03 Janeiro 2023
"O engajamento dos sem-terra e dos sem-teto na luta pela terra e a perseverança na luta estão ligados diretamente ao tamanho e à qualidade do apoio e do acompanhamento recebido. As/os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e muitos outros movimentos sociais, as/os agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o povo das ocupações sempre reconhecem que é graças ao apoio e acompanhamento experimentados como algo concreto que se mobilizam as pessoas para a luta coletiva por direitos e para a perseverança na luta", escreve em artigo Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica, em Belo Horizonte.
Eis o artigo.
(Con)vivemos em meio a uma contradição social, fruto de uma organização social heterônoma e desigual, em uma sociedade capitalista que idolatra o mercado e a acumulação de capital à custa do sangue da maioria do povo. É praticamente impossível alguém existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações, sendo um anarquista radical, pois irá encontrar inúmeras barreiras impostas por outros que moldam e ditam o que se torna dominante.
Na luta pela terra, por território, por moradia e outros direitos socioambientais vários conceitos são constituídos pelos Sem Terra, Sem Teto, Indígenas, tais como: cumplicidade na luta, Sem Terra, Sem Teto, militante, lutador/a etc. Esses conceitos expressam a ‘fina flor’ da luta pela terra, por território e por moradia enquanto pedagogia emancipatória. ‘Cumplicidade na luta’ se refere à concepção segundo a qual o êxito ou o fracasso da luta depende de todos/as e não apenas das lideranças. Pela ‘cumplicidade na luta’ desenvolve-se a corresponsabilidade e a noção que diz “se mexer com qualquer Sem Terra, Sem Teto, Indígena, Quilombola etc., mexe comigo” ou a ideia de que as vitórias dependem da dedicação e do empenho de todas/os nas tarefas que lhe são designadas. “Sem Terra” se refere ao sem-terra que não é um mero expropriado e explorado, mas se tornou um sujeito protagonista na luta pela terra, aquele que defende nas lutas coletivas o seu direito à terra, mas nunca deixa de ser solidário com quem foi expropriado da terra e ainda não se engajou na luta por ela. Sem Teto, da mesma forma. ‘Militante’ se refere àquele/a para quem o sentido da vida não está apenas em participar do que foi instituído pela classe dominante mentora e reprodutora do sistema do capital, mas em transformar o que está aí como dado, revolucionando-o; é fazer a história com as próprias mãos. ‘Lutador/a’ se refere a quem está doando a própria vida na luta por direitos humanos fundamentais.
O engajamento dos sem-terra e dos sem-teto na luta pela terra e a perseverança na luta estão ligados diretamente ao tamanho e à qualidade do apoio e do acompanhamento recebido. As/os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e muitos outros movimentos sociais, as/os agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o povo das ocupações sempre reconhecem que é graças ao apoio e acompanhamento experimentados como algo concreto que se mobilizam as pessoas para a luta coletiva por direitos e para a perseverança na luta.
Inspira-nos na reflexão teórica sobre luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana o pensador cubano Ovidio D’Angelo Hernández, que analisa a íntima relação existente entre autonomia integradora e transformação social, um desafio ético emancipatório da complexidade. Hernández advoga a construção de uma autonomia integradora, que é diferente de autonomia segundo o iluminismo, pois não se trata apenas de esclarecimento de consciência. Hernández delineia uma práxis teórica emancipatória latino-americana que passa pela pesquisa-ação participativa como método e inclui a articulação entre os processos micro e macro de transformação social. Busca-se integrar saberes buscando a construção de um pensamento alternativo ao pensamento único colonizador e neoliberal. Hernández faz distinção entre transformação e autotransformação social, o que é enfatizado pelo papel proativo e autorreferente dos próprios sujeitos sociais.
Na América Afro-Latíndia estamos diante da emergência de novas epistemes, novas formas de conhecimento, tais como as que são exercitadas na Filosofia da Libertação, na Teologia da Libertação, na Pedagogia da Libertação e em muitos outros conhecimentos que são construídos com base na luta coletiva dos/as injustiçados/as. A pedagogia de emancipação humana, por exemplo, aposta na educação popular como uma ferramenta fundamental de transformação social e cultural. Isso é feito muito mais fora da escola do que na escola, mais nas lutas coletivas pela terra, por território, por moradia e por todos os outros direitos sociais do que em processos de educação formal que “se parece mais com uma forma de adestramento, disciplinarização, treinamento e docilização dos indivíduos, do que como meio de transformação e de revolução social”, afirma Paulino José Orso (ORSO, 2008, p. 51).
Para a pedagogia de emancipação humana não há separação entre teoria e prática, mas há teoria prática e prática teórica, em movimento, na contradição e na dialógica. Da mesma forma que não faz sentido separar o jovem Marx do velho Marx, o primeiro e o segundo Foucault, ou os diversos momentos da obra de Paulo Freire, devemos olhar a obra dos/as pensadores/as no seu conjunto e interpretá-la à luz das intenções fundamentais, dentro do movimento dialético e contraditório da realidade.
Para Ovídeo Hernández o conceito "conscientização": “designa un proceso de acción cultural y sociopolítica en el que se involucran hombres y mujeres “para transformar la realidad y transformarse a si mismos” [...], se trata – según palabras de Freire en su libro Acción cultural para la libertad – de un proceso continuo que implica una praxis, en el sentido de la relación dialéctica entre acción y reflexión [...] que implica una inserción crítica en la historia” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 17).
Portanto, no próximo período desafiador para o povo brasileiro, urge aprimorarmos compromisso com as lutas sociotransformadoras articulando de forma emancipatória teoria prática e prática teórica, em movimento, na contradição e na dialógica. Eis o caminho para fazermos a história com nossas próprias mãos.
Referência
- HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidad. La Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.
- SANTOS, Ariovaldo. Mundialização, educação e emancipação humana. In: ORSO, Paulino José; GONÇALVES, Sebastião Rodrigues; MATTOS, Valci Maria (Orgs.). Educação e lutas de classes. São Paulo: Expressão Popular, p. 39-47, 2008.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima
1 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)
2 - “Arborizemos nosso ambiente! Educação ambiental e práxis ecológica” (Rosimeire Maria, de Arinos, MG)
3 - Frei Gilvander no Ato Interreligioso da Educação. Educação que liberta. Sind-UTE/MG, BH/MG - Vídeo 2
4 - Ato Interreligioso da Educação: Valorização e Educação que liberta e humaniza. Sind-UTE/MG, BH
5 - Frei Gilvander X Seguranças da Vale S/A e Educação Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG. Vídeo 7
6 - P.A Terra Prometida do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3
7 - Frei Gilvander apoia greve dos trabalhadores e trabalhadoras em Educação de Betim, MG 12 2 2020
Leia mais
- Pedagogia histórico-crítica e luta pela terra para mudar a sociedade
- Educação para prática de libertação
- Paulo Freire. Pedagogo da esperança. Revista IHU On-Line, Nº 223
- Esperar lutando: eis o caminho!
- Luta pela terra incomoda o capital e o Estado
- Pedagogia histórico-crítica e luta pela terra para mudar a sociedade
- Levantemo-nos! À luta por direitos, já!
- Luta pela terra incomoda o capital e o Estado
- Luta pela terra, caminho de emancipação
- Jesus de Nazaré: jovem camponês da periferia, mártir e portador de uma pedagogia emancipatória
- Injustiça agrária é raiz da injustiça social
- Luta que emancipa
- A luta pela terra deixa nua a violência do poder
- Perguntas sobre a luta pela terra
- Concentrar terra para crescer o capital e a violência
- A explosão da violência na luta pela terra e território
- Os sem-terra desafiam a gigante Vale na Amazônia
- A legitimidade popular para cobrar função social à propriedade
- “Direito à moradia é absoluto na Constituição, o à propriedade não”, diz Erminia Maricato
- A legitimidade popular para cobrar função social à propriedade
- "Está em curso, no Brasil, uma concentração da propriedade da terra". Entrevista especial com João Pedro Stédile
- O banqueiro e o sem-terra
- João e Ricarda, exemplos de Sem Terra
- Um sem-teto chamado Jesus. Artigo de Tomaso Montanari
- Os músculos nocauteados pela ironia. Artigo de Michela Marzano
- Ao STF, indígenas pedem a retomada do julgamento do marco temporal e alertam para genocídio dos povos
- Exportadora de óleo de palma acusada de fraude, grilagem de terras em cemitérios quilombolas
- Escola do MST lança material inédito de apoio à Educação Popular em Agroecologia
- Participação civil: movimentos populares se reúnem pela primeira vez com equipe de transição
- Direitos humanos: “Nesta luta tem que ter claro o seguinte: talvez você tenha que dar a própria vida”. Entrevista especial com Jair Krischke
- Esperança ferida. Artigo de Flavio Lazzarin
- Educação para prática de libertação
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Teoria prática e prática teórica, em movimento: eis o caminho! Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU