15 Março 2023
"Ocidente tem dificuldade para criar um consenso em torno do conflito ucraniano, visto como uma questão de pertinência europeia, às custas do continente africano", escreve Enzo Nucci, jornalista, ex-correspondente da RAI para a África subsaariana, em artigo publicado por Confronti e reproduzido por Settimana News, 14-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alguns analistas argumentam que o conflito na Ucrânia está favorecendo a divisão do mundo em blocos muito semelhantes aos que alimentaram a Guerra Fria. Mas, no mesmo ritmo, cresce também a tentação do não-alinhamento de muitos países que se recusam a sacrificar seus interesses nacionais para sancionar a Rússia.
China, Indonésia, Índia, Brasil, México, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e África do Sul estão certos de que seu poder de negociação nesta nova fase crescerá nas áreas de comércio, tecnologia e armamento. E são também as nações que, até 2030, abrigarão três quartos da população mundial e 60% de sua economia. Uma oportunidade tentadora demais para desistir de jogar uma partida de importância primordial.
Essa premissa explica o rico desfile em solo africano que em janeiro envolveu diplomatas e líderes estrangeiros. Qin Gang, o novo ministro das Relações Exteriores da China, respeitou a tradição de Pequim ao fazer sua primeira viagem ao exterior para a África com visitas à Etiópia, Gabão, Angola, Benin, Egito.
Foto: James Wiseman | Unsplash
Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, desembarcou no Senegal, África do Sul e Zâmbia. Aqui explicou como a reestruturação da dívida pública de Lusaka se insere na estratégia estadunidense de se contrapor à hegemonia chinesa em África no campo dos investimentos e das infraestruturas.
As ministras das Relações Exteriores da França e da Alemanha voaram para a Etiópia. A premiê italiana Meloni foi para a Argélia para garantir o fornecimento de gás e depois assinou acordos de desenvolvimento com seu colega etíope Abiy Ahmed Ali com a promessa de encontrá-lo em Adis Abeba.
Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, voltou ao continente pela segunda vez em um ano, após as viagens de julho passado ao Egito, Congo, Uganda e Etiópia. O encontro com a colega sul-africana serviu para finalizar a cúpula Rússia-África marcada para julho em São Petersburgo e aquela do BRICS (que reúne as economias emergentes da Rússia, África do Sul, China, Brasil e Índia) que se realizará em agosto. Mas também foi uma oportunidade para anunciar os exercícios militares conjuntos (com a participação da China) programados no Oceano Índico ao largo da costa entre Durban e Richards Bay.
Na agenda do chefe da diplomacia do Kremlin estão também visitas ao Botswana, Eswatini, Angola e a seguir Tunísia, Mauritânia, Argélia e Marrocos. Uma ofensiva diplomática frenética para reafirmar a centralidade da África na competição entre Moscou e Washington.
A participação do governo do presidente Cyril Ramaphosa nos exercícios militares suscitou furiosas polêmicas. As oposições no parlamento de Pretória a classificam como uma "obscenidade", pois coincide com o primeiro aniversário da invasão russa na Ucrânia.
Mas a forte ligação entre Pretória e Moscou emerge com clareza: apesar de uma atitude de distanciamento em relação ao conflito e de uma neutralidade formal, as autoridades sul-africanas não qualificam a iniciativa russa como "invasão".
Em cima da mesa está o aumento de trocas comerciais e militares numa conjuntura de grande dificuldade econômica, mas na realidade o que pesa é ainda o reconhecimento pelo apoio que a União Soviética garantiu ao Congresso Nacional Africano (no poder ininterruptamente desde 1994) durante os anos sombrios do apartheid.
Entre os 35 países que nas Nações Unidas em outubro passado se abstiveram de condenar a invasão russa, 19 eram africanos (enquanto a Eritreia até votou contra). Um dado significativo para entender as preocupações dos respectivos governos sobre a instabilidade política gerada pelo aumento vertiginoso do custo dos alimentos e combustíveis e pela inflação galopante.
Mas também a consciência de não obter vantagens de nenhuma das duas partes opostas, podendo, ao contrário, recortar para si um papel privilegiado ao não tomar partido e tentar a cada oportunidade arrancar benefícios. Talvez com a Rússia que é o primeiro exportador de armas.
Também porque – como observa a BBC – a memória da Guerra Fria ainda está viva na África, onde a lógica dos blocos alimentou o conflito e interrompeu o desenvolvimento. E ninguém hoje está disposto a repetir aqueles erros. Por isso, o Ocidente tem dificuldade para criar um consenso em torno do conflito ucraniano, visto como uma questão de pertinência europeia, às custas do continente africano.
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A Guerra Fria na África - Instituto Humanitas Unisinos - IHU