12 Abril 2023
"Assistimos assim a uma inversão total: o que é diabólico é abençoado por quem dele tira proveitos cada vez maiores, a guerra que não pertencia mais ao humano foi reintroduzida como compatível com a própria natureza do homem e aquela que havia ido além da razão como um meio adequado para ressarcir os direitos violados foi posta de volta sem que seja permitida outra razão além da vitória", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Rocca, Nº 7, 01-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe um repúdio à guerra que está na Constituição italiana, à qual não nos mantivemos fiéis (da participação na guerra contra o Iraque, depois contra a Iugoslávia, na enxurrada de armas enviadas para alimentar o conflito na Ucrânia) e existe um repúdio à guerra proclamado por João XXIII na “Pacem in terris” à qual a Igreja sempre se manteve fiel: do “guerra nunca mais!”, gritado por Paulo VI da tribuna da ONU, à oposição frontal de João Paulo II à Guerra do Golfo, ao Papa Francisco que definia a guerra como uma "mística da destruição".
E se o Papa João havia escrito que nesta época, que se orgulha do poderio atômico, a guerra havia ido além da razão (bellum alienum a ratione) e, portanto, não pertence mais ao humano, o Papa Francisco foi além não apenas definindo a guerra como "loucura”, mas qualificando a indústria armamentista, "que está por trás dela", como "diabólica".
Infelizmente com a guerra ucraniana e todas as outras que a acompanham a situação ainda piorou: a indústria de armas aumentou de tal forma a produção de armas que serão necessárias ainda mais guerras para usar todas elas; todos os jornais hoje falam da guerra como a coisa mais normal do mundo e nenhuma negociação é realizada para acabar com o sacrifício da Ucrânia e a guerra na Europa.
Assistimos assim a uma inversão total: o que é diabólico é abençoado por quem dele tira proveitos cada vez maiores, a guerra que não pertencia mais ao humano foi reintroduzida como compatível com a própria natureza do homem e aquela que havia ido além da razão como um meio adequado para ressarcir os direitos violados foi posta de volta sem que seja permitida outra razão além da vitória. O revés da razão é tanto maior porque durante todo o período da Guerra Fria a incompatibilidade entre a guerra e a razão havia sido mantida firme e, aliás, havia sido vigiada pelo terror (a 'dissuasão'), dado o risco de guerra nuclear.
Foi com a primeira Guerra do Golfo, passado o medo da bomba atômica graças à derrubada do muro de Berlim, que a guerra foi recuperada, com a cumplicidade da ONU, como razoável e, mais ainda, justa e saudável, se desde então tem sido empregada mais vezes.
Hoje a guerra não se trava apenas em vários continentes (o Papa Francisco citou “a Síria que durante 13 anos está em uma guerra terrível, o Iêmen, Myanmar e em todo lugar na África"), mas foi colocada como estrutura da ordem internacional e pedra angular da nova visão de mundo: os próximos dez anos, segundo os Estados Unidos, serão de "competição estratégica" entre as grandes potências e poderiam acabar numa guerra com a China. O mundo é visto como "um campo de jogo global" no qual as Nações combatem e lutam pela supremacia.
A história não ensinou nada. Bem antes da “Pacem in terris”, em plena Segunda Guerra Mundial, Angelo Roncalli na homilia da Páscoa de 1942 na catedral do Santo Espirito em Istambul, sendo ele então delegado apostólico na Turquia, havia denunciado a causa de todos guerras: “Cada um de nós gosta de julgar o que acontece do ponto de vista do punhado de terra sobre o qual apoia os pés, ou seja, do ponto de vista de sua própria nação. É uma grande ilusão. É preciso elevar-se e abraçar corajosamente o todo; é preciso elevar-se até perder de vista as barreiras diferenciais que separam entre si os combatentes” e, já Papa, na sua mensagem de Natal de 1959 explicava que “o amor ao próximo e à própria nação não deve dobrar-se sobre si mesmo, numa forma de egoísmo fechado, desconfiado do bem dos outros, mas deve alargar-se e expandir-se para abraçar todos os povos e estabelecer relações vitais com eles”.
A "Pacem in terris" não foi, portanto, um clarão repentino, que irrompe na história e imediatamente se apaga. Mas a história ainda está esperando para ser iluminada por ela.
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A guerra voltou à razão? Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU