Por: Cesar Sanson | 24 Agosto 2015
Em três anos, Raul Castro deixará o poder. Qual o futuro da ilha, em meio a promessa de mudança constitucional, reformas econômicas e reatamento com EUA?
A reportagem de Janette Habel, publicada por Le Monde Diplomatique e reproduzida por OutrasPalavras, 22-08-2015. A tradução é de Inês Castilho.
Em 2018 Raul Castro, que terá 87 anos, não vai assumir novo mandato presidencial. Em três anos, portanto, a geração de Sierra Maestra terá deixado o poder. Três anos é pouco para reformar a economia, adotar uma nova Constituição e dirigir a normalização das relações com Washington, apresentada no encontro dos presidentes de Cuba e dos EUA na Cúpula das Américas, em abril. O regime sobreviverá ao desaparecimento de sua direção histórica?
O Partido Comunista Cubano (PCC) já designou um sucessor: o premiê vice-presidente Miguel Díaz-Canel. Mas os desafios permanecem. Para enfrentá-los, Castro conta com as Forças Armadas Revolucionárias (FAR), o exército nacional, que chefiou por meio século; o PCC e a Igreja Católica, que está no centro das negociações com Washington (1). Num cenário em que as reformas econômicas aprofundaram as desigualdades, (2) a incerteza sobre o futuro do país é generalizada. O PCC tenta responder com o lançamento de consultas públicas no período anterior a seus congressos. Raul Castro afirmou que isso ocorreria novamente no sétimo, previsto para Abril de 2016. Mas o debate já começou entre os intelectuais, membros e não-membros do partido, especialmente na web — apesar do acesso limitado à Internet.
Castro tem procurado “atualizar” o socialismo cubano — um eufemismo para designar a liberalização econômica implementada desde 2011. Embora desarticulem a sociedade que Fidel um dia procurou construir, estas reformas não foram contestadas pelo antigo presidente. “O modelo cubano já não funcionava, mesmo para nós”, admitiu ele (The Atlantic, setembro de 2010). A situação econômica deixou pouca escolha. A ajuda da Venezuela permitiu à ilha alcançar uma taxa de crescimento média de 10% entre 2005 e 2007, mas isso mudou com a crise financeira e as dificuldades do parceiro bolivariano. “Em 2013, o comércio entre Cuba e Venezuela diminuiu em 1 bilhão de dólares; ele poderá cair ainda mais em 2014″, advertiu em outubro passado o economista cubano Omar Everleny Pérez Villanueva (3). De acordo com algumas estimativas, esta redução seria de 20% em relação ao ano anterior.
Quem ganha e quem perde com mudanças
O governo adotou, em março de 2014, uma nova lei sobre os investimentos estrangeiros, apresentada por Raúl Castro como “crucial”. À exceção da Saúde, Educação e Defesa, todos os setores são doravante abertos ao capital estrangeiros, com a garantia de isenção de impostos durante oito anos, ou até mais, em alguns casos, especialmente em “zonas especiais de desenvolvimento econômico”, como o porto de Mariel (4), construído com a ajuda do Brasil.
No entanto, os projetos propostos devem receber o aval dos organismos governamentais: “Não é o capital que define o investimento (5)”, sublinha Déborah Rivas Saavedra, diretora de investimento estrangeiro no ministério do Comércio Exterior. A contratação de trabalhadores está sob o controle de agências estatais. O economista Jesús Cervera Arboleya observa: “Os emigrados cubanos já são investidores indiretos nas pequenas empresas (através do dinheiro que enviam para suas famílias); sua participação em escala maior não é proibida por lei, mas pelo embargo (6).”
Entretanto, para alguns, a transformação da ilha avança ainda muito lentamente: “Não se pode ‘atualizar’ alguma coisa que nunca andou”, inquieta-se Pérez Villanueva. “Não há crescimento. Este ano, se Deus nos ajudar, vamos chegar talvez a 1% (7)”. A essa preocupação econômica, a jovem socióloga Ailynn Torres responde com uma pergunta política: “O que vamos fazer com o modelo econômico que está sendo proposto? Quem são os vencedores e os perdedores desse modelo (8)?”.
A crer no discurso oficial, salpicar uma dose de mercado na economia da ilha deveria melhorar seu desempenho, sem enfraquecer a justiça social. Ou a pobreza afeta hoje 20% da população urbana (contra 6,6% em 1986). A supressão da caderneta de racionamento, a libreta, foi anunciada e em seguida adiada, porque afetaria os mais pobres. Em uma sociedade onde a igualdade é um marcador de identidade, os beneficiários e as vítimas das reformas aparecem cada vez mais claramente.
Entre as vítimas, segundo o próprio Raúl Castro, incluem-se “os assalariados do Estado remunerados em pesos, pois o salário não é suficiente para viver”, as pessoas idosas – ou 1,7 milhão de cidadãos e cidadãs – “cujas aposentadorias são inadequadas em relação ao custo de vida (9)”, mas também as mães solteiras, pessoas negras – que não se beneficiam, ou se beneficiam pouco, das contribuições financeiras de cubano-americanos – e os habitantes das províncias orientais (10).
Entre os ganhadores figuram os empregados das empresas mistas, os assalariados do turismo, os produtores do setor agrícola privado, uma parte dos trabalhadores autônomos (“cuentapropistas”), em suma, toda uma população com acesso a uma moeda forte: o CUC (convertible unit currency ou unidade monetária conversível).
Desde 2004, essa segunda moeda veio juntar-se ao peso cubano; um CUC equivale a 24 pesos tradicionais. O CUC visava a substituir o dólar, autorizado em 1993. Duas economias funcionam, portanto, lado a lado: a do peso e a do CUC, usado pelos turistas e todos os cubanos que trabalham em contato com eles.
Raul Castro conta com a lealdade das FAR para conciliar liberalização econômica e manutenção de um sistema político de partido único. Depois da grande crise dos anos 1990 (11), a hierarquia militar assumiu a gestão de setores essenciais da economia graças ao Grupo de Administração Empresarial SA (Gaesa), uma holding de empresas controladas por ela. Foi no interior da Gaesa que se experimentou o “aperfeiçoamento das empresas”, emprestado das técnicas gerenciais ocidentais para aumentar a produtividade. O prestígio das FAR persiste entre a população, mas elas gozam de privilégios que suscitam críticas, não é raro ouvir: “Eles não têm problemas em encontrar habitação” – referindo-se ao moderno complexo imobiliário reservado aos militares e suas famílias em Havana.
Já o PCC perdeu influência, mas sua gestão tem sido rejuvenescida, feminilizada e mestiçada. Para o economista Pedro Monreal Gonzalez, o partido mantém a sua credibilidade, e “o Estado ainda goza de apoio popular por causa de sua capacidade de fornecer bens públicos considerados essenciais por muitos cubanos.”
Em fevereiro de 2015, o PCC anunciou que uma nova lei eleitoral entraria em vigor antes do final do mandato de Raul Castro. Esse anúncio seguiu-se a outro, de fevereiro de 2013, que criou uma comissão sobre a reforma constitucional. Como renovar a liderança pela promoção de quadros que não têm a legitimidade dos antigos, na ausência de debate público que permita escolher entre candidatos portadores de diferentes propostas? O modo atual de designação, que em última análise requer a aprovação do PCC, parece pouco viável a longo prazo.
Espacio Laical, a revista publicada pelo Arcebispado de Havana (sem status oficial), tem sido o espaço privilegiado do debate político. Por uma década, ela tem organizado colóquios e publicado artigos sobre a reforma constitucional, o papel do PCC, à refundação dos órgãos de poder popular (OPP). Os responsáveis pela Espacio Laical, os católicos leigos Roberto Veiga e Lenier González, enfatizaram o “contraste entre o pluralismo da sociedade e a falta de espaços permeáveis para esse pluralismo se expressar (12).” Mas, em junho de 2014, eles dois tornaram pública sua renúncia forçada em seguida a críticas “muito graves” contra si e contra o Cardeal Jaime Lucas Ortega y Alamino (13). Obviamente, o arcebispo desejava ver na revista uma abordagem mais “pastoral”, ou seja, menos política. Quatro meses depois, o Centro Cristão de Reflexão e Diálogo de Cuba (14) resolveu patrocinar um projeto semelhante na revista Cuba Posible, que incluiu Veiga e González como coordenadores. O primeiro número dava conta de um simpósio consagrado à soberania do país e o futuro de suas instituições.
O artigo V da Constituição atual é objeto de críticas. O PCC é definido como “martiano (de José Martí, inspirador da independência cubana), marxista-leninista, vanguarda organizada da nação cubana” e como “a força dirigente suprema da sociedade e do Estado”. Uma definição contestada pela Igreja, mas também por pesquisadores. “A ideia de um partido de vanguarda é equivocada quando ele se torna um partido do poder”, diz o sociólogo Aurelio Alonso. Porém, a construção de um “Estado inclusivo, que possa admitir o pluralismo político e ideológico” constitui uma tarefa urgente. Pluralismo ou pluripartidarismo? Para Veiga, “a possibilidade de autorizar a existência de outras forças políticas enraizadas nos fundamentos da nação” deve ser considerada, ainda que ele não considere isso realista a curto prazo (15). Hoje, ninguém sabe se a reforma eleitoral anunciada permitirá a eleição de deputados próximos da Igreja ou outras figuras independentes.
