28 Outubro 2022
Mais uma vez, o “voto evangélico” está no centro do debate sobre as eleições no Brasil. No primeiro turno, a votação desse grupo em Bolsonaro continuou superando a votação em Luiz Inácio Lula da Silva, embora o candidato de direita tenha reduzido os números em relação a 2018, enquanto o líder do PT teve um aumento. O apelo do líder do Partido dos Trabalhadores aos evangélicos, nas últimas semanas, e o surgimento de uma série de lideranças religiosas em defesa do projeto petista mostram a “outra face”, ainda que minoritária, do campo evangélico.
Joanildo Burity é uma das vozes mais autorizadas sobre o assunto. Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba e doutor em Ciência Política pela Universidade de Essex, também já foi coordenador do Programa de Mestrado em Religião e Globalização da Universidade de Durham (Reino Unido). Atualmente, é professor dos programas de pós-graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ.
Nesta entrevista, Burity analisa o voto evangélico no primeiro turno eleitoral no Brasil e explica como as posições moralmente conservadoras de um amplo setor desse grupo religioso não necessariamente se traduzem em conservadorismo político na hora de votar.
A entrevista é de Mariano Schuster, publicada por Nueva Sociedad, Outubro/2022. A tradução é do Cepat.
O primeiro turno no Brasil trouxe a questão do “voto evangélico” de volta ao debate público. Nesse turno eleitoral, verificou-se que Jair Bolsonaro tem um apoio muito alto entre a população evangélica, embora tenha diminuído sua margem de votação em relação à eleição em que foi eleito presidente, ao passo que Lula da Silva aumentou. O que está acontecendo com o voto dos evangélicos?
As visões que apresentam o voto evangélico como monolítico e em bloco estão equivocadas. Trata-se de uma construção política dos últimos dez anos e está mais vinculada à predominância de uma elite pastoral e política de direita no país do que a uma comunidade religiosa que pensa e age de determinada forma. Nessas eleições, ficou muito claro que há uma forte pressão de pastores e de lideranças leigas nas igrejas evangélicas para conseguir alinhar seus membros com posições de direita e pró-Bolsonaro.
Dentro de muitas igrejas, essas pressões provocaram uma espécie de reação e resistência de grupos moderados, mas também de grupos de esquerda que estavam muito calados por tantas derrotas, nos últimos anos, e por essa mesma pressão institucional. Essa pressão chegou inclusive à ameaça de expulsão daqueles pastores e membros que expressam seu apoio a Lula e ao projeto de reconstrução, representado pelo PT, entre os presbiterianos, batistas e pentecostais da Assembleia de Deus (a maior denominação protestante do país).
Por outro lado, além de observar as mudanças e transformações na eleição para a presidência e para os cargos executivos, é necessário registrar as mudanças eleitorais para os cargos legislativos. Já existem vários estudos no Brasil que mostram que a disponibilidade de candidatos evangélicos para cargos legislativos, por exemplo, não se traduz diretamente no voto dos fiéis evangélicos. Nesse sentido, podemos dizer que o campo evangélico é muito heterogêneo, mas cabe destacar que também tem sido muito mobilizado, nos últimos anos, em torno da questão dos “valores tradicionais”.
Trata-se de um recorte muito seletivo, mas muito eficaz, visto que os evangélicos geralmente são muito sensíveis às questões associadas à sexualidade ou ao gênero. Mas o fato de que possam ser mobilizados em torno desses temas não significa que o voto – como opção política – seja uma consequência dessas posições morais. Devemos lembrar que os evangélicos já votaram em Lula, em inícios dos anos 2000, e especialmente os que vivem nas periferias urbanas, sabem muito bem que, por questões de classe, foram beneficiados pelas políticas do PT.
Nesse sentido, não surpreenderia que comecemos a ver uma espécie de retorno ao voto de evangélicos a favor de Lula, mesmo que ainda exista um núcleo que se apega às posições de direita. Isso ainda não está claro, pois o assédio conservador alcançou forte ressonância na tendência do voto para o segundo turno. Mas segue como uma possibilidade interna ao campo evangélico.
Nas últimas semanas, lideranças de setores evangélicos conservadores atacaram fortemente Lula da Silva, chegando a afirmar que ele havia feito um “pacto com o diabo” (algo que o próprio Lula teve que desmentir). Além disso, afirmaram que o PT fecharia igrejas e proibiria as manifestações cristãs. O PT respondeu que foi durante seus governos que, entre outras coisas, foram aprovados o Dia Nacional do Proclamação do Evangelho e a Lei da Liberdade Religiosa. Por que, então, há essa aversão de um setor evangélico ao PT?
Essa rejeição faz parte de uma construção política que começa a se manifestar claramente durante a presidência de Dilma Rousseff. Devemos compreender que a presença de evangélicos conservadores nos governos do PT provocou, progressivamente, tensões com outros atores sociais. Durante as gestões da coalizão desenvolvida por Lula, diferentes grupos e setores tinham adquirido cada vez mais notoriedade e irromperam com força no cenário público.
No início do Governo Dilma Rousseff, grupos ligados ao feminismo, diversidade sexual e igualdade étnica e racial foram reivindicando mais espaços, mais políticas e mais presença governamental. E relativamente os alcançaram nas políticas de educação, cultura, direitos sexuais e reprodutivos, antirracismo, igualdade de gênero. Nesse contexto, as velhas ideias da direita católica – que se inclinavam a ver esses grupos como inimigos da moral tradicional – emergiram fortemente e foram assumidas pelo bloco evangélico que participava da coalizão petista.
A questão moral se tornou central na disputa política dentro da coalizão de governo. Os líderes religiosos conservadores que tinham se tornado pragmaticamente defensores de Lula, nos anos 2000 – mas que antes de seus governos e depois deles se posicionaram contra –, estabeleceram um forte eixo nessa questão moral. Nesse sentido, não se deve ignorar o fato de que a maioria dos evangélicos são moralmente conservadores. Agora, algo que do campo sociológico cansamos de explicar, e que é muito importante entender, é que ser moralmente conservador não implica necessariamente ser politicamente conservador. Ou seja, as posições morais não se traduzem necessariamente, nem automaticamente, em opções políticas.
Se não fosse assim, o voto evangélico teria sido sempre na direita e está comprovado que não é assim. É um voto variável. Não se pode deduzir muito da conjuntura pós-impeachment (2016-2022). Certamente, a tendência para a direita foi muito forte e afetou seriamente o campo evangélico. O alinhamento institucional com o bolsonarismo de muitos setores evangélicos conservadores provocou tensões cada vez mais fortes dentro das próprias igrejas. Quanto mais se observam as tentativas de pressionar e até de forçar os membros da igreja a adotar uma única posição, mais aparecem as resistências e as lideranças que, dentro dessas organizações, rebelam-se. Formas de resistência e dissidência dentro do campo evangélico cresceram devido a essas pressões.
A novidade é que, nessas eleições, esses grupos críticos, que ainda são minoritários, levantaram suas vozes e construíram diversas formas de visibilidade pública. Nesse sentido, conseguiram romper com a imagem homogênea e monolítica dos evangélicos. Não é o suficiente reverter o processo de direitização em favor de uma posição mais progressista ou mesmo liberal entre os evangélicos, mas é importante porque bloqueou a tentativa do bolsonarismo de assumir o espaço evangélico como seu, como um espaço inerentemente bolsonarista.
No caso das megaigrejas e das maiores instituições do campo evangélico no Brasil, a pregação bolsonarista de pastores e pastoras se traduz em voto dos fiéis que participam dos cultos?
Em termos majoritários, é possível dizer que sim, que existe uma tradução em termos de votos. Mas não é um fato linear. De fato, no primeiro turno, Bolsonaro obteve uma porcentagem de votos evangélicos menor do que nas últimas eleições (2018) e a pregação bolsonarista e de direita não parou, mas aumentou nessas grandes igrejas. Fica claro que a interpelação bolsonarista, realizada na perspectiva pastoral e de discurso teológico, não é mais tão eficaz como foi em processos eleitorais anteriores.
Isso explica, ao menos parcialmente, por que cresceu o número de evangélicos que, no primeiro turno, não votaram em Bolsonaro. E isso aconteceu mesmo quando a pressão sobre os fiéis, sobretudo nas grandes igrejas – muitas das quais prometeram seu apoio institucional a Jair Bolsonaro–, é gigantesca.
Agora, há menos deputados e senadores evangélicos do que no período passado (20% menos), mas, no entanto, o novo Congresso terá uma composição ainda mais conservadora em 2023. Portanto, eu diria que há uma maioria dos fiéis evangélicos que sustenta posições pró-Bolsonaro, mas ao mesmo tempo fica claro que a pressão ideológica realizada por pastores, bispos e lideranças leigas nas igrejas produziu um efeito antibolsonarista entre os fiéis moderados e os que estão mais à esquerda. Essas pessoas, que participam religiosamente do mundo evangélico, não permanecem mais caladas.
Qual tem sido a estratégia de Lula da Silva para reconquistar o voto evangélico?
No início de sua campanha, Lula procurou alguns dos mesmos líderes evangélicos que o acompanharam em seus primeiros mandatos. Esses líderes depois apoiaram Bolsonaro, mas na tentativa de perceber como era possível um diálogo ou mesmo uma nova aliança com eles, Lula buscou uma aproximação. Lula também tentou fazer um apelo baseado nos avanços sociais de seu governo, tentando atingir diretamente os evangélicos para além da liderança. Os resultados não foram bons. Então, Lula teve que trabalhar com uma dependência muito maior da militância de base nas igrejas evangélicas e de pastores e pastoras já identificados com a opção pelo PT. São lideranças que pertencem a igrejas menores, com estruturas menos importantes em termos de penetração social.
Ao mesmo tempo, Lula e o PT enfrentaram uma campanha pelas redes sociais com o objetivo de chegar a um público evangélico amplo, que não conseguiriam ter acesso de forma tradicional por causa do bloqueio de muitos dos pastores alinhados a Bolsonaro. Por outro lado, houve diversas pressões para que Lula publicasse cartas dirigidas especificamente a setores religiosos e, com grande ênfase, aos evangélicos.
De fato, primeiro, foi publicada uma carta não dirigida especificamente aos evangélicos, mas aos cidadãos religiosos do Brasil, em termos mais gerais. Penso que isso foi importante porque singularizar os evangélicos neste momento, como se fossem os mais decisivos para o resultado de uma eleição, constitui um erro. Mas agora, sim, publicou uma dirigida a eles. Acredito que é algo que, em brevíssimo prazo, pode render eleitoralmente em termos de votos, mas pode se transformar em um problema a mais durante um próximo governo, caso vença, pois Lula pode acabar nos braços de uma agenda muito conservadora.
Neste momento, é necessário aprofundar a ruptura com o aparente monolitismo bolsonarista nas igrejas evangélicas. Atualmente, faço parte de dois grupos que foram criados para o segundo turno e que tem o objetivo de pensar o tipo de comunicação do PT aos evangélicos e católicos conservadores. Mas esse é um trabalho que deve continuar para além do momento eleitoral.
Levando em consideração as posições abertamente reacionárias dessas lideranças evangélicas a respeito da diversidade sexual e do direito ao aborto, por exemplo, seria um problema para um governo do PT que busque ampliar direitos para esses setores amplamente ignorados...
Certamente. Mas, ao mesmo tempo, devemos levar em consideração que a situação já é problemática e não só por causa dos setores conservadores do campo evangélico. Neste momento, no campo progressista e de esquerda, as expectativas de mudanças profundas são muito mais limitadas do que em momentos anteriores. A destruição do sistema de políticas públicas, o ataque aos mecanismos de defesa jurídica dos direitos e as novas pautas que a direita bolsonarista introduziu no debate parlamentar no Brasil fragilizaram muito as instituições. As pessoas logicamente esperam que Lula seja capaz de interromper esse processo de degradação democrática.
O anseio está em que um governo dirigido por Lula possa frear essa dinâmica de destruição e desestruturação das normas e cultura democráticas, mas há menos esperanças de que possa avançar rapidamente com uma agenda progressista em matéria de direitos, ao menos na primeira etapa de um eventual mandato. O que pode acontecer é que, ao final de seu governo, nos últimos anos, Lula consiga recolocar na agenda os temas associados à ampliação de direitos e defesa do meio ambiente, que constituem uma bandeira da esquerda e do progressismo. Mas Lula e o PT sabem que, neste momento, a questão estratégica é a proteção dos direitos que ainda existem.
O clima de restrição de espaço para o que Lula poderia fazer em termos construtivos, nos primeiros anos de seu mandato, é mais do que evidente. A agenda conservadora que inclui setores evangélicos pró-Bolsonaro talvez seja interrompida com um governo Lula. Mas não está nada claro que se possa avançar rapidamente para uma agenda progressista que, além de interromper o processo de ataque, consiga ampliar fortemente os direitos e a proteção ambiental, como efetivamente muitos de nós desejamos. Isto não deve só a que exista consensos, mas por existir um país mais dividido do que antes.
De fato, não seria fácil avançar rapidamente com uma agenda progressista, mas se Bolsonaro vencer, também não poderá avançar como fez em seu primeiro mandato com políticas tão explicitamente de direita, embora existam vários analistas que pensam o contrário, por causa da maioria conservadora no Congresso e a legitimação do voto. No entanto, penso que sua agenda agressiva não encontraria o mesmo espaço para avançar, pois terá uma oposição muito mais clara e contundente do que em seu primeiro mandato.
Bolsonaro praticamente perdeu o apoio de todos os grandes meios de comunicação e perdeu muitos espaços entre setores moderados dos liberais e daqueles que, no início da disputa eleitoral, optaram por uma “terceira via” que acabou fracassando. Simone Tebet, senadora do Movimento Democrático Brasileiro, que ficou em terceiro lugar, com 4,2% dos votos, disse, uma semana após o primeiro turno, que apoiará Lula sem importar as discordâncias com ele. O mesmo aconteceu com Fernando Henrique Cardoso, economistas de grande visibilidade em seu partido e até com uma liderança do Partido Novo, um partido abertamente neoliberal, sempre por comparação à ameaça que Bolsonaro representa.
Sendo assim, penso que quem for eleito presidente terá que negociar muito. E esta é, para Lula, uma perspectiva frustrante para suas tentativas mais transformadoras. Ao menos em seus primeiros anos, não será possível que haja avanços. Mas sabemos que, se Lula vencer, essa agenda poderá ser recolocada depois.
Como você mencionava, há poucos dias, Lula escreveu uma carta dirigida diretamente aos evangélicos e nela é possível ver que se dirige principalmente aos que possuem uma matriz moral conservadora. Na carta, rejeita as ‘fake news’ que foram espalhadas a seu respeito, garante que não fechará igrejas e, ao mesmo tempo, afirma sua oposição pessoal ao aborto (ainda que se diz disposto a abrir o debate). Não é problemático Lula afirmar que é contra o aborto em uma carta desse tipo? Ou é apenas uma posição pessoal que pode não ser a mesma do PT e da coalizão que se apresenta nas eleições?
O aborto continua sendo um tema tabu no discurso político brasileiro e não apenas entre os evangélicos. Estes se tornaram mais barulhentos, mas a resistência mais articulada ao tema vem dos católicos. De fato, há mais aceitação dos direitos LGBT+ do que ao aborto no Brasil. Lula não mente. Pessoalmente, ele é contra o aborto. Nisto, há uma ponte genuína com a maioria evangélica. Ele não mudou sua posição. Sempre a expressou.
De qualquer forma, na carta aos evangélicos há uma tentativa de disputar o significado do significante “família” e acredito que isso é muito importante, porque a questão do aborto pode sofrer regressões ainda mais significativas, caso Bolsonaro vença, pois há tentativas de restringir até mesmo as possibilidades legais existentes.
Quando Lula diz que é contra o aborto, não está se referindo a esses casos, que consideram o risco à vida da mãe e a possibilidade de uma existência digna de vidas com graves deformidades genéticas. Não dará passos para retroceder em relação ao marco legal existente. Esse é um tema que ainda divide setores da esquerda e até mesmo entre movimentos de mulheres. Lula é pessoalmente contra o aborto, mas não tentará restringir o que existe, e aceitaria mudanças em uma direção mais permissiva, se fosse o caso no Congresso (o que, de fato, é muito improvável).
Antes, você afirmava que o surgimento de setores evangélicos progressistas e de esquerda foi importante para romper com a ideia de um setor religioso monoliticamente integrado ao bolsonarismo. Penso, nesse sentido, no pastor Henrique Vieira, na pastora Cleide Caldeira e em diversas lideranças agrupadas na Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito que estão enfrentando as posições bolsonaristas. Qual tem sido a estratégia desses setores para mostrar a contradição entre cristianismo e bolsonarismo?
Parte do discurso se concentra em demonstrar a contradição que existe entre uma compreensão que não é mais nem mesmo liberal ou progressista, mas apenas clássica ou tradicional do cristianismo, e o comportamento de Bolsonaro. Essa crítica se estende aos setores evangélicos que mantiveram seu apoio a Bolsonaro, apesar de todos os seus comportamentos antidemocráticos e em desacordo com o cristianismo (o uso de armas, a exaltação da violência, o fomento à repressão policial, a discriminação a setores vulneráveis da sociedade, a indiferença à ameaça ambiental). Por outro lado, esses grupos evangélicos buscaram incidir sobre o próprio discurso religioso, ou seja, a argumentação teológica e bíblica.
Nesse sentido, propiciaram uma disputa pelo sentido da leitura bíblica e da própria pregação nas igrejas. Não só os pastores e pastoras mais identificados com ideias de esquerda, mas também outras e outros que reagiram após anos de silêncio, começaram a formar o que poderíamos chamar de uma “pastoral crítica” em relação ao alinhamento oficial de muitas denominações evangélicas com Bolsonaro.
A tudo isto, é preciso acrescentar outro aspecto importante, que é o fato de os discursos, que até agora eram francamente muito minoritários, se fazerem ver e ouvir. Há um movimento negro evangélico que também tem uma dimensão feminista, um movimento de mulheres negras evangélicas que estão organizadas contra Bolsonaro e as posições mais conservadoras dentro do mundo evangélico. Existe, é claro, um movimento evangélico LGTBI+.
Todos esses grupos estão, por um lado, tentando disputar com os setores conservadores e lutando contra o bolsonarismo. Mas, ao mesmo tempo, estão tentando introduzir a legitimidade dessas novas bandeiras étnico-raciais, sexuais e de gênero, que estiveram muito invisibilizadas em anos anteriores. Já desde 2018, ocorreu uma articulação entre setores ecumênicos – associados ao mundo evangélico mais clássico que assumiu características da teologia da libertação – e evangélicos de esquerda para defender, naquele momento, a candidatura de Lula e depois a de Fernando Haddad.
Portanto, penso que o mais novo é que agora os movimentos sociais de minorias, que já existiam no mundo secular, têm uma organização explícita e visível no campo evangélico. Essas expressões se fazem perceber neste momento e ajudam a romper com a ideia de um campo monolítico. Nesse sentido, contribuem para que muitas e muitos outros possam se expressar de forma mais crítica a respeito de Bolsonaro. Favorece os que estavam em silêncio, que agora não estão mais.
Nesta eleição, os dados indicam que o voto evangélico em Lula cresceu mais entre as mulheres do que entre os homens. Quais podem ser as causas desse fenômeno?
As mulheres evangélicas sofreram mais profundamente o impacto da direita religiosa. Nas igrejas evangélicas, esse impacto significou um fortalecimento da ascendência masculina na liderança, mas também nas famílias onde tinham ocorrido mudanças em um sentido um pouco mais igualitário. Vários estudos mostram que, há quinze ou vinte anos, a conversão ao pentecostalismo melhorava a vida das mulheres e a relação entre elas e seus maridos, devido às exigências de autocontenção dos comportamentos masculinos tradicionais (não se comprometer com a criação dos filhos, não compartilhar atividades domésticas, abandonar as famílias, violência de gênero, impacto do alcoolismo na provisão familiar). Portanto, o crescimento do pentecostalismo no Brasil introduziu ao menos uma mudança relativa nesse sentido.
Com a vitória dessa tendência ultraconservadora já em 2015/2016, ligada à reação ao legado do lulismo, a situação das mulheres evangélicas piorou. Em um contexto como esse, em que sentem na pele o impacto do crescimento da violência doméstica e dos discursos abertamente machistas do governo Bolsonaro, não surpreende que muitas delas apostem em uma alternativa a essa situação. Ainda que os valores tradicionais da família possam prevalecer, são elas que sentem fortemente o impacto dessas situações.
Penso que essa pode ser uma explicação razoável, mas nas experiências anteriores, o voto feminino evangélico já era mais a favor de Lula do que o masculino. Talvez possamos dizer, nesse sentido, que o bolsonarismo não obteve tanto sucesso entre as mulheres evangélicas como esperava. É um tema muito sensível e lidamos com hipóteses, pois não há trabalhos conclusivos em relação a esse tema, mas certamente podemos começar a inferir algumas dessas situações.
Como a questão de classe cruza com esse voto religioso? Que intersecções existem hoje?
Se pensarmos que, por exemplo, em todos os estados do nordeste do Brasil Lula tem mais ou menos 65% dos votos - e pode chegar a mais -, rapidamente inferimos que há uma espécie de interseccionalidade entre religião, posição socioeconômica, gênero e posição étnico-racial. Na região mais pobre do país, a do Nordeste, há muito tempo, Lula mantém uma clara hegemonia. Nesse sentido, há uma dimensão de classe – usando um sentido amplo do termo e não o conceito marxista clássico – que se sobrepõe a outras características, como as religiosas.
Em termos de perspectivas de bem-estar ou ao menos de uma vida digna, as pessoas em situações mais vulneráveis, que inclui uma parte da população evangélica, identificam a opção de Lula como mais crível que a de Bolsonaro. Isto se observa claramente no Nordeste, onde os evangélicos são menos conservadores em termos políticos do que em outras regiões do Brasil, mesmo quando moralmente conservadores.
Nesse sentido, a hipótese de que há uma dimensão de classe que se sobrepõe à religiosa é real e plausível. Isso se comprova, além disso, quando dimensões como acesso à educação e saúde se cruzam. Aqueles setores que viram cair sua qualidade de vida, nos últimos anos, têm uma memória positiva do acesso a esses serviços durante a era Lula. E isto se vê claramente nos eleitores evangélicos. Insisto: isso não quer dizer que tenham posições morais progressistas, mas que o voto não se configura somente a partir dessa variável.
Como a esquerda não religiosa recebe a busca pelo diálogo com os setores evangélicos, sobretudo com aqueles situados na margem progressista?
Hoje, uma parte importante da esquerda secular no Brasil compreende que não existe um campo religioso homogêneo ou monolítico. Mas isso não quer dizer que saibam como tratar ou se comunicar com os evangélicos. Não compreendem, por exemplo, essa dinâmica complexa de um conservadorismo moral que não necessariamente se expressa em um conservadorismo político. Mas há, é claro, outro setor da esquerda, sobretudo de pessoas mais velhas, que continua com uma abordagem mais crítica em relação ao diálogo com os evangélicos. São aqueles que acreditam que a religião é um caso perdido para a política de esquerda e que não aceitam a necessidade de uma aproximação entre a esquerda secular e a esquerda religiosa. O que não compreendem, por outro lado, é que nunca houve uma esquerda religiosa fora da esquerda secular.
A esquerda religiosa, na América Latina e no Brasil, remonta pelo menos aos anos 1950. E essa esquerda fez parte de todos os ciclos políticos da esquerda secular, incluindo a guerrilha (e revoluções, como na América Central). O isolamento social e intelectual de setores religiosos, por um lado, e setores seculares, por outro, pode explicar esse desconhecimento. Mas para quem conhece mais de perto esses processos, falar de uma esquerda secular como algo distante da esquerda religiosa é uma contradição.
É verdade que, por contraste, o crescimento da politização conservadora reforça as percepções tradicionais da esquerda, marcadamente liberais, de que a religião é um inimigo, de que a religião não é um espaço de disputa que pode levar a uma posição de esquerda. Mas é a própria conjuntura que se encarregou, historicamente, de demonstrar que isto é falso ou, pelo menos, uma percepção incompleta.
O que esperar, agora, após o surgimento de setores mais progressistas dentro do campo evangélico, na esfera pública brasileira? As tendências mais conservadoras podem diminuir ou continuarão construindo um núcleo duro de difícil penetração?
Espero que este momento de mobilização dos setores situados mais à esquerda no campo evangélico permita retomar posições anteriores, dos anos 1980 e 1990, quando surgiram várias experiências de grupos evangélicos - não tanto de igrejas - dedicados aos temas sociais, com perspectivas mais abertas. Minha percepção é que o número de grupos identitários entre os evangélicos vai crescer. Não serão poucos os que buscarão estender pontes, inclusive internacionais, para se protegerem dos embates das lideranças religiosas mais conservadoras. Penso também que os grupos evangélicos progressistas que já estiveram presentes nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff voltarão a participar ativamente, sobretudo nas questões de política social e ambiental, caso ocorra a vitória do PT.
Contudo, continuarão sendo grupos minoritários que não poderão disputar de igual para igual com os setores conservadores. Eu não acredito que isso mudará rapidamente. Mas, como grupos minoritários, podem ser forças importantes para ressoar dentro das igrejas, para pressionar por uma agenda mais progressista e aberta em diversas áreas, mas não necessariamente com força suficiente para mudar tudo.
Outra tendência que penso que já é possível observar é o surgimento de igrejas criadas por pessoas que, por suas posições sociais e políticas, suas orientações sexuais e afetivas e por muitos outros motivos, não podem e não querem mais participar dos espaços religiosos em que estavam. É o caso, por exemplo, da Igreja Betesda, em São Paulo, que tem Ricardo Gondim como pastor, e que é uma igreja pentecostal. É o caso também da Igreja Batista do Caminho, do pastor Henrique Vieira, que agora é deputado federal pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL.
Esses grupos, que certamente irão se reproduzindo, estão mais aptos a desenvolver uma disputa em nível organizacional e institucional com as igrejas conservadoras. Se fizerem isto, a longo prazo, podem criar uma espécie de campo evangélico mais estável e pluralista, no qual as posições mais abertas e progressistas tenham uma fluidez maior. Claro, estas são tendências que não sabemos se irão prosperar ou criar raízes, embora eu apostaria que sim.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“As visões que apresentam o voto evangélico como monolítico e em bloco estão equivocadas”. Entrevista com Joanildo Burity - Instituto Humanitas Unisinos - IHU