Pesquisadores do tema observam como esse conservadorismo presente de norte a sul do país se converte em adesão ao bolsonarismo e como a esquerda parece não compreender esses processos
“A esquerda brasileira hegemônica, mesmo aceitando que Lula não vencesse no primeiro turno, padeceu, realmente, por constatar que tantos brasileiros ainda preferem Jair Bolsonaro. Isso foi o que mais a chocou.” A observação é dos professores Fábio Baldaia, Sinval Silva de Araújo, Rodrigo Ornelas e Tiago Medeiros, que integram o Laboratório de Estudos Brasil Profundo – LAEBRAP, grupo que pesquisa como o bolsonarismo tem se movido no Brasil concreto. Para eles, o resultado do primeiro turno das eleições, não só com a votação expressiva de Jair Bolsonaro, mas também com a vitória de muitos candidatos ungidos no bolsonarismo nos estados e no parlamento federal, revela que ainda há muito que conhecer sobre esse movimento.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, de forma conjunta pelo grupo, ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a atenção é chamada para dois pontos elementares a fim de compreender o fenômeno. “O bolsonarismo não é uma consequência da notoriedade que Jair Bolsonaro adquiriu nacionalmente. Ele é anterior ao próprio Bolsonaro” e “o bolsonarismo não é a mera variante brasileira de um extremismo contemporâneo associado à direita em todo o mundo”, pois “contém caracteres que são de uma brasilidade irredutível”.
Nesse segundo ponto, é preciso crer que há algo, talvez, uma cultura, nesse Brasil profundo que acaba sendo arregimentado pelo ideário bolsonarista. “O que alinha a extrema-direita mundial é a convergência entre pontos de suas respectivas agendas políticas, e o bolsonarismo é muito mais do que um fenômeno político: ele é, primeiramente, sociocultural. Para compreendê-lo, optamos por ler os elementos de longa duração que o constituem, a saber, aqueles que deitam raízes no tempo de muitas décadas ou de séculos”, indicam.
Assim, olhando para o percurso histórico do país, os entrevistados observam que “o Brasil profundo não seria necessariamente conservador, no sentido político contemporâneo; mas ele contém elementos de longa duração utilizados e instrumentalizados no interior de movimentos como o bolsonarismo”. Ou seja, é como se fosse capitalizar sentimentos de ódios adormecidos, como aquele que muitas pessoas pensam, mas não falam, tais como “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos”.
O grupo aponta ser fundamental a compreensão destes pontos que acabam constituindo elos entre desejos e pensamentos escondidos ao ódio que vocifera no bolsonarismo. “Não é factível sustentar que 43% do eleitorado brasileiro é adepto da extrema-direita. A capilaridade se dá pelo caráter poroso do bolsonarismo, que permite enfatizar aspectos do Brasil profundo capazes de dialogar com as massas tanto do Rio de Janeiro quanto de Cuiabá, tanto de Boa Vista quanto de Porto Alegre”, reforçam.
Nesse sentido, é interessante acompanhar as reflexões dos professores quando constatam o seguinte cenário, pelo qual devem ser concebidas mudanças: “A direita tem tido mais capacidade de produzir uma narrativa agregadora das perspectivas mais convincentes de estabilidade social. A esquerda historicamente se mobilizou para lidar com um modelo de capitalismo mais rígido, mais estável, com mais certeza no futuro, e tem tido dificuldade em estabelecer a transição para as formas sociais, políticas, econômicas e culturais mediadas por digitalização, redes e plataformas virtuais interativas”.
O Laboratório de Estudos Brasil Profundo – LAEBRAP é um grupo de estudos e pesquisas ambientado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Tem o objetivo de formular interpretações de fenômenos da sociedade brasileira por meio da noção de “Brasil profundo”. Atua em linhas como economia e sociedade, cultura e sociedade, artes e identidade nacional, planejamento institucional e práticas sociais, contribuindo para o debate público nacional via entrevistas, conferências e publicações. O grupo presta consultorias sobre os temas de sua alçada.
