12 Julho 2022
"Palavras e silêncios na Bíblia: ao lado do 'mutismo de Deus' experimentado por Jó, sete vocábulos evangélicos carregadas de significados particulares foram escolhidos e analisados em duas obras".
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 10-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Todas as palavras estão gastas, e o homem não pode mais dizê-las.” Fulgurante como muitas vezes lhe acontece, o Qoheleth/Eclesiastes finca na rocha da história uma espada: o antigo sábio – que no hebraico original (1,8) usa apenas sete termos – parece erguer-se solitário até mesmo na logorreia contemporânea, enquanto corre à sua volta o rio vão, vazio ou lutulento das avenidas informáticas.
Cristo será ainda mais radical: “Que o vosso falar seja: sim, sim e não, não. O que se acrescenta a isto vem do Maligno” (Mateus 5,37). Essa ascese verbal, que recorre ao baú dos Evangelhos, é o destino final do leitor de Jean-Michel Poffet, biblista suíço que viveu por muito tempo em Jerusalém, dirigindo a prestigiosa École Biblique et Archéologique Française.
Jean-Michel Poffet, Piccole grandi parole, Qiqajon, 132 páginas.
Ele, portanto, espreme dos textos evangélicos sete “pequenas grandes palavras” e, em torno delas, borda reflexões simples, mas incisivas, convencido – como já sugeria Emily Dickinson – de que não é verdade que uma palavra uma vez dita morre, porque é justamente então que ela começa a viver, gerando bem ou mal, amor ou ódio.
Começa-se com um vocábulo de matriz hebraica que todos conhecem, crentes e não crentes, e que os primeiros repetem mecanicamente todos os dias para selar as suas orações: “amém”. É o verbo da fé e, em filigrana, revela confiança, solidez, verdade, adesão; no entanto, como diz o estereótipo, consuma-se “em um amém”, quase em um sopro.
Depois, aquele “bem-aventurado!”, um adjetivo obsoleto na linguagem comum atual, mas que está inextricavelmente ligado àquelas “bem-aventuranças” provocativas de Cristo (“Bem-aventurados os pobres, os sofredores, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os artífices de paz, os perseguidos”) que abrem o primeiro dos cinco discursos do Evangelho de Mateus (5,3-11) e que derrubam o ranking dos valores da nossa sociedade.
Poffet continua com um imperativo: “Vinde!”, que Jesus lançou um dia a alguns pescadores do lago de Tiberíades que estavam puxando as redes para a terra, um apelo destinado a mudar totalmente a vida deles.
De fato, chega-se quase a uma espécie de ponto zero ao se recorrer a um mínimo “com”, a preposição do amor, tanto que está no epíteto de Jesus, Emanuel, em hebraico “Deus conosco”. São nada menos do que 3.500 as ocorrências bíblicas da fórmula “estar com”.
Depois, é a vez de “hoje”, que é sussurrado por Jesus moribundo ao rebelde crucificado ao lado dele (“Hoje estarás comigo no paraíso”), um advérbio amado pelo evangelista Lucas, e que a Carta aos Hebreus vai tecer no fluxo do tempo de modo resplandecente: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre!” (13,8).
Poffet confia o fim do setenário a um coral “Aleluia”. Mas nós recuperamos da sequência outro imperativo que o autor colocou na quarta posição do seu setenário, e é o severo “Cale-se!”, que ressoa duas vezes no início da vida pública de Cristo como “mordaça” para um endemoninhado e posteriormente durante a tempestade no lago, que ele gritou para a tormenta para aplacá-la.
Há, no entanto, outro silêncio que merece uma reflexão específica, e é aquele proposto por um pastor protestante com mais de 90 anos, o francês Gérard Delteil, em um intenso livreto com o emblemático título “Al di là del silenzio” [Além do silêncio], evocando uma frase de Edmond Jabès: “Deus é o silêncio que devemos romper”.
Gérard Delteil, Al di là del silenzio, Qiqajon, 188 páginas.
Sim, porque Deus se cala, tanto que o profeta Elias o descobre em “uma voz de sutil silêncio” (1Reis 19,12). Sim, ele é o Lógos, a Palavra, mas também é um “mistério”, e esse vocábulo tem na base o verbo grego mýein, “calar”. Não à toa, o que Jó descobre no fim é o trânsito a outro encontro com Deus, a visão: “Eu te conhecia por ouvir dizer, agora os meus olhos te veem” (42,5). É a experiência mística que é cunhada em um termo que tem a mesma raiz de “mistério”.
Primeiro, porém, Jó experimenta não o silêncio, mas o mutismo de Deus, semelhante a um imperador impassível relegado ao seu céu dourado. É essa indiferença que desconcertou e escandalizou muitos, até mesmo teólogos, diante da Shoá, ou diante dos cataclismos da natureza. Dessas diferentes faces do silêncio humano e divino, que pode ser promessa e ferida, epifania e escuridão, Delteil descreve as várias características em páginas de grande fragrância existencial e espiritual. Tendo explorado todo o “enigma do silêncio”, ele se cruza justamente com o perfil nu e cru do mal, que faz aflorar nos lábios da vítima o grito bíblico a Deus: “Por que escondes o teu rosto?”.
Mas também se seguem outros registros inesperados, como os da presença na ausência, do silêncio como ventre da Palavra, do eros do calar (dois apaixonados verdadeiros, esgotadas as palavras, olham-se nos olhos sem dizer nada, mas esse silêncio é muito mais eloquente do que as palavras), do “crer apesar de” ou, melhor, da fé, especialmente durante o vazio da voz divina.
Resta, porém, um último capítulo fundamental, aquele sobre o “retirar-se de Deus e a responsabilidade humana” da liberdade: é a ela, artífice de violências e de sofrimentos atrozes em relação ao próximo, mais do que a Deus, que se deveria dirigir muitas vezes tantas interrogações dilacerantes sobre o mal.
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Fale pouco ou, melhor, “cale-se”. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU