25 Janeiro 2017
“Somente o homem pode decidir aquilo que, em uma determinada circunstância, é certo ou errado fazer. Nesse sentido, Deus se retirou ao silêncio, evitando indicar-lhe o caminho, não para se afastar do homem, mas para encontrá-lo. Para lhe entregar toda a sua liberdade. Até mesmo a de ‘traí-Lo’.”
A opinião é do filósofo italiano Roberto Esposito, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 24-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao comentar a obra "Silêncio" de Shusaku Endo, o filósofo afirma que "a dualidade entre um Deus silente e distante, e um Cristo misericordioso e próximo é o verdadeiro coração metafísico do texto de Endo. Em nada estranho, ele faz parte da mensagem cristã. O silêncio de Deus fala. Na linguagem do silêncio. É claro, ele pode ser entendido como ausência de esperança que deixa o mundo perdido na sua insignificância".
“Por que Deus continua em silêncio enquanto aquelas vozes gementes continuam?”. Em torno dessa dilacerante pergunta, destinada a não ter resposta, gira o extraordinário romance “Silêncio”, do escritor japonês Shusaku Endo, sobre o qual se fala muito, graças à estreia do filme homônimo de Martin Scorsese.
Ele conta a história do jesuíta Sebastião Rodrigues, que chega ao Japão com outro jesuíta, Francisco Garrpe, para desculpar o padre Cristóvão Ferreira da acusação de abjuração.
O marco histórico dessa história, reconstruída por Franco Cardini na revista Vita e Pensiero (5/2016), é a perseguição dos cristãos no país asiático nas primeiras décadas do século XVII, quando muitos missionários católicos foram exilados ou trucidados em uma série de eventos que culminaram no chamado “martírio de Nagasaki” (1622).
Mas a reconstrução dessa história, hoje de particular atualidade por causa da retomada da perseguição aos cristãos no mundo, deixa em aberto a questão metafísica posta pelo livro. O texto de Endo é uma espécie de fenomenologia do silêncio, descrita em toda a sua gama de significados – daquele puro e inspirado da meditação ao sinistro e sombrio de uma natureza insensível aos sofrimentos humanos.
Mas, sobre todos os silêncios do mundo, levanta-se, inexplicável, o de Deus, diante das Igrejas desabadas, do sangue que corre, dos gemidos lamuriantes dos torturados.
E, “por trás do silêncio desse mar, o silêncio de Deus... a sensação de que, enquanto os homens elevam a sua voz angustiada, Deus permanece em silêncio, de braços cruzados”. Uma interrogação candente, aberta por Jó, que atravessa toda a teologia judaica depois da Shoá, sobre a misteriosa relação entre Deus e o mal que nenhuma teodiceia jamais foi capaz de esclarecer.
Na noite da razão, quem fala é apenas a violência, subtraída de uma possível compreensão. Ela não pertence a uns mais do que a outros. É a força de quem tem o poder que se descarrega sobre o mais fraco. Não é por nada que, no livro de Endo, a figura do Grande Inquisidor de Dostoiévski passa do campo da Contrarreforma católica contra os hereges para a dos perseguidores budistas contra os convertidos ao cristianismo.
Esse espelhamento entre religiões diferentes foi interpretada pela crítica como uma espécie de sincretismo, que, a partir das páginas do livro, penetraria a própria concepção do autor – ele também convertido a um catolicismo que deixa dentro de si elementos e resíduos da religião budista. Além disso, a relação exclusiva com o silêncio é característica de todo o pensamento oriental, budista e taoísta, centrados no tema do vazio, como a filosofia zen. Isso tornaria a passagem de uma religião a outro em um ato quase natural em um mundo marcado pela retirada do deus transcendente em favor apenas da natureza humana.
Na realidade, as coisas não são assim. O padre Rodrigues se encontrará diante do dilema não da “traição” ditado pelo abandono da fé, mas sim por uma maturação da própria fé. Para captar essa passagem, é preciso olhar para o outro baricentro simbólico do livro, que responde com igual intensidade ao silêncio de Deus. Trata-se do rosto de Cristo, que aparece continuamente com os traços não do soberano glorioso, mas da extrema dor de ter sido, Ele mesmo, abandonado pelo Pai.
Por isso, Scorsese escolhe o rosto de Cristo, magro e descarnado, de El Greco, em vez daquele reconfortante de Piero della Francesca. Se o Pai se cala, aquele rosto chagado fala. E é ele mesmo quem pede que o jesuíta o pisoteie, uma vez que Cristo veio ao mundo para ser pisoteado.
Essa dualidade entre um Deus silente e distante, e um Cristo misericordioso e próximo é o verdadeiro coração metafísico do texto de Endo.
Em nada estranho, ele faz parte da mensagem cristã. O silêncio de Deus fala. Na linguagem do silêncio. É claro, ele pode ser entendido como ausência de esperança que deixa o mundo perdido na sua insignificância. Esse é o silêncio de Deus que dá título ao romance do escritor egípcio Gilbert Sinoué. O mesmo silêncio da trilogia do silêncio de Deus de Ingmar Bergman, que abandona o homem na absoluta incomunicabilidade da cidade de Timoka (“O silêncio”, 1963). Embora no filme “O rosto” (1958) Bergman explique que Deus não responde ao homem só por ser estranho à modalidade de expressão que o próprio homem fixou. Mas esse silêncio também pode ser interpretado de forma diferente. Isto é, como aquilo que aproxima Deus ao homem, de acordo com toda a tradição da mística cristã, do Mestre Eckhart a Angelus Silesius, até Simone Weil, Edith Stein e Sergio Quinzio (“Il silenzio di Dio”, Ed. Il Saggiatore). Aquele que subtrai o homem da vaidade da palavra e da ditadura do barulho – assim em “La forza del silenzio”, do cardeal Robert Sarah (Ed. Fayard, 2015).
Mas o silêncio de Deus também pode ser entendido como aquilo que entrega ao homem a sua liberdade. “Deus é o silêncio do universo, e o homem, o grito que dá sentido a esse silêncio”, escreve José Saramago. Mas aquele que talvez mais aprofundou nesse abismo foi André Neher, em L’esilio della parola. Dal silenzio biblico al silenzio di Auschwitz [O exílio da palavra. Do silêncio bíblico ao silêncio de Auschwitz] (Ed. Marietti): é justamente o eclipse de Deus que impõe um novo papel ao crente. Que o obriga a uma escolha não vinculada. Somente o homem pode decidir aquilo que, em uma determinada circunstância, é certo ou errado fazer. Nesse sentido, Deus se retirou ao silêncio, evitando indicar-lhe o caminho, não para se afastar do homem, mas para encontrá-lo. Para lhe entregar toda a sua liberdade. Até mesmo a de “traí-Lo”.
Na sua entrevista à revista La Civiltà Cattolica (dezembro de 2016), Scorsese, declarando ter deixado de lado o lado severo do Deus que pune em favor do misericordioso, refere-se, dentre outras coisas, a Dietrich Bonhoeffer. Pois bem, o que fez Bonhoeffer, ao organizar o atentado contra Hitler, senão escolher, voluntariamente, a assunção de culpa – a máxima culpa de matar em nome de Deus – por amor ao homem?
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Todos os sons do silêncio de Deus. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU