Pastores usam a Bíblia para defender posse de armas de fogo no Brasil

O presidente Bolsonaro e o pastor Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação. (Foto: Reprodução Twitter Milton Ribeiro)

02 Mai 2022

 

Líderes evangélicos postam conteúdo pró-armas. Na segunda (25), o pastor Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, atirou por acidente em aeroporto e feriu uma pessoa.

 

A reportagem é de Bárbara Poerner, Bruno Fonseca e Mariama Correia, publicada por Agência Pública, 27-04-2022.

 

“Se for para defender minha família, meus filhos, minha mulher, ou minha própria integridade, havendo risco, eu atiro pra matar mesmo”. A fala de Augustus Nicodemus, vice-presidente da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB)  — entidade que representa a denominação —, foi feita durante uma conferência para jovens evangélicos em 2018, que debateu o direito de cristãos usarem armas. Presbiteriano, assim como o pastor e ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que entrou armado no aeroporto de Brasília, no dia 25 de abril, e feriu uma funcionária da companhia aérea Gol depois de disparar acidentalmente, Augustus é um dos pastores evangélicos que defendem o uso de armas de fogo usando argumentos bíblicos. 

 

Arma de Milton Ribeiro disparou acidentalmente no aeroporto de Brasília na última segunda-feira (25). (Foto: Fábio Rodruigues Pozzebom | Agência Brasil)

 

Trechos do Antigo e do Novo Testamento da Bíblia fundamentam discursos de pastores que defendem o porte de armas e o uso delas para a autodefesa. “A Bíblia não é contra o filho de Deus portar armas, porém tem limites. O texto está em um contexto de proteção da propriedade”, diz, citando versículos do livro de Êxodo, o pastor Leandro Quadros. Ele é apresentador de programas na Rede Novo Tempo, conglomerado de mídia pertencente à Igreja Adventista do Sétimo Dia. No mesmo vídeo postado no YouTube, Leandro afirma que, um princípio norteador da sua religião é que “o cristão é pacifista”.

 

Leandro também tem vídeos onde fala contra partidos de esquerda, Marxismo e a favor do presidente Jair Bolsonaro, defensor do armamento de civis. Em 2019, Bolsonaro defendeu a pauta durante participação na Marcha Para Jesus, ao lado dos idealizadores do evento, o pastor Estevam Hernandes e a bispa Sônia Hernandes, da Igreja Renascer. Enquanto Sônia discursava a favor do chefe de estado, o atual presidente encenou o símbolo de uma arma com as mãos. 

 

Ainda na Marcha, Bolsonaro posou em fotos ao lado de Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, criada após a ruptura do pastor com a Igreja Universal do Reino de Deus. Valdemiro foi preso por porte ilegal de armas em 2003.

 

Armas ungidas para proteção de cristãos

 

Em março deste ano, as armas de fogo do delegado Tito Barichello foram ungidas na Igreja Agnus, na cidade de Curitiba. Na ocasião, o pastor Renê Arian fez uma oração: “Senhor Deus, em nome de Jesus, nós ungimos essas armas para a segurança da população de nossa cidade”.  O vídeo viralizou no Instagram do delegado Tito.

 

Autodefesa e proteção da família são argumentos usados pelos pró-armas. (Foto: Reprodução Instagram)

 

Viviane Costa, pesquisadora de religião e segurança, explica que o discurso pró-armas entre as lideranças evangélicas nasce de uma “urgência de autodefesa que se estabelece pela falta de segurança pública”. “O pensamento religioso que defende essa estrutura armamentista está ligada a essa percepção da ausência de segurança da vida e da família e também passa por uma questão da manutenção do domínio religioso, uma violência que sempre esteve no discurso e que agora tem seu sentido ressignificado”.

 

O casal formado por Clarissa Tércio, deputada estadual pelo PSC em Pernambuco, e Júnior Tércio, vereador no Recife, já postou foto com armas na mão em um clube de tiros. Bolsonaristas, eles defendem o porte de armas para a população. Sobre a repercussão da foto no clube de tiro, Clarissa afirmou que “o homem tem que ter todos os instrumentos para proteger a sua família.”

 

“O homem tem que ter todos os instrumentos para proteger a sua família”, afirma deputada estadual. (Foto: Reprodução Instagram)

 

Clubes de tiro também são frequentados por comitivas das igrejas. Em outubro de 2021, o Clube Defender anunciou uma campanha de apoio à igreja Batista Nova Esperança, na Penha, no Rio de Janeiro. O SK Clube de Tiro, no Paraná, registrou no Facebook a visita de membros da Igreja do Evangelho Quadrangular numa espécie de atividade recreativa, na qual os alvos foram substituídos por imagens de “zumbis e criaturas estranhas”.

 

O discurso pró-armamento também está na fala de influenciadores cristãos que produzem conteúdo para públicos jovens nas mídias sociais. Luiz Senna, de 16 anos, faz parte do grupo “O Retiro”, criado pelo pastor Guilherme Batista e que reúne 40 influenciadores cristãos. Eles foram recebidos pelo presidente Bolsonaro no Planalto, no dia 21 de março. Luiz publicou uma foto no seu perfil do Instagram, onde tem mais de 200 mil seguidores, ao lado de Ingred da Silveira. Ambos somam mais de um milhão de seguidores no TikTok. Na imagem, eles seguram armas de fogo. “Cristão é um pacificador, mas não é um pacifista que acredita que se defender com uma arma é errado. Um filho de Deus tem o dever de amar e o direito de proteger sua vida e a sua família”, diz a legenda. 

 

Frente Evangélica bancou aprovação do PL das armas na Câmara

 

A agenda pró-armamento está longe de ser uma unanimidade entre os evangélicos brasileiros, explica o pesquisador visitante de religião e direito do ISER (Instituto de Estudos da Religião), João Luiz Moura. “O campo evangélico é constituído de múltiplas formas e interpretações. Há igrejas, coletivos e atores que reconhecem que a espiral de violência deve ser interrompida não com uma declaração de objetivos, mas com um esforço coletivo de empreender alternativas e demandas sociais que confrontam as políticas pensadas a partir da violência”.

 

Nos discursos dos membros da bancada evangélica do Congresso Nacional há políticos que se posicionam claramente favoráveis à flexibilização do porte de armas, outros, não. Contudo, segundo a Agência Pública apurou, os deputados da Frente Parlamentar Evangélica apoiaram em sua maioria um dos principais projetos que buscam flexibilizar o acesso a armas e alterar o estatuto do desarmamento: o PL 3.723/2019, que foi aprovado na Câmara e agora tramita no Senado.

 

Segundo levantamento da reportagem, 112 deputados da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) votaram sim no Plenário da Câmara, no início de novembro de 2019 — os votos desse grupo foram quase metade de todos os votos pela aprovação do projeto. Houve apenas 28 votos contrários dentre os membros da Frente, e uma abstenção. Se aprovado, o PL 3.723/2019 pode dar porte de arma municiada e pronta para uso (isto é, com cartuchos com as “balas”) a mais de meio milhão de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CACs) registrados no Brasil, de acordo com dados de janeiro deste ano. 

 

Dentre os declaradamente favoráveis, está o caso de Abílio Santana (PSC-BA), que votou pela aprovação do PL na Câmara. Membro da mesa diretora da FPE e pastor da Assembleia de Deus Madureira, ele é filiado ao Clube de Tiro Sisaleiro, na Bahia, desde 2020. Um ano antes, em 2019, o parlamentar falou sobre o PL 3.723/2019 em vídeo publicado no YouTube: “Como você vai se defender de armas, se você não vai estar provido de uma arma? […] Quem conhece a história sabe que foi uma jogada da esquerda desarmar o cidadão”.

 

Outro apoiador da agenda armamentista, também membro da mesa diretora da FPE, é o deputado e pastor da Assembleia de Deus no Rio de Janeiro, Otoni de Paula (MDB-RJ) — que também votou pela aprovação do PL 3.723/2019. Em discurso no plenário em 2019, ele afirmou que “Se o cidadão quiser estar armado dentro da sua casa, ter a posse de arma, eu também sou favorável a isso, porque cada um tem direito à legítima defesa. Contudo, isso não vai resolver os nossos problemas. Ou cuidamos da geração que vai assumir o nosso lugar, ou repetiremos amanhã os mesmos problemas de hoje”. Na última sexta-feira, 22/04, Otoni foi indicado a vice-líder do governo na Câmara, por Jair Bolsonaro.

 

Para Otoni de Paula, “cada um tem direito à legítima defesa” (Foto: Câmara dos Deputados)

 

Já o atual presidente da FPE, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), afirmou que é “preciso chegar em um meio termo”, embora tenha votado a favor do PL 3.723/2019. Em entrevista ao jornal O Globo, o membro da Assembleia de Deus Vitória em Cristo disse que avalia ​​”que não temos uma cultura que permita armar a população como nos EUA, onde o acesso é muito fácil. Temos regiões do país com índice muito alto de brigas de trânsito, de violência doméstica. Imagina essas pessoas com armas? Por outro lado, não sou um desarmamentista”. Em outra ocasião, ele se mostrou favorável à posse, não ao porte. Entre seus projetos de lei propostos nesta legislatura, está o PL 2014/2021, que propõe a garantia de porte de armas aos fiscais ambientais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

 

Também membro da diretoria da FPE, o Pastor Eurico (PL-PE), foi relator do PL 1.256/2021, que cria um documento único de porte de arma, com validade de cinco anos, que poderá atestar a capacidade de qualquer cidadão para porte de arma de sua posse, desde que ela tenha sido cadastrada e adquirida legalmente. O deputado afirmou que a diretriz atual, que não permite o porte de armas diversas, “é absolutamente ilógica”. “O cidadão que detém o porte de arma de fogo comprovou as qualificações técnica e psicológica e atendeu aos demais requisitos legais”, disse. Ele também já participou de uma visita à empresa de armas Taurus, em 2012. O deputado, contudo, votou contra a aprovação do PL 3.723/2019.

 

Liderança evangélica destacada no país, o fundador da igreja Sara Nossa Terra e ex-deputado federal, bispo Robson Rodovalho, já se posicionou a favor do armamento em entrevista ao jornal O Globo. Segundo ele, “no campo das armas, muitos evangélicos são a favor da posse. Há uma sensação generalizada da impotência do Estado no campo da segurança pública”, mas em outra ocasião, afirmou que “o porte [de armas] é desnecessário”.

 

Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, que nunca teve mandato, mas tem atuação política marcante, já comentou em seu canal no YouTube, em 2015, que a revisão do Estatuto do Armamento era um “lobby da indústria de armas”. “Nós somos a favor que a polícia esteja muito bem preparada de armamento, agora, há uma diferença entre a polícia estar bem armada e armar o cidadão. Isso é loucura!”, disse o pastor.

 

A reportagem tentou contato com a Igreja Presbiteriana no Brasil, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. Também tentamos entrevista com Clarissa e Junior Tércio, porém não tivemos retorno da Assessoria de Imprensa. Os deputados da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso também foram procurados, mas não responderam nossos questionamentos.

 

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