O debate trata também das formas de eleição do presidente, cujo número de mandatos está agora limitado a dois de cinco anos. Para alguns, a votação deve ser realizada por sufrágio universal direto, para dar legitimidade ao novo representante. O cientista político Julio Cesar Guanche ressalta a refundação do “poder popular”, oficialmente corporificado pelas assembleias municipais, provinciais e nacional (16). É preciso construir uma “cidadania democrática e socialista”, observa sobre isso o sociólogo Ovidio D’Angelo Hernandez. Mas as “organizações de massa” são muito “subordinadas ao PCC” para que se tornem a expressão. De tal forma que “o discurso oficial mina a base sobre a qual repousa a sua própria legitimidade histórica”, observa Guanche, que afirma: “O questionamento do ‘igualitarismo’ abre o caminho para um questionamento do ideal mais poderoso do socialismo: a igualdade. Trata-se de uma crítica quase explícita dos discursos de Castro, que denunciou, no Congresso da Confederação de Trabalhadores de Cuba (CTC), o “paternalismo, o igualitarismo, as gratuidades excessivas e subsídios indevidos, a velha mentalidade forjada ao longo anos.”
Uma corrida lenta
Essa “velha mentalidade” não poupa o PCC, onde continuam a reinar o hábito da unanimidade e as investidas da censura. Tais práticas suscitam contestação. Pela primeira vez, viu-se a mão de uma deputada se levantar na Assembleia Nacional para votar contra o novo código do trabalho: a de Mariela Castro, filha de Raul, em sinal de protesto contra a recusa de incluir no texto a proibição de discriminações sexuais. Da mesma forma, a desprogramação do filme do cineasta francês Laurent Cantet Retorno a Ítaca (2014), que ilustra o desencanto cubano, provocou protestos de alguns dos seus colegas.
Neste contexto, a restauração de relações diplomáticas com os Estados Unidos parece ser ao mesmo tempo necessária e perigosa. O governo cubano estima que o objetivo de Washington continua a ser a derrubar o regime. Por enquanto, este ganhou o primeiro turno, ao não fazer nenhuma concessão; mas é tempo para um otimismo mais temperado. “O risco é que eles tomem tudo, como fazem em todos os lugares. O que permanecerá para os cubanos?”, questiona um aposentado. “Eles acabam de comprar um dos nossos jogadores de beisebol por 63 milhões dólares”, acrescenta outro. “Muitas pessoas não sabem realmente o que será do futuro”, diz o sociólogo Rafael Acosta. O que vai acontecer depois do fim do embargo? Como controlar o afluxo de turistas e de dólares? Entre os pontos de discórdia estão milhares de propriedades nacionalizadas durante a revolução. O governo não pretende compensar os proprietários que deixaram o país. Ele vai colocar na balança o custo (estimado em 100 bilhões de dólares) de um embargo de meio século e a restituição da base de Guantánamo.
A revogação completa do embargo necessita do acordo do Congresso norte-americano, no qual republicanos e democratas estão divididos. Em 14 de abril, Obama enfim retirou Cuba da lista dos Estados “apoiadores do terrorismo”. Seguiu-se o restabelecimento das relações diplomáticas e virá em breve a nomeação de dois embaixadores. O processo de normalização promete ser longo. Havana usará essa lentidão para evitar a desestabilização do país e cultivar suas relações com a América Latina, a China e a União Europeia.
Na ausência de um líder histórico que encarne a luta contra o “Império”, pode tornar-se mais difícil, no futuro, unir e mobilizar a população cubana.
Notas
(1) Ler “Cuba, le parti et la foi”, Le Monde Diplomatique, junho 2012.
(2) O coeficiente de Gini, que permite medir as desigualdades [escala de 0 a 1, e quanto mais próximo de 1, mais desigual], era de 0,24 em 1986, de 0,38 em 2002 e de 0,40 em 2013.
(3) Atas do colóquio «Cuba: soberanía y futuro», Cuba Posible, n°1, Havana, outubro 2014.
(4) Maior terminal de contêineres do Caribe, está perto de uma passagem estratégica para os navios que utilizam o Canal do Panamá.
(5) Granma, Havana, 17 de abril de 2014.
(6) Jesús Arboleya Cervera, «Integracíon y soberanía», Cuba Posible, 20 de janeiro de 2015.
(7) Cuba Posible, n°1, op. Cit.
(8) Ibid.
(9) Discurso no XX congresso da Central dos trabalhadores cubanos (CTC), 22 fevereiro 2014.
(10) Mayra Espina, «Desigualdad social y retos para una nueva institucionalidad democrática en la Cuba actual» (PDF), Espacio Laical, n°2, Havana, 2014.
(11) Entre 1991 e 1994, o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 35%.
(12) «Cuba y Estados Unidos: Los dilemas del cambio», Cuba Posible, no. 2, fevereiro de 2015.
(13) Ibid.
(14) Le CCRD-C se define como uma “instituição religiosa da sociedade civil”.
(15) Cuba Posible, n° 2, op. Cit.
(16) Cuba Posible, n° 1, op. Cit. Idem para as citações seguintes.
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