, serão aqueles selecionados como matéria-prima da edição-emissão; no d), dentre os bem registrados; e no e), dos que ocorreram (realidade).

Então, o novo caminho perverso de construção jornalística da notícia passa a ser: a) qual ator real ou ideia político-ideológica devo privilegiar com meu discurso jornalístico; b) quais notícias são as mais aptas a lucrar comercialmente e alimentar o discurso político-ideológico escolhido; c) com qual narração melodramática formativa comunico melhor notícia e facilito o discurso; d) que realidade espirituosa me veio com aptidão suficiente para transformá-la em notícia; e) o que aconteceu.

Será mostrado com exemplos de comunicação sobre a pandemia e a Ucrânia como, de manchetes a apresentações de comunicadores, eles estão distorcendo a comunicação e inclinando-a para o lado desejado, antes mesmo do curso da narrativa factual.

3. Perfeição da indução do medo em massa (Bayce, 2010)

Há 40 anos venho estudando a indução de medos em massa como forma de manipular e produzir aquiescência nas populações. Embora o medo como modo de dominação já seja privilegiado na “Política” de Aristóteles (L. V, cap. 8, 25-30), Maquiavel afirma que para manter o poder é melhor ser temido do que amado. É somente a partir de meados do século XX que o modo de fazê-lo é investigado e tematizado de forma autônoma.

A pandemia, como a primeira experiência bem-sucedida da história de criação massiva, global, simultânea e irreversível de medo, foi explicitamente prevista por mim, então a pandemia não me surpreendeu em nada e até havia sido prevista em uma palestra proferida aqui na Unisinos em 2014 (Bayce, 2020, b), e anteriormente abordada como um fenômeno provável desde 1991. (Bayce, 1991).

O desenvolvimento específico dos passos que devem ser dados para a construção de crenças excessivas, eu expus em 2010. Muito facilmente podem ser identificados como pontualmente seguidos pelos semeadores do medo durante a pandemia: ampliação quantitativa, dramatização qualitativa, reiteração hipnótico-compulsiva, redundância ubíqua, corte narrativo arbitrário e intencional, produção de alucinações e hiper-realidade com aparência racional.

4. Aumento imparável do grau de alucinação coletiva e hiper-realidade como álibi racional e científico

Essa construção social do excesso resulta em crenças que são alucinações coletivas, cuja porcentagem no imaginário cotidiano cresce desde que Le Bon (Le Bon, 1895) a diagnosticou em 1895: o que acreditamos ser racional, fundado e equilibrado não é. Da mesma forma, a realidade “natural” minimamente construída para fins comunicacionais dá seu lugar de verossimilhança a uma hiper-realidade muito mais construída (Baudrillard, 1976), cada vez mais preferida à realidade mais “natural”. Por exemplo, o diagnóstico da pandemia foi produto de cálculos com um modelo errado alimentado com dados muito pouco representativos de todo o mundo. Cálculo aceitável como provisório na ausência de bons dados diretos e modelos verificados em seu funcionamento. Mas quando os dados diretos e reais refutaram as previsões, as previsões, mesmo que fossem piores, permaneceram mais acreditadas do que as reais, melhores. Da mesma forma, os números de mortes “com” Covid foram preferidos aos de mortes “por” Covid, cálculo ampliado dos mortos pela pandemia. Os testes de infecção (PCR) também foram alucinações hiper-reais: a positividade não implica infecção, muito menos infecciosidade. As vacinas, talvez, as mais alucinantes, hiper-reais e ampliadas, em muitos casos adoecem mais do que defendem. Assim como a estimativa de mortes e vítimas civis durante o conflito na Ucrânia.

Talvez o mais interessante desse crescimento de alucinações e hiper-realidade no imaginário coletivo seja o sofrido pelos médicos, cujos prognósticos e previsões nunca foram precisos, apesar de continuarem a consultar, com resultados idênticos. Mas seus incontáveis e repetidos erros nunca levaram a que sua expertise fosse questionada. E muitas vezes foram aplaudidos publicamente, sem justificativa aparente. Embora sua previsão fosse catastrófica, a imprensa comercialmente voraz e o público sedento de terror captaram seus erros, e os preferiram aos sucessos de outros que os questionaram e minimizaram. No Uruguai, seus erros chegam ao nível do risível, se o assunto não fosse tão sério.

Você acredita no que pode, quer e deve acreditar, por várias razões de psicologia e psicologia social profunda, como veremos durante o curso. E mostraremos como todas as crenças como científicas são muito ruins ou muito discutíveis.

5. Ditado suave de uma opinião pública assim formada: Maiorias emocionais instantâneas e irreversíveis

Essa hiper-realidade alucinada que se impõe progressivamente, pelo menos no Ocidente urbano, está entronizando um “dicta-soft” mais solidamente compulsivo que o “dicta-duras”, pois, ao contrário deste, goza da legitimidade das crenças em sua verdade e realidade, além do prazer dado pelas más notícias e pela catástrofe possíveis. A globalidade, instantaneidade e torrenticidade da comunicação de massa alcançou, no século XXI, a possibilidade de gerar uma opinião pública massiva, instantânea, emocional e irreversível que temíamos em 1991 (Bayce, 1991), que descrevemos em seu modus operandi em 2010 (Bayce, vide supra) e que definimos como iminente imposição global em 2014 (Bayce, 2020 b), o que acabou acontecendo em 2020 com a pandemia e em 2022 com o conflito na Ucrânia; opinião pública que se imporá como “soft-dicta” muito melhor indutora de seus fins do que os ditames-duros. Uma profusa pesquisa social e teórica desde os anos 50 descreve esse processo de imposição de ditames brandos, protegidos pela necessidade de que a opinião pública, “nossa segunda pele” (Noelle Neumann, 198 4), tenha consenso e unanimidade, que constituam maiorias que se teme abandonar em seu refúgio neouterino, e que se protegem de “dissonâncias cognitivas” (Festinger, 1957 ) e outras dissonâncias psicossocioemocionais. Daí a rejeição cada vez mais furiosa da dissidência, que obstrui a construção de consonâncias protetoras e impele o aparecimento de dissonâncias incômodas.

Essa hiperrealidade global alucinada protege sua construção com um simulacro científico, na realidade mais religioso do que científico em seu conteúdo e modo de sustentação, como veremos.

6. O melodrama formativo: modelo da narração-discurso

Jesús Martín-Barbero (1987) mostrou eloquentemente que o “melodrama” tem sido uma forma fundamental de diversão, entretenimento e reprodução de lendas ancestrais, tradições e valores populares. Dos melodramas da praça pública anteriores ao século XIX passamos aos fascículos romanescos escritos e à literatura de cordel; daí para filmes em capítulos e para radiodramas ou radiodramas. Mais tarde, as novelas serão insuperáveis em sua eficácia emocional e chocante. A eficácia e o impacto de seus roteiros e tramas narrativas levam ao extremo que produções que supostamente estavam ancoradas na incerteza do final, mas ainda assim desfrutaram com sua repetição sem qualquer incerteza sobre o desfecho, são avidamente vistas.

Em todos esses casos, os destinatários dessas várias formas de apoio ao melodrama sabem bem que estão mergulhando voluntariamente em um mundo ficcional, e que estão perdendo parte de seu tempo de realidade em nome do tempo ficcional. No entanto, quando a mídia global opta por contar algo em forma de melodrama, com heróis e vilões, com um corte abrupto entre virtuoso e vicioso, bom e mau, através de dicotomias estereotipadas que favorecem um maniqueísmo moral na avaliação dos personagens, situações e instituições envolvidas, quando optam por essa forma de narrativa ficcional, como o melodrama sempre foi, eles estão escolhendo um enredo narrativo, uma forma tipicamente ficcional de contar histórias. Para comunicar uma história verdadeira, como o conflito na Ucrânia, eles estão se tornando “novos contadores de histórias” (Riesman, contadores de histórias, 1949 ), agentes moralizadores por meio da ficção formativa, como os avós diante dos netos, prontos para dormir, ou as mães lendo histórias infantis com uma mensagem.

Usar um formato ficcional para narrar realidades está despertando reflexões há muito estabelecidas em psicologias profundas, e o terreno está sendo preparado para qualificar a priori os personagens da história real narrada de acordo com os estereótipos quase arquetípicos dos melodramas ficcionais. Essa introdução de uma ficcionalidade há muito estabelecida na memória popular dentro da vida “real” auxilia a intencionalidade da qualificação de personagens reais segundo estereótipos maniqueístas arquetípicos, simplificando a ficção, e propensa à construção de uma trincheira, trincheira, entre o bem e o mal, como desejam os narradores jornalísticos, com influência dessa ficcionalidade importada para o discurso real de políticos e pessoas comuns. Essa redução da realidade à ficção estereotipada dos melodramas possibilita a compreensão simplificada da realidade por meio de uma compreensão mais fácil e simples de toda a história como um melodrama estereotipado e maniqueísta. Então, a forma da narrativa facilita o discurso político-ideológico moralmente simples. Um discurso que visa angelizar alguns atores, ideias, situações, e demonizar outros, é registrado de forma muito mais indelével e fácil nos receptores quando são contados como um melodrama ficcional tradicional, embora com personagens muito reais e situações novas. Algo assim também acontece com super-heróis, ídolos e modelos em geral.

7. Ciência incompreendida, aplica como religião fanática

Quase todos os defensores do discurso e das narrativas dominantes e hegemônicas sobre a pandemia e o conflito na Ucrânia, especialmente quando expressos através da imprensa e dos meios de comunicação de massa, qualificam seus discursos e narrativas como “verdades e realidades cientificamente estabelecidas ou apoiadas”, enquanto narrativas e discursos alternativos ou dissidentes são qualificados como errôneos, falsos, falsos, anticientíficos e maliciosos, quando não imorais em suas inclinações e consequências.

Por isso, tendem a desqualificar aqueles que os apoiam, a negar-lhes oportunidades de manifestação, a opor-se publicamente a eles, mesmo sendo grandes cientistas e seus oponentes totalmente neófitos. E o fazem em nome da ciência, compreendendo assim mal a ciência, seu conteúdo e o processo pelo qual a ciência foi constituída e estabelecida na história humana. A ciência não produz dogmas perfeitos, intocáveis, eternamente verdadeiros. Pelo contrário, a evolução da ciência tem ocorrido a partir de uma crença na verdade provisória do conhecimento adquirido, que não deve ignorar que seu questionamento para se aperfeiçoar é tão importante quanto a crença atual em sua verdade relativa.

Se a humanidade tivesse defendido, como fazem os ignorantes dos jornalistas, toda crença pontual obtida pela ciência como non plus ultra de conhecimento, se cada momento afirmativo tivesse sido dogmatizado, eternizado e infalibilizado, se qualquer busca alternativa ou sequencial ao que se acreditava a cada momento tivesse sido proibida e perseguida, as erupções vulcânicas continuariam a tentar se enfrentar como espíritos raivosos, jogando mulheres virgens na cratera do vulcão. O fim da erupção parecia confirmar retrospectivamente a veracidade da receita adotada. Mas se ninguém tivesse duvidado dessa verdade, nem buscado alternativas a ela, os sismólogos não teriam desenvolvido previsões e medidas alternativas mais eficazes e menos custosas do que o abate periódico de virgens, e a humanidade continuaria a jogar virgens em crateras para enfrentar erupções vulcânicas.

Por sorte não houve imprensa quando a humanidade questionou a receita e desenvolveu sismólogos, que erradicaram o lançamento de virgens em favor de outras medidas mais racionais e eficazes, pois teriam denunciado como negacionistas, anticientíficos e socialmente irresponsáveis aqueles que duvidavam e não aceitavam plenamente o lançamento de virgens nas crateras dos vulcões para impedir sua erupção, crença dominante naquela época. É também assim que a imprensa tem tratado aqueles que criticaram, propuseram alternativas e buscaram melhorias para a hegemonia da Covid, como pecadores transgredindo um dogma religioso revelado, e afirmam fazê-lo “a partir da” ciência e por sua fidelidade a ela. Mais uma vez, quem é guiado pela imprensa de massa é frito.

A imprensa e depois o povo, como consequência de sua maldita influência, acreditam que a ciência é quase como seu oposto: as religiões. Estes são postulados como conhecimento eterno, infalível e imutável, produto da infinita sabedoria daqueles que o revelam aos humanos. Eles acreditam na verdade dogmática de suas afirmações, em sua infinita bondade e no mal total daqueles que não obedecem a esse dogma perfeito – todos cujas alternativas são falsas, errôneas, inconvenientes, ruins e merecedoras de proibição, cancelamento, inquisição e combate por todos os meios. A imprensa acredita que as reivindicações da ciência são obtidas como as das religiões, e que seu valor é semelhante. Ele está grosseiramente errado, como em quase tudo o que faz. O que querem evitar como anticientífico é, justamente, o que tem constituído a história humana da ciência: busca metódica e teoricamente informada de verdades, que serão relativas e nunca absolutas e inquestionáveis, mas sempre abertas à dúvida e ao aperfeiçoamento, como modus operandi específico da ciência, em oposição ao da religião.

A imprensa defende a ciência como se fosse religião, e impede que a ciência siga o caminho que levou ao seu progresso, achando que está favorecendo seu desenvolvimento e a gestão da sociedade de acordo com ela. Bobagem, eles estão totalmente errados. Estar do lado da ciência não é evitar dúvidas, alternativas e questionamentos. Precisamente, evitar dúvidas, alternativas e questionamentos é impedir que a ciência siga o caminho que a levou a adquirir a importância que adquiriu. A imprensa, acreditando que defende a ciência, invocando-a dessa forma, restringe-a e corta-a significativamente. Esse gato por lebre da imprensa passa uma imagem da ciência como se fosse uma religião fanática. Esse tema foi abordado por Gustave Le Bon que, já em 1895, viu que a melhor maneira de impor uma crença, mesmo racional e científica, era dar-lhe uma forma religiosa. As pessoas só adotariam uma crença se ela fosse quase ou religiosamente formulada e ritualizada. É o que estamos vendo com a pandemia: as decisões majoritariamente impostas e acreditadas são afirmadas como científicas, mas são defendidas como se fossem dogmas religiosos, e não como verdades científicas provisórias, a serem questionadas e superadas como parte intrínseca de sua cientificidade. A imprensa apodrece tudo o que toca, mais uma vez.

O curso a ser ministrado de 29/5/2023 a 02/06/2023 na Unisinos será repleto de exemplos e embasamento teórico sobre esses temas e outros relacionados.

Programação

Os Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Unisinos, em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, promovem o curso Ucrânia/Pandemia. Paixão e morte da realidade e da verdade?

O curso Ucrânia/Pandemia. Paixão e morte da realidade e da verdade?, ministrado pelo Prof. Dr. Rafael Bayce, da Universidad de la RepúblicaUruguai, será realizado entre 29-05-2023 e 02-06-2023, presencialmente na Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

As aulas serão transmitidas on-line através da página eletrônica do IHU, do Canal do IHU no YouTube, pelas redes sociais e pela Plataforma Teams, das 14h às 16h.

Prof. Dr. Rafael Bayce

O curso está organizado em cinco módulos e pode ser cursado integralmente ou em partes, e também é oferecido como atividade de extensão via IHU, gratuitamente. As inscrições podem ser feitas aqui. A programação está disponível abaixo.

Programa

Módulo 1. Uma história do processo comunicacional midiático:
A. Papel e funções sociais clássicas da imprensa.
B. A direção da idealidade do processo comunicacional clássico: realidade, fatos, notícias, narrativa, discurso.
C. A perversão comercial e política desse processo.
D. A reversão da direção prioritária e da idealidade no processo comunicacional clássico: discurso, narrativa, notícias, fatos, realidade.
E. Paixão e morte das idealidades e prioridades clássicas de realidade e verdade nessa perversa reversão.
F. A ascendência da imprensa na informação e formação das opiniões públicas.
G. Jornalistas: de informadores a vendedores e operadores políticos.
H. A complementariedade da hegemonia comunicacional e da dominação bélica.
I. Uma alternativa até complementar: as "dita-duras" e as "dita-macias" ou "dita-brandas".
J. A pandemia de Covid-19 e o conflito na Ucrânia como exemplos e aceleradores desses processos.

Módulo 2. Paixão e morte aceleradas: a pandemia hiper-real:
A. Uma pandemia político-comunicacionalmente instalada com escusa sanitária e fins econômico-políticos.
B. A construção social da desmesura e do medo.
C. O caso mais estudado: a paranoia da insegurança.
D. O caso mais recente: a hipocondria da saúde (Covid-19).
E. A hiper-realidade converte-se em mais acreditada do que a realidade fatual.
F. A retórica da construção pandémica: magnificação quantitativa + dramatização qualitativa + saturação sensorial + obturação de alternativas + corte arbitrário da narrativa.

Módulo 3. Paixão e morte aceleradas: a novela ucraniana:
A. A retórica narrativa: melodrama de aventuras serial, adrenalínico, lacrimogênico, dramatúrgico, taumatúrgico.
B. Mais retórica: reiteração acumulativa + redundância convergente + recorte narrativo que oculta e retrodiz.
C. A necessidade social de identificação e projeção vicárias.
D. Mudança na ênfase da retórica comunicacional: da persuasão cognitiva à sedução emocional.
E. Medos e más notícias: a funcionalidade político-econômico-cultural e a cumulatividade da paranoia da insegurança e da hipocondria da saúde.

Módulo 4. Crenças pararreligiosas civis com álibi científico:
A. A fraqueza da ciência politicamente seguida nos diagnósticos e terapias.
B. A mínima interdisciplina utilizada neles.
C. Porém, a sofisticação da retórica na manipulação comunicacional das massas.
D. A retórica pararreligiosa imposta, dogmática e inquisitorial, anticientífica.
E. Fake News, pós-verdade, plataformas, redes sociais e legislação.

Módulo 5. O futuro da realidade e da verdade sociomidiáticas:
A. Será a mesma a desejabilidade dessa realidade e verdade para os millenials?
B. Medos, instantaneidade e irreversibilidade progressivas da opinião pública global atual.
C. Como identificar, hoje, o real e as fontes de construção de opiniões e verdades autonomamente conformáveis, se ainda fossem alvos desejáveis?
D. Geopolítica, pandemias e catástrofes no futuro humano: o medo paranoico e hipocondríaco como instrumento econômico, político e cultural comunicacionalmente construído.
E. Um excurses a respeito da medicina na história e o seu impacto no cotidiano cultural e civilizatório.

 

Sobre o palestrante

Rafael Bayce é doutor (Ph.D.) em Ciência Política, pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Brasil. Doutor em Sociologia pelas Universidades de Stanford e Chicago, nos EUA. Possui mestrado em Sociologia também pelo IUPERJ do Rio de Janeiro. Sua graduação foi em Licenciatura em Sociologia pela Universidad de la Republica (UDELAR), do Uruguai.

Também possui diploma em "Teoria do Desenvolvimento", pela ILADES, do Chile. É professor de Pós-Graduações em Ciências Sociais nos Estados Unidos, Brasil, Argentina e Uruguai. Catedrático Universitário no Uruguai, na UdelaR, desde 1985; Ucudal, de 1989 a 2002; ORT, 1995.

Foi Diretor Nacional e Internacional da Cooperação Técnica Internacional com OPP, no Uruguai, de 1992 a 1996. Também foi o primeiro Presidente da Asociação de Sociólogos do Uruguai, em 1987. Tem sete livros publicados, e mais de 200 artigos científicos e capítulos de livros.

Já se apresentou em mais de 200 congressos nacionais e internacionais. Foi laureado com as seguintes homenagens: Prêmios Municipal (1969) e Nacional (1988) de Ensaio em Ciências Sociais; Prêmio Nacional ao Melhor Colunista de Rádio (1998 e 1999), ambos no Uruguai.

 

Leia mais