Os integrantes do LAEBRAP que concederam entrevista são:
Fábio Baldaia
Foto: Arquivo pessoal
Fábio Baldaia, graduado em Ciências Sociais, mestre em História e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Desde 2010, é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA. Pesquisa processos de formação de identidades, notadamente nacional e baiana, e a relação mais ampla entre cultura e política.
Sinval Silva de Araújo
Foto: Arquivo pessoal
Sinval Silva de Araújo, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, licenciado em Ciências Sociais e História, bacharel em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Também é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSAL, mestre em Ciências Sociais pela UFBA e doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRJ. Tem interesse nos temas da teoria marxista, pensamento social brasileiro e teoria social.
Rodrigo Ornelas
Foto: Arquivo pessoal
Rodrigo Ornelas, doutor em Filosofia pela UFBA. Pesquisa a Modernidade e o Modernismo no âmbito da filosofia social, política e da cultura, seus pressupostos e suas consequências. Integra o grupo de trabalho Poética Pragmática da UFBA.
Tiago Medeiros
Foto: Arquivo pessoal
Tiago Medeiros, doutor em Filosofia pela UFBA e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA. Tem experiência nos temas pragmatismo, teoria social e instituições. Além disso, tem interesse e experiência nos temas do pensamento social, político e econômico brasileiro.
A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 19-10-2022.
IHU – Como podemos explicar a surpresa de parte da esquerda e de apoiadores de Lula, como acadêmicos e artistas, com a votação de Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições?
LAEBRAP – A surpresa diante do resultado do primeiro turno foi geral. Não se manifestou apenas nos corações de uma parte da esquerda. Em larga medida, ativistas da direita ficaram positivamente chocados com a força eleitoral que Bolsonaro demonstrou ainda possuir, tanto que decidiram interromper a campanha reiterada de descredibilização das urnas com o uso massivo e coordenado de fake news.
O sentimento que predominou entre os apoiadores mais entusiasmados de Lula, e entre alguns artistas e intelectuais que fizeram campanha para ele, foi o da surpresa seguida pela perplexidade e frustração. Para eles, é simplesmente inconcebível que alguém como Bolsonaro, após seu desempenho durante a pandemia, após as sequentes denúncias de corrupção e escândalos com familiares, após o retorno triunfante de Lula ao palco principal da política brasileira e após a vitória consumada do PT nas pesquisas semanais de opinião, pudesse ter chegado aonde ele chegou.
Surpresa, perplexidade e frustração são reações a expectativas não corroboradas pelos eventos. A esquerda brasileira hegemônica, mesmo aceitando que Lula não vencesse no primeiro turno, padeceu, realmente, por constatar que tantos brasileiros ainda preferem Jair Bolsonaro. Isso foi o que mais a chocou. Desde então, ela tem adotado um vocabulário que oscila entre a paralisia diante do fato, a maledicência contra o eleitor de Bolsonaro e a romantização das porções populacionais em que Lula foi proeminente, como a que expressa em relação ao Nordeste, tomado por um santuário de justiça e pureza, num Brasil que ela alega ser organicamente alienado, corrompido ou simplesmente fascista.
IHU – Ao mesmo tempo, há grupos de esquerda que comemoram o resultado das urnas, especialmente na ascensão de alguns nomes ao parlamento. O que os deputados e senadores de esquerda eleitos revelam sobre essa linha política no Brasil de hoje?
LAEBRAP – Em uma eleição ocorrida em todo território nacional e que elegeu deputados, governadores e senadores dos mais distintos partidos, é possível encontrar espaço para análises que esmiúçam as vitórias de todos os espectros ideológicos. O PT aumentou sua bancada federal, confirmou sua força no Nordeste e a recuperou no Norte do país. Conseguiu chegar ao segundo turno no foro eleitoral mais importante, o da presidência.
O PSOL elegeu uma bancada pequena, mas que expressa o protagonismo de novos atores sociais, inclusive nos legislativos estaduais. E até a centro-esquerda teve reiterada a sua cota de representantes. Portanto, o discurso e a militância de esquerda encontram, sim, eco em todo o país e parecem adquirir nova exuberância sob a engrenagem anti-Bolsonaro que os tem movido.
Contudo, o que convém enfatizar nessa eleição é o saldo resultante a favor de Bolsonaro e do bolsonarismo. Coisa que soou a todos surpreendente é a parte dessa esquerda desnorteante. O atual presidente elegeu o governador de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e tem chance real de eleger o governador de São Paulo.
Eleger os governadores das segunda e terceira economias do país e chegar ao segundo turno, em primeiro lugar, no estado da economia mais pujante da América Latina, evidencia que o bolsonarismo não é um desvio de rota, não é um fenômeno em declínio, mas uma força maciça. Ele está apoiado em valores e costumes longevos e diversamente distribuídos no território nacional, e deita raízes naquilo que chamamos de Brasil profundo, por laços não apenas políticos, mas também estéticos, epistêmicos e culturais.
IHU – Vocês pesquisam o bolsonarismo, sua ascensão e a aderência no Brasil profundo. Desde quando trabalham com o tema e o que mais lhes surpreendeu nesses estudos?
LAEBRAP – Começamos a trabalhar com esse tema na segunda metade de 2020, em plena pandemia, acompanhando a turbulência da gestão presidencial e a performance adotada pelo presidente no trato com os apoiadores, com a imprensa, as instituições e com as massas. Demos ao projeto de pesquisa o título “O Bolsonarismo e o Brasil Profundo: uma análise sobre a ascensão e a permanência de um fenômeno sociocultural e político”.
Algumas constatações nos surpreenderam, principalmente por não estarem em linha com o que circulava na imprensa e com o que se estava produzindo na academia. A primeira constatação foi que o bolsonarismo não é uma consequência da notoriedade que Jair Bolsonaro adquiriu nacionalmente. Ele é anterior ao próprio Bolsonaro. A segunda foi que o bolsonarismo não é a mera variante brasileira de um extremismo contemporâneo associado à direita em todo o mundo. Poderíamos dizer que ele contém caracteres que são de uma brasilidade irredutível.
As duas constatações se ligam em um aspecto central em nossa abordagem: o que explica um fenômeno tão contundente como esse não pode ser primeiramente (e muito menos somente) o que ele carrega de conjuntural. É preciso colher dele seus traços históricos, renitentes, duradouros, profundos. É evidente que há sintonia entre o conteúdo dos discursos de extrema-direita na Itália, na França, na Hungria, nos Estados Unidos e no Brasil. Mas o que alinha a extrema-direita mundial é a convergência entre pontos de suas respectivas agendas políticas, e o bolsonarismo é muito mais do que um fenômeno político: ele é, primeiramente, sociocultural. Para compreendê-lo, optamos por ler os elementos de longa duração que o constituem, a saber, aqueles que deitam raízes no tempo de muitas décadas ou de séculos.
IHU – Qual os pilares do bolsonarismo que sustentam a capilaridade que tem conseguido aderir no Brasil profundo?
LAEBRAP – A capilaridade precisa ser entendida não apenas pelos “pilares” do bolsonarismo, mas também pelo fenômeno da comunicação firmada e retroalimentada por redes. Não se deve subestimar a importância dos veículos comunicativos à mão das pessoas para o acesso franco e aberto à mensagem dos bolsonaristas profissionais. Há quase uma espécie de educação bolsonarista em curso, graças a esses dispositivos.
Ademais, há fatores constitutivos do bolsonarismo que têm sua presença na longa duração de nossa história nacional e que são de todo eloquentes para se ler esse e outros fenômenos, como o messianismo, o simplismo, o sadismo, o autoritarismo, o malandrismo, o machismo. Teremos oportunidade de discuti-los adiante, caso queiram, mas, por hora, o que temos a dizer é que o Brasil profundo se expressa por representações e práticas consubstanciadas em fatores como estes – e em alguns outros. Parte deles nos parece estar em congruência com o chamado conservadorismo, notadamente no que diz respeito à estabilidade da vida, associada à família e à propriedade.
As representações e práticas profundas são comportamentos e visões de mundo suscitados pelo que se acumula historicamente e se renova no cotidiano do presente, sem que os agentes que as reproduzem tenham consciência precisa das raízes de seus próprios pensamentos e ações. Nesses termos, o Brasil profundo não seria necessariamente conservador, no sentido político contemporâneo; mas ele contém elementos de longa duração utilizados e instrumentalizados no interior de movimentos como o bolsonarismo.
Vamos exemplificar. O conjunto de teses de que o problema da segurança pública se resolve vendendo armas e assassinando criminosos, expressas em frases como “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos”, são manifestações combinadas a aspectos duradouros espraiados na vida brasileira: o simplismo, que é uma aposta nos atalhos; o sadismo, que é o gozo diante do sofrimento ou do extermínio de quem é visto como merecedor de seu próprio revés; e o autoritarismo, que é o desejo de determinar a organização da coexistência pela força.
Fatores como esses são irredutíveis à ascensão do bolsonarismo, mas adquirem assombrosa vitalidade nos slogans bolsonaristas. Sempre estão por aí, mas foram potencializados pela emergência de Bolsonaro.
IHU – Essa capilaridade no Brasil profundo se dá mais pela figura do presidente da República ou pelo bolsonarismo enquanto manifestação de movimento de extrema-direita? Nesse sentido, poderíamos pensar no bolsonarismo sem Bolsonaro (ao menos na Presidência)?
LAEBRAP – Essa capilaridade se dá graças a Bolsonaro e ao bolsonarismo igualmente, mas não enquanto elemento da extrema-direita. A capilaridade refere-se ao alcance do bolsonarismo Brasil adentro, e não é possível, em um país tão diverso como o nosso, a mesma agenda política cobrir os interesses e aspirações de tantas pessoas, sendo ela tão ideologicamente restritiva.
Não é factível sustentar que 43% do eleitorado brasileiro é adepto da extrema-direita. A capilaridade se dá pelo caráter poroso do bolsonarismo, que permite enfatizar aspectos do Brasil profundo capazes de dialogar com as massas tanto do Rio de Janeiro quanto de Cuiabá, tanto de Boa Vista quanto de Porto Alegre. E aqui a persona de Bolsonaro é importante. O carisma dele assegura uma identificação estética com as massas atravessadas pelo Brasil profundo, que torna essa capilarização ainda mais concreta e acabada.
É possível, sim, pensar no bolsonarismo sem Bolsonaro e nós entendemos que o bolsonarismo seguirá penetrante mesmo após a saída de Bolsonaro da Presidência e mesmo depois de ele falecer. Mas deve-se esperar ao menos uma tensão, senão mesmo uma crise, quando Bolsonaro não estiver mais entre nós. Aliás, isso se aplica também ao caso de Lula.
IHU – Quais temas julgam muito bem apreendidos pelo bolsonarismo? E como a esquerda tem lidado com esses temas?
LAEBRAP – Os temas de superfície muito manipulados pelo bolsonarismo são bem conhecidos, mas revelam sensibilidades que, por sua vez, surgem e se mantêm como fatores de longa duração do país, sendo, por esse ângulo, menos visíveis. Tome o caso, novamente, de um desses temas: o da punição severa e exemplar contra crimes de rua. Ele já era presente desde a primeira campanha presidencial de Bolsonaro e continua repetido nesta.
Se ler o slogan “bandido bom é bandido morto”, diretamente associado ao tema, pelas lentes politicológicas que associam Bolsonaro à extrema-direita mundial, você pode deixar de ver aqueles fatores já mencionados que o antecedem e o trazem aqui. Nesse caso, temos a conjugação de três deles: o simplismo: a crença subjacente a uma série de ações da ordem da vida prática que projeta expectativas de reduzirem-se as situações complexas a poucos termos, o autoritarismo: o comportamento que manifesta o desejo de organizar a vida com os outros com base na força e na ameaça, pelo bem de si e dos outros, e o sadismo: comportamento fundado em um afeto socialmente elaborado que consente o gozo ou o divertimento extraído do sofrimento, da humilhação ou da aniquilação de outrem.
Sendo simplista, autoritário e sádico, o slogan é uma forma contemporânea de normalizar o atalho pela violência. Mas o simplismo e o sadismo brasileiros não são invenções de Bolsonaro e são documentados, em muitas variações, em diversos trabalhos científicos, em livros de literatura, em peças teatrais, em canções populares e nos textos de cronistas desde o século XVI.
Há um outro componente da pergunta. Como a esquerda tem lidado com isso? Com relação aos temas em que Bolsonaro surfa como ninguém, a esquerda não conseguiu ainda forjar um vocabulário com o qual se fizesse ouvida e compreendida. Ela não conseguiu, em importantes polos de poder do país, estabelecer uma conexão com o imaginário do Brasil profundo e isso tem reflexos eleitorais diversos.
Como um homem como Marcelo Freixo, conhecedor profundo do delicado tema das milícias e militante conhecido de causas nobres, perde a prefeitura do Rio para Crivella, em 2016, e o governo do Rio para Cláudio Castro, em 2022, tendo a seu lado gente como Caetano Veloso, Gregório Duvivier e a nata dos artistas globais, além de ter, por trás, Lula?
Como Fernando Haddad, professor e intelectual público, conhecido nacionalmente e já tendo sido prefeito de São Paulo, agora, com o apoio de Lula, fica atrás de um personagem inventado por Bolsonaro, que almeja o governo de São Paulo sem sequer ser paulista ou ter tido vida social no estado?
Por outro lado, o governo do petista Rui Costa, na Bahia, criticado por membros de seu próprio partido e por acadêmicos pelo modo como a polícia baiana atuou sob sua gestão, e em especial pelo fatídico episódio da chacina do Cabula, em 2015, quando ele se referiu aos policiais que mataram jovens desarmados como sendo um “artilheiro na cara do gol”, foi premiado com a reeleição no primeiro turno, em 2018. Não queremos dizer que Rui Costa foi reeleito por ter dito o que disse, mas que a identificação popular depende também de uma capacidade de comunicação do político que muita gente de uma esquerda, menos de sindicatos do que de universidades, não tem conseguido estabelecer.
Essa comunicação precisa tematizar os fatores constitutivos do Brasil profundo e o trato da violência é um deles. É fato que, ao usar uma analogia futebolística – os policiais eram artilheiros na frente do gol – para falar da morte de 12 jovens assassinados pela PM baiana, o governador petista pouco se diferenciou da prática discursiva bolsonarista de que bandido bom é bandido morto. Há aí um traço de sadismo que não está presente apenas na boca dos políticos de partidos de direita.
IHU – Nas suas pesquisas, vocês também têm destacado que o bolsonarismo tem conseguido dialogar com novas camadas populares. Que camadas são essas? De que forma se dá esse diálogo e por que o discurso bolsonarista acaba tendo aderência?
LAEBRAP – A adesão deve-se, sobretudo, à simplicidade da comunicação. As camadas são de diferentes tipos. Os evangélicos, por exemplo, se cruzam com o bolsonarismo por elementos discursivos diversos como o messianismo. O messianismo é a crença difusa de que há uma luta entre o bem e o mal regendo constantemente a vida real conjugada à crença de que um escolhido haverá de conduzir o povo à sua redenção, revelando-lhe o lado certo nessa guerra e as estratégias usadas pelo inimigo. Esse escolhido jamais aparece como um tecnocrata frio, um religioso formalista ou um letrado vaidoso. Ele ostenta uma estética que o faz pertencente à gente, o que confere à sua fala um respaldo inabalável. E sua mensagem não costuma ser dirigida à totalidade da nação, mas a partes dela, o que torna o messianismo fraterno à consumação das divisões sociais – razão pela qual o messias não é como o caudilho sul-americano.
De muitas formas, o bolsonarismo maneja o messianismo, desde o slogan “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” até o discurso reiterado contra o adversário da vez, como ministros do Supremo ou jornalistas de relevo. Os evangélicos encontraram em Bolsonaro a sua primeira representação efetiva na política nacional, porque a rede evangélica conseguiu pôr nele a carapuça do messias, aquele que ímpios e fariseus farão de tudo para destruir – inclusive, dar facada –, mas que seguirá sua tarefa com tenacidade para o bem dos compatriotas crentes.
Isso não quer dizer que o messianismo se limite ao domínio do movimento evangélico nacional, nem que seja operado com êxito apenas pelo bolsonarismo. Em grande medida, o lulismo explora com bastante eficácia esse fator e deriva parte de seu êxito político, ainda hoje, justamente do brilho que adquire com o messianismo. Um mesmo elemento de constituição do Brasil profundo pode ser manipulado politicamente por segmentos ideológicos contrários.
Uma camada popular emergente como a dos motoristas de aplicativo e os entregadores de comida – muitos dos quais, inclusive, evangélicos – também se sente contemplada por certas teses do interior do bolsonarismo que combinam o simplismo já falado com um outro elemento do Brasil profundo, o malandrismo. Chamamos de malandrismo o comportamento de quem procura otimizar suas condições de vida ou melhorar de posição escapando das regras formais, inclusive institucionalizadas, e como que deslizando – ou manobrando – entre elas.
Tem alguma relação com o simplismo, uma vez que é manifestado por quem atua como se a prosperidade fosse alcançada pela abreviação dos entraves que, no momento atual, a separam do agente. Esse é um sentido um pouco mais amplo que aquele consagrado na antropologia brasileira. Não se trata de um malandrismo que se ostenta com orgulho, mas de uma forma de vida social comum a pessoas que vivem sob dramáticas restrições materiais e com pouca simpatia pela ideia de prosperidade doada, sem risco, sem aventura e sem trabalho.
O malandrismo, portanto, não é um fator de longa duração que permitisse designar indivíduos e grupos de nosso tempo como malandros, no sentido vulgar do termo. É bem mais um aspecto da vida nacional que atravessa historicamente a sociedade brasileira, de sul a norte, e que orienta a conduta das pessoas que precisam se virar para sobreviver ou para enriquecer, em uma luta travada mais contra as regras do jogo do que contra adversários impostos.
IHU – Podemos arriscar em afirmar, tanto no Brasil quanto no mundo, que a esquerda ainda está muito lastreada por valores e pensamentos da modernidade e, com isso, vive duramente com crises geradas por ela, enquanto a extrema-direita captou melhor a virada de chave que a pós-modernidade provoca?
LAEBRAP – Esse tema não tem ocupado centralidade em nosso laboratório, mas, uma vez que nos valemos dele para tentar obter entendimento e formular comparativos pertinentes para os nossos objetivos, podemos trazer pistas a respeito. A esquerda contemporânea construiu seu discurso no mundo do capitalismo organizado do pós-guerra. Era um mundo caracterizado por um razoável grau de segurança e certeza derivado do pacto fordista que assegurou uma série de direitos sociais, alguma garantia de empregabilidade e segurança previdenciária, sobretudo nos países do capitalismo central do Atlântico Norte.
A era do capitalismo organizado sob bases mais rigidamente padronizadas deu lugar a uma economia política mais flexível, estruturada por relações sociais, de trabalho e jurídicas, que garantem menos certeza e promovem mais risco. Um mundo marcado por profundas incertezas tende a criar configurações sociais movidas por insegurança, medos, angústias, ressentimentos... É claro que esse novo mundo também permite aos agentes sociais a busca por qualquer estabilidade concebível a partir do contexto mais imediato em que eles operam. Isso pode significar a exaltação, a defesa e o retorno a um tempo de maior pujança da família nuclear tradicional, da moral de base judaico-cristã, de um patriotismo avesso a divergências e de uma certa glorificação heroica da proteção individual e familiar por meio das armas de fogo.
Nesses termos, a direita tem tido mais capacidade de produzir uma narrativa agregadora das perspectivas mais convincentes de estabilidade social. A esquerda historicamente se mobilizou para lidar com um modelo de capitalismo mais rígido, mais estável, com mais certeza no futuro, e tem tido dificuldade em estabelecer a transição para as formas sociais, políticas, econômicas e culturais mediadas por digitalização, redes e plataformas virtuais interativas.
IHU – Com base no resultado do primeiro turno das eleições, e considerando tanto os nomes que ascendem ao parlamento como o resultado nos estados e a corrida presidencial, podemos afirmar que o Brasil é um país conservador?
LAEBRAP – Não. O que essas eleições revelaram nada diz de uma tendência política predominante. O que se pode afirmar com segurança é que as eleições refletiram a assimilação de uma sensibilidade para a polarização. Apesar da variação de 25% a 35% que as pesquisas davam a Bolsonaro de 2020 para cá, o dado de rejeição ao PT nunca caiu para menos de 40%. Estabilizou-se em 43% desde março de 2021. Foi exatamente a porcentagem que o eleitor deu a Bolsonaro.
A presença de Lula com possibilidade de retornar ao poder perturba um número imenso de brasileiros. A prorrogação do tempo de Bolsonaro no poder atormenta outro imenso número de concidadãos. O eleitor brasileiro votou para impedir ou se livrar de um tormento. No congresso não foi diferente. Nos estados, isso também se deu, embora com menor veemência. Outras variáveis foram influentes.
IHU – Muitos analistas pontuam que o Brasil hoje é conservador porque ainda se apoia em valores coloniais. Vocês concordam? O que vimos nas urnas resulta de um pensamento congelado ainda dos séculos XVI, XVII e XVIII ou é algo novo, nativo do século XXI e que ainda não compreendemos?
LAEBRAP – O nosso grupo é composto por sociólogos e filósofos. Por isso, o trabalho empírico é realizado com um suporte conceitual muito cuidadoso e muito discutido por nós. Então, diante de questões difíceis como a que vocês nos propõem, tendemos a devolver: “De que conservadorismo estamos falando?”
Há autores que entendem que o conservadorismo é um temperamento que pode ganhar uma voz na política, mas não primeiramente uma bandeira ideológica. Decerto, há elementos em total sintonia com posições conservadoras mergulhados no magma do Brasil profundo, mas não dá para dizer que eles constituem o que é emblemático do ser brasileiro, tampouco que eles sejam predominantes no Brasil de hoje.
Vejam por esse ângulo. O conservadorismo mundial não é simpático ao intervencionismo estatal, nem na forma da regularização, nem no domínio da produção, tampouco no campo das políticas sociais distributivistas. Bolsonaro, que aparece como conservador, revitalizou a política compensatória que deu fama ao PT. E nas eleições, qualquer parlamentar que dissesse querer extinguir o Auxílio Brasil para manter coerência com princípios conservadores de libertar o indivíduo da sombra do Estado, seria punido com a inexpressividade eleitoral.
Agora, respondendo à segunda questão: uma eleição presidencial é reflexo tanto de fatores circunstanciais quanto de fatores profundos do conjunto da sociedade. Os fatores circunstanciais costumam se destacar por serem mais barulhentos, mas há fatores profundos que permitem a manipulação de demandas renitentes na vida do povo.
Contudo, não seria o mais adequado dizer que qualquer valor está congelado no tempo e no espaço. As práticas e representações se atualizam em meio a condições situacionais. Contextos sociais, culturais e econômicos possuem durabilidade. Atribuir a fenômenos contemporâneos explicações calcadas em valores coloniais nos parece muito restritivo.
IHU – Vocês apontam diferenças entre o bolsonarismo e o lulismo. Gostaria que descrevessem essas diferenças e analisassem em que medida podemos compreender esses movimentos a partir do populismo.
LAEBRAP – O lulismo é a adesão imediata e calorosa à personagem carismática de Lula, independentemente de seu projeto momentâneo de poder. É um apreço pelo que Lula representa, pela memória que evoca e pela esperança que acalenta. Ele se manifesta com paixão semelhante à que artistas exercem sobre seus fãs. Por outro lado, o petismo, fenômeno do qual Lula participa, é algo como uma cultura política, um pacote de práticas realizáveis por movimentos sociais e por agentes institucionais, muito marcado pela ocupação total dos espaços de poder. Lulismo e petismo, portanto, não são redutíveis um ao outro.
O bolsonarismo não é tão personalista quanto o lulismo, nem tão profissionalmente político quanto o petismo. É um fenômeno sociocultural alimentado por crenças e comportamentos manifestados por uma ampla faixa populacional dispersa por todas as regiões do país que se mantinha difusa, heterogênea e inarticulada até adquirir recurso de comunicação por rede e uma figura pública factível para ostentar a sua mensagem e se dispor a levá-la ao centro do poder. Bolsonaro deu uma unidade, ainda que precária, a esses brasileiros e, com ela, deu sobretudo orgulho – não necessariamente o de ser brasileiro, mas aquele orgulho de ser de um Brasil que não é o do PT.
Para concluir, convém deixar claro que lulismo e petismo não surgem por oposição a um ator político específico, não são projetos de negação. O bolsonarismo toma consciência de si no processo de reconhecer a ojeriza a tudo o que se liga ao PT. Agora, a despeito das diferenças, tanto o lulismo como o bolsonarismo são formas de fazer política que tem forte dependência do elemento carisma.
IHU – Que cenários vocês projetam para o Brasil até 30 de outubro e para o país no pós-eleições?
LAEBRAP – Essa é uma questão para a qual qualquer resposta é amargamente arriscada. É sempre delicado tratar do que vem pela frente. Consta que, em uma das valas do oitavo círculo do inferno, na Divina Comédia, os mágicos, os farsantes e os adivinhos tinham a cabeça voltada para as costas, em punição para que não pudessem mais ver o que vem pela frente. Mas podemos remeter a indicadores que talvez tragam luz.
No plano social, muita coisa é possível, inclusive a escalada da violência. A apoteose da polarização tem tomado proporções semelhantes à que tomou no segundo turno entre Dilma e Serra e na disputa entre Dilma e Aécio, mas agora com muito mais vulcões de fake news e com todos em erupção, além de haver mais gente perigosamente armada. Já estamos vendo a quantidade de mentiras produzidas por ambos os lados e assassinatos por razão política, e nada sugere que isso vai parar daqui até o dia da votação.
Mas, no plano estritamente político, dá para dizer que o dado fornecido pela abstenção de votos pode fazer a diferença. Brancos e nulos não chegaram a 5% no primeiro turno, mas a abstenção ultrapassou os 20%. Mapear quem são os faltantes e persuadi-los a votar em seu favor tende a ser uma estratégia de ambas as campanhas.
Em suma, há desafios: conquistar, primeiro, o eleitorado indeciso e ausente, o que optou por nulo e branco ou se absteve, e o eleitorado por critério regional: Bolsonaro focando no Nordeste, Lula, no Sudeste. Além disso, ambos terão forte embate no Brasil central, onde Bolsonaro domina, mas onde Lula sente precisar capturar o delicado e poderoso eleitorado do mundo agro.