04 Agosto 2022
O antropólogo Le Breton e a moderna redescoberta do caminhar: reencontrar-se no humilde abandono dos símbolos desta civilização soberba e opressora.
A reportagem é de Roberto Righetto, publicada em Avvenire, 31-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sylvie Germain escreve em “Eclats de sel”: “A história de todos e de cada um recomeça sem parar: caminhar, caminhar dia após dia sobre a Terra, desafiando o peso e a imobilidade, enfrentando os caminhos do tempo, do real e do sonho, perscrutando a noite e a luz, escutando os dizeres do vento, as palavras dos outros, o canto surdo da Terra, os clamores da história, o ruído confuso do próprio sangue, no qual correm todos os mistérios, dos ecos e das perguntas”.
É um elogio da arte de caminhar que leva em conta a sua imprevisibilidade, a descoberta do silêncio, mas também o cansaço e os perigos, formulado por uma escritora francesa que nos habituou a percorrer os sendeiros da espiritualidade cristã de forma inusitada.
Não muito diferente da reflexão de outro escritor, desta vez não crente, Erri De Luca: “Hoje, eu sei que a viagem é uma palavra nobre e se refere apenas a quem a faz a pé. Viagem é caminho sem bilheteira e data de retorno. Viajam os migrantes que atravessam a África e a Ásia a pé, para tirar a bagagem dos ombros na frente do Mediterrâneo (…). Jesus se deslocava a pé. Subiu na nobre montaria do burro apenas para se entregar à última estação”.
O sentido de partir e deslocar-se com o auxílio apenas dos pés, sem navegadores ou GPS, dirigidos a uma meta ou, às vezes, até mesmo sem saber exatamente para onde ir, é investigado agora pelo antropólogo David Le Breton no livro “La vita a piedi” [A vida a pé] (Ed. Cortina, 218 páginas).
São inúmeras as referências literárias, em primeiro lugar Henry David Thoreau, o escritor estadunidense considerado o principal nome da literatura de viagem: “O que eu acho – explicava – é que eu não poderia manter a minha saúde e o meu espírito intactos se não passasse pelo menos quatro horas por dia, geralmente até mais, vagando pelos bosques, pelas colinas e pelos campos, completamente livre de qualquer compromisso mundano”.
E em outra passagem fortemente polêmica em relação aos ritmos da civilização moderna: “Confesso que fico boquiaberto com a capacidade de resistência, sem falar da insensibilidade moral, dos meus vizinhos que se trancam em lojas e escritórios o dia todo, por semanas e meses, mas, o que estou dizendo, por anos inteiros. Eu realmente não sei de que tipo eles são – sentados lá às três da tarde como se fossem as três da manhã”.
Quando Thoreau estava escrevendo essas frases, estávamos em 1862, o ano da sua morte, e não havia nem carros, nem televisão, nem computadores. Para ele, caminhar era uma forma de resistência a um estilo de vida sedentário que lhe parecia contrário à condição humana.
É assim que pensa Le Breton, que fala da experiência de caminhar como um recurso imprescindível, uma verdadeira forma de resistência diante da vida imóvel levada majoritariamente pelo ser humano contemporâneo, forçado a passar a maior parte do seu tempo na frente do celular ou do computador, no carro ou no escritório.
É uma celebração da lentidão em relação aos ritmos frenéticos. Felizmente, são muitos os sinais que hoje nos falam da redescoberta do caminhar, que “há cerca de 20 anos vem conhecendo um sucesso planetário”. Uma paixão bem representada pelos itinerários a pé de longa distância até, como o Caminho de Santiago de Compostela e a Via Francigena, sobre a qual ele se debruça longamente, que testemunham a vontade de redescobrir uma nova relação entre o próprio corpo e o próprio espírito, de se distanciar de uma existência muitas vezes marcada pelo hábito e pelos afãs cotidianos, de redescobrir o sentido da aventura que permite fazer novos encontros e experiências.
“Na França, nos anos 1950, as pessoas percorriam a pé em média sete quilômetros por dia. Hoje, apenas 300 metros.” Uma constatação impiedosa. Que leva o antropólogo a convidar a todos a voltarem a usar o próprio corpo, fazendo-o sair da jaula em que está trancado.
Caminhar é muitas vezes uma experiência de cura dos próprios males espirituais, que podem ser enfrentados com a redescoberta do silêncio, quer ele se encontrei em um bosque ou em um deserto. Solidão, aqui, rima com autopurificação, como escreve o filósofo Edmond Jabès: “Não avançamos no deserto para encontrar a própria identidade, mas para perdê-la: para perder a própria personalidade, para nos tornarmos anônimos. Depois, produz-se algo extraordinário, ouvimos o silêncio falar”.
Caminhar, então, torna-se uma oportunidade para pensar. O escritor Jean Giono diz bem: “Os homens, no fundo, não foram feitos para engordar na manjedoura, mas para emagrecer ao longo dos caminhos, ultrapassando árvores e árvores, sem nunca rever as mesmas. Mover-se movidos pela curiosidade, conhecer, isso é conhecer”.
Existe uma verdadeira filosofia do caminhar, porque caminhar significa também poder pensar, analisar a própria alma, redescobrir o gosto de viver.
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Pôr-se a caminho significa viajar de verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU