18 Janeiro 2023
"No livro Sobre o modo capitalista de pensar, o sociólogo José de Souza Martins (1986) nos alerta para a necessidade de uma sociologia crítica e fecunda. Ele denuncia a segmentação do conhecimento em disciplinas especiais como um artifício de abstração que torna múltiplo um objeto que resiste ao rompimento da sua unicidade, aponta a origem ambígua da sociologia como pensamento conservador necessário à constituição da sociedade capitalista e advoga pertinentemente a necessidade de se trabalhar teoricamente a partir de uma visão totalizadora e histórica das situações sociais (cf. MARTINS, 1986, p. 26-27.51). A luta pela terra, por território e por moradia contribui para a superação desse esquartejamento da realidade em disciplinas especiais e aponta para a importância de se criar visão totalizadora e histórica das situações sociais", escreve Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica, em Belo Horizonte.
Muitas vezes, a realidade social é vista em termos simplistas, com generalizações, polarizações, dualismos e dicotomias, tais como: tradicional/moderno, rural/urbano, tradicional/racional, emocional/racional, pré-capitalista/capitalista etc., mas ao analisar a realidade social em esquemas dicotômicos acaba-se por pensar ser o mundo ambíguo, o que esconde a dominação de fundo, que é a dominação do trabalho e da terra pelo capital, algo que se constrói pela fetichização das mercadorias e coisificação do ser humano detentor de dignidade e de direitos. E, pior, a ambiguidade se sobrepõe ao antagonismo e à contradição constitutiva da sociedade capitalista, de modo que o que é construído nas teias das condições históricas e materiais aparece como simplesmente imperfeito.
A luta entre sem-terra – oprimidos – versus latifundiários – opressores –, sem-casa versus especuladores da cidade, negros versus racistas, mulheres versus homens machistas e patriarcais, homossexual versus homofóbicos, meio ambiente versus agronegócio e mineradoras, democratas versos bolsonaristas golpistas, não se trata apenas de um conflito entre o bem e o mal. Recair também no modo capitalista de pensar é embaçar e encobrir com uma ‘nuvem de fumaça’ a realidade complexa das relações sociais e históricas que determinam a exploração do trabalho pelo capital. A luta pela terra é travada dentro do capitalismo, onde “o modo de produção capitalista, na sua acepção clássica, é também modo capitalista de pensar e deste não se separa” (MARTINS, 1986, p. IX). Enquanto modo de produção de ideias, levado para todas as classes sociais a partir da classe dominante, o modo capitalista de pensar está introjetado no conhecimento científico tanto quanto no senso comum e diz respeito “ao modo de pensar necessário à reprodução do capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação – ideológicas e sociais” (MARTINS, 1986, p. IX).
Karl Marx analisa o fetichismo da mercadoria, que gera a alienação na sociedade. Com a mercantilização de tudo na sociedade capitalista, todo sujeito é transformado em mercadoria, que se vende e se compra. O que predomina é “a razão que faz com que as coisas se relacionem umas com as outras como se fossem dotadas de condição humana e que faz com que as relações entre as pessoas pareçam relações entre coisas” (MARTINS, 1986, p. 17).
No livro Sobre o modo capitalista de pensar, o sociólogo José de Souza Martins (1986) nos alerta para a necessidade de uma sociologia crítica e fecunda. Ele denuncia a segmentação do conhecimento em disciplinas especiais como um artifício de abstração que torna múltiplo um objeto que resiste ao rompimento da sua unicidade, aponta a origem ambígua da sociologia como pensamento conservador necessário à constituição da sociedade capitalista e advoga pertinentemente a necessidade de se trabalhar teoricamente a partir de uma visão totalizadora e histórica das situações sociais (cf. MARTINS, 1986, p. 26-27; 51). A luta pela terra, por território e por moradia contribui para a superação desse esquartejamento da realidade em disciplinas especiais e aponta para a importância de se criar visão totalizadora e histórica das situações sociais.
Resgatar historicamente as origens de tudo o que se vai analisar é imprescindível para se compreenderem as condições históricas e materiais que geraram certos tipos de pensamento que são pensamentos capitalistas. O pensamento não é neutro, não parte de tábua raspada, mas “é produto de um estilo de pensamento. O pensamento traduz uma maneira de ver e de viver e, portanto, uma forma de querer generalizada sob ação dos mecanismos de alienação, isto é, de reprodução social” (MARTINS, 1986, p. 48).
Não há como haver emancipação sem criatividade – dimensão poética da vida -, pois a criatividade evita a adaptação, a adequação e o conformismo diante da ordem estabelecida vigente. A luta pela terra, por território e por moradia, ao envolver a participação de todos os Sem Terra, Sem Moradia e Povos Tradicionais distribuídos democraticamente em comissões e tarefas, cultiva e fomenta a criatividade entre os camponeses Sem Terra, os Sem Casa e os Povos desterritorializados, o que desenvolve aspectos emancipatórios. Por alimentar o trabalho poético – criativo – a luta pela terra, por território e por moradia dificulta os processos de fetichização e de coisificação. Por isso também, a luta pela terra, por território e por moradia tem algo de emancipatório. Pesquisando e acompanhando a luta pela terra em várias regiões do país, ainda em 1991, José de Souza Martins alertava: “Uma reforma agrária que não incorpore os projetos e formulações já revelados nas próprias lutas dos lavradores, que não combine as diferentes concepções e práticas alternativas de propriedade, e que ao mesmo tempo não abra a possibilidade de crescimento desses regimes alternativos sem a tutela do capital, poderia se transformar num mero exercício de ficção” (MARTINS, 1991, p. 59-60).
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e os Movimentos Sociais Populares internamente enfrentam no cotidiano da luta por terra, território e outros direitos socioambientais uma tensão dialética desafiadora entre “agentes da CPT e trabalhadores/as”, outras vezes entre “cúpula de assessoria e base”. Mas, cultivando humildade, paixão pela causa das camponesa e dos camponeses, capacidade de ouvir e levar a sério o que dizem as trabalhadoras e os trabalhadores, dialogar – falar ‘com’ e não apenas falar ‘para’/‘ao’ ou ‘sobre’ – a CPT e os Movimentos Sociais Populares seguem empunhando a bandeira da agricultura camponesa, da luta pela terra, embasando-se nos últimos do campesinato. Lutar pela terra de forma emancipatória exige não recair em nível pessoal, nem em nível comunitário-coletivo no dogmatismo, nem no relativismo, nem no basismo, nem no idealismo e nem no romanticismo. Se a realidade atual é cruel e complexa, não haverá soluções simplistas, mas complexas, processuais e que exigem aprimoramento teórico e prático constante. A interpretação da dinâmica social segundo a perspectiva do materialismo histórico-dialético é algo imprescindível na construção de emancipação humana.
Em síntese, a dominação do capital sobre o trabalho ancorado no aprisionamento da terra está se reproduzindo cotidianamente. O caminho para a superação desta brutal violência social passa necessariamente pela luta pela terra, por território, por moradia e por todos os outros direitos socioambientais. Tudo isso feito articulando os saberes populares construídos no calor das lutas históricas e gerando condições objetivas materiais que viabilizem mudanças de consciência no rumo de emancipação humana.
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3a edição. São Paulo: HUCITEC, 1991.
Sobre o modo capitalista de pensar. 4ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1986.
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Como superar a fetichização e a coisificação? Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU