05 Abril 2023
"Deus é, sim, uma voz, mas que tem seu ápice no silêncio, no mistério".
O artigo é de Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Avvenire, 02-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Elias na gruta do Sinai, o "véu" que cobre Jesus no Evangelho de Marcos: dois ícones surpreendentes de escritura do Logos. Jó experimenta o silêncio de Deus, dissolvido apenas na visão. Mas a ausência da voz assume a dimensão de epifania mesmo na escuridão. (De "Lugares do Infinito")
A Bíblia é a Palavra de Deus por excelência, mas é ao mesmo tempo "mistério", uma palavra que tem em sua base o verbo grego mýein, que significa “calar, fechar os lábios” (e é o que acontece quando se pronuncia essa palavra). Foi recentemente traduzido para o italiano pela editora Qiqajon o pequeno livro de um nonagenário pastor protestante, o francês Gérard Delteil, de título emblemático, Para além do Silêncio. Ele parte de uma frase sugestiva de um seu poeta compatriota, Edmond Jabès (1912-1991): "Deus é o silêncio que devemos romper". Na verdade é, sim, o Lógos, a Palavra, mas é justamente também "mistério".
Não por acaso o Jó descobre ao final de suas muitas interpelações lançadas a Deus é que o verdadeiro diálogo com Ele se dá com a passagem para outra experiência, aquela da visão que extingue as palavras: “Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te veem os meus olhos" (42,5). Antes, porém, o próprio Jó havia experimentado não o silêncio, mas a mudez de um Deus semelhante a um impassível imperador relegado a seu céu dourado. É aquela aparente indiferença que tem desconcertado e escandalizado muitos, inclusive teólogos, diante do Holocausto, ou diante dos cataclismos da natureza.
Dessas diferentes faces do silêncio humano e divino, que pode ser promessa e ferida, epifania e escuridão, é difícil descrever as várias características.
Explorando o enigma do silêncio, cruza-se precisamente o perfil cru do mal que traz aos lábios da vítima o grito bíblico a Deus: “Por que esconde seu rosto?” Mas outros registros inesperados também devem ser analisados, como aqueles da presença na ausência, do silêncio no seio da Palavra, do eros do silenciar-se (dois verdadeiros amantes, exauridas as palavras, se olham nos olhos sem dizer nada, mas esse silêncio é muito mais eloquente do que qualquer diálogo), da fé a ser cuidada sobretudo durante o vazio da voz divina. Resta, porém, um capítulo final fundamental, aquela da "retirada" de Deus que, criando a pessoa humana, quis que fosse dotada de liberdade e responsabilidade: para ela, artífice de violência e sofrimentos atrozes para com o próximo, e não tanto para Deus, muitos questionamentos dilacerantes deveriam ser dirigidos sobre o mal, a violência, a injustiça.
A primeira cena que escolhemos é descrita no capítulo 19 do Primeiro Livro dos Reis: um homem avança solitário nas encostas íngremes e pedregosas do Monte Sinai. Às suas costas ainda tem a lembrança de dias cheio de pesadelos, quando o poder repressivo quis silenciá-lo não só fechando a sua boca, mas também tentando eliminá-lo fisicamente. É Elias, o profeta, cujo nome já é um programa: “Sozinho o Senhor [Jhwh] é Deus". Não é Baal, a divindade que a Rainha Jezabel, princesa fenícia de Tiro, seguida por seu marido, o rei Acabe, gostaria de impor ao povo judeu.
Estamos no século IX a.C. no reino do norte de Israel, distinto do reino de Judá e Jerusalém, governado pelos descendentes de Davi. Para contestar a política religiosa e social, cheia de abusos e injustiças, só restava Elias daquele casal real. O profeta está subindo ao cume onde nasceu Israel como povo, o Sinai, numa espécie de peregrinação às origens. Lá em cima Elias, que durante a marcha no deserto até foi tomado pela tentação de deixar-se morrer, tenta reencontrar a sua vocação profética, precipitada na crise da solidão e da hostilidade. Ele espera que o Senhor fale com ele.
Talvez a voz divina se esconda no "forte vento que cria fendas nos montes e quebrava as penhas diante do Senhor; porém o Senhor não estava no vento; e depois do vento um terremoto; também o Senhor não estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo; porém também o Senhor não estava no fogo” (1 Reis 19,11-12). É no final acontece a grande surpresa: o original hebraico geralmente é traduzido assim: "depois do fogo uma voz mansa e delicada" (19:13). Elias entende que o verdadeiro Deus não está no clamor, mas na quietude, não está na vingança, mas na paciente constância e, segundo a praxe sagrada, cobre o rosto porque, como diz a Bíblia, “ninguém pode ver a face de Deus e permanecer vivo" (Ex 33,20).
No entanto, aquelas três palavras hebraicas, qôl demamah daqqah, por si só, significam literalmente "uma voz de silêncio sutil". Deus é, sim, uma voz, mas que tem seu ápice no silêncio, no mistério.
Inalcançável e irredutível a figuras ou imagens, ele é inefável e invisível, tanto que o judaísmo não pronunciará seu nome, confiando-o apenas a quatro consoantes (Jhwh). No entanto, este Deus silencioso não é mudo, ele é ativo e relançará Elias na sua missão de justiça e verdade, e nesse silêncio o profeta reencontrará a fonte da verdade palavra que julga e salva. Assim, ele retornará ao reino de Israel para ser ouvido novamente a potência de sua voz contra a injustiça e as apostasias.
O segundo quadro é ocupado, ao contrário, por uma sequência de versos do Evangelho mais antigo no plano cronológico, aquele de Marcos. O evangelista nos conduz a uma espécie de penumbra aqui e ali trespassada por raios que iluminam o rosto de Jesus apenas por um instante, para depois fazê-lo recair numa escuridão suave. De fato, Jesus, pregador e curandeiro itinerante, impõe o silêncio sobre a sua pessoa aos espectadores e destinatários dos seus milagres (1,44-45; 5,43; 7,36; 8,26); proíbe revelar sua identidade profunda, de forma que proíbe falar os demônios que o reconhecem (1,34; 3,11-12; 8,30; 9,9); estranhamente os discursos mais claros que ilustram o sentido de suas parábolas são proferidas por Jesus à margem, sozinho no círculo de seus discípulos (4,10-20).
No entanto, também os discípulos revelam em Marcos uma surpreendente obtusidade, constantemente reiterada pelo evangelista. Um estudioso alemão, William Wrede, em 1901 apresentou uma locução que teve sucesso: essa obscuridade intencional é o segredo messiânico que Marcos usa sistematicamente na primeira parte de seu Evangelho para enfatizar que a verdadeira identidade de Jesus não podia ser compreendida durante a sua vida terrena, mas somente após sua ressurreição e não tanto como um método adotado pelo Jesus histórico para revelar gradualmente a sua realidade mais íntima e profunda.
O fato é que, porém, aquele de Marcos é o Evangelho das epifanias secretas confiadas aos silêncios de Jesus. No meio do caminho, em 8,27-30, o véu que obscurece a face de Jesus é parcialmente levantado pela confissão de Pedro que o proclama como o Messias esperado: “Tu és o Cristo!” Ainda não é o rosto de Cristo na plenitude da divindade como, ao contrário, supõe Mateus que, na mesma declaração, acrescenta a "Tu és o Cristo" a especificação "o Filho do Deus vivo" (16,16). É ainda um perfil rodeado de silêncio em vez de palavras gloriosas. Logo depois, Jesus anuncia, de fato, que não é um Messias triunfante, como Israel esperava, mas um "Cristo" desconcertante, vítima e derrotado, semelhante ao Servo sofredor do Senhor cantado pelo profeta Isaías: “Ele foi oprimido e afligido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele não abriu a sua boca" (53,7). Só no cadafalso da cruz se cumpre o desvendamento supremo do mistério de Jesus de Nazaré. E é um centurião romano que define a identidade secreta de Jesus Cristo: "Verdadeiramente este homem é o Filho de Deus!" (15,39). A ressurreição do Senhor apenas selará essa proclamação definitiva antes escondida sob o véu do segredo e do silêncio.
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Quando Deus se cala: o mistério da Palavra. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU