28 Outubro 2022
As pessoas que vivem em Kiev certamente nunca esquecem que habitam uma zona de guerra, mas o ataque com mísseis em 10 de outubro ainda foi um choque. Fazia meses desde a última vez que Kiev foi atingida. Os foguetes caíram sobre a capital horas depois que o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, condenou um ataque à ponte do Estreito de Kerch, que liga a Rússia à Crimeia, como um ato de terror.
A reportagem é de Kevin Clarke, publicada na revista America, 24-10-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Na verdade, eu estava tentando correr naquela manhã e três foguetes caíram exatamente na minha rota”, disse o jesuíta Andriy Zelinskyy, professor da Universidade Católica Ucraniana e capelão do exército ucraniano. Ele foi desviado junto com milhares de outros para o abrigo antibombas improvisado do sistema de metrô de Kiev.
O míssil e, com frequência crescente, os ataques de drones a cidades ucranianas e infraestrutura de energia aceleraram em proporção próxima a diminuição da participação do exército russo no campo de batalha, uma aparente estratégia de “vencer” desgastando a vontade do público de lutar. O padre Zelinskyy não acha que isso vá funcionar.
Naquela manhã, na estação central de metrô da cidade, ele ouviu o povo de Kiev reunido em uma canção patriótica enquanto esperava o sinal de que tudo estava liberado.
“Olