25 Mai 2023
"É claro que Jesus Cristo nunca é explicitamente citado em Os Noivos, mas sua mensagem impregna toda a estrutura espiritual e moral da obra", escreve Gianfranco Ravasi, cardeal italiano e ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 21-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bíblia e literatura. Na biblioteca do escritor havia traduções, paráfrases e comentários das Sagradas Escrituras como podia ter um teólogo do século XIX.
Posso ser testemunha pessoal de um eixo cultural típico de muitos povos antigos e recentes, a memória geracional. A minha avó paterna, de fato, contava-me que nasceu nos mesmos dias em que morria Alessandro Manzoni, há 150 anos, em 22 de maio de 1873, ciente de que depois ela também - como eu fazia na época ao frequentar as escolas médias inferiores - havia estudado nos bancos escolares as obras daquele nosso grande conterrâneo. Muitas décadas depois, enquanto dirigia a Biblioteca Ambrosiana, ter-me-ia dedicado a uma minuciosa revisão de todas as fontes bíblicas, diretas ou alusivas, utilizadas pelo autor em suas Observações sobre a Moral Católica, um verdadeiro ensaio "teológico", auferindo um rico resultado inesperado que publiquei apenas em 2016 sob o título Manzoni e a Bíblia, quando eu já estava atuando no dicastério vaticano da Cultura.
Foi naquela ocasião dos estudos de Manzoni que também pude examinar a biblioteca pessoal do escritor, descobrindo uma ampla presença da Bíblia, suas traduções, paráfrases e comentários.
Em resumo podemos dizer que o conjunto da instrumentação bíblica que Manzoni tinha à disposição em sua biblioteca de casa correspondia àquela que poderia ter em dotação um teólogo do século XIX; em alguns aspectos até superior, mesmo que este último pudesse também acessar as bibliotecas dos seminários ou das instituições eclesiásticas. Neste ponto, voltamos a nossa atenção para a obra mais famosa, Os Noivos, deixando ao leitor sentir as vibrações bíblicas que obviamente percorrem outro componente importante dos escritos de Manzoni, ou seja, os cinco Hinos sagrados (Ressurreição, Nome de Maria, Natal, Paixão e Pentecostes).
É fácil questionar, ainda que sumariamente, sobre a eventual marca d'água bíblica da obra-prima, aliás corroborada pela tese do Magnificat de Maria: “Explicou o poder do seu braço, dispersou os soberbos nos pensamentos de seu coração; derrubou os poderosos dos tronos, exaltou os humildes". Tese demonstrada nos acontecimentos antitéticos de Don Rodrigo com seu trágico fim, e o desfecho festivo dos dois protagonistas, Renzo e Lucia e sobretudo do Inominado, o convertido que confessa, recorrendo ao Salmo Miserere: “As minhas iniquidades estão diante de mim”.
O capelão secretário do Cardeal Federigo Borromeo proclamará depois a conversão daquele poderoso com a citação de outro Salmo (76,11) na versão latina de São Jerônimo: Haec mutatio dexterae Excelsi, "mudou a direita do Altíssimo". Sempre segundo o latim da Vulgata, o cardeal Federigo Borromeo recorrerá à parábola do filho pródigo para encerrar o desconcerto escandalizado e desconfiado de Don Abbondio: perierat, et inventus est, “tinha-se perdido, e foi achado", Lucas 15, 24 e 32). E quando os dois protagonistas, o cardeal e o Inominado, se apresentam perante o clero acordado, “a mais de um dos presentes” retorna “à memória aquele ditado de Isaías: e morará o lobo com o cordeiro, e o bezerro, e o filho de leão e o animal cevado andarão juntos (Isaías 11,6-7).
Para selar a conversão daquele pecador, Borromeo colocará depois uma paráfrase da substância da parábola da ovelha perdida e encontrada: “Deixemos as noventa e nove ovelhas, ... elas estão em segurança na montanha: agora quero estar com aquela que se perdeu" (ver Mateus 18,12-13 ou Lucas 15,4-7). Toda a narração sobre o Inominado é idealmente iluminada pelo tema evangélico do perdão, formulado numa tríplice repetição apaixonada da Lúcia mantida por ele prisioneira: “Deus perdoa muitas coisas, por uma obra de misericórdia”. Essa é uma típica mensagem evangélica que Manzoni apresenta em diversas ocasiões. Queremos evocar duas que apresentam cenas emblemáticas colocadas quase nos extremos de toda a obra.
De fato, o capítulo 4 descreve a visita de Frei Cristóvão ao irmão daquele que ele havia matado: é toda tecida sobre o tema do perdão implorado e concedido. Em paralelo, no capítulo 35, que é o quarto antes do fim do romance, é Renzo quem deve perdoar o moribundo Don Rodrigo padecendo de peste no lazareto, no impulso das palavras frementes de frei Cristóvão: “Lembras-te que o Senhor não nos disse para perdoar nossos inimigos, ele nos disse para amá-los?” Todo o diálogo com o frade é uma espécie de exegese ideal do constante mandamento evangélico de perdoar também os inimigos, sem medida, "até setenta vezes sete" (cf. Mt 5,43-45 e 18,21-22).
Poder-se-ia continuar essa busca do alento bíblico nas páginas de Manzoni, às vezes também através de citações que tornaram proverbiais algumas frases bíblicas, como na célebre afirmação Omnia munda mundis, tradução latina da frase “tudo é puro para quem é puro” presente na Epístola paulina a Tito (1,15). Ela é a resposta de Frei Cristóvão ao escrupuloso Frei Fazio, que não tolera a entrada noturna de duas mulheres, Agnes e Lucia, na capela do convento (capítulo 8).
É claro que Jesus Cristo nunca é explicitamente citado em Os Noivos, mas sua mensagem impregna toda a estrutura espiritual e moral da obra. Nas Observações sobre a Moral Católica, Manzoni declarava sem hesitação que “o ponto cardeal do cristianismo é ir a Deus através da Humanidade de Jesus Cristo”, na esteira da afirmação joanina do “Verbo feito carne” (1,14).
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A mensagem de Cristo em Manzoni. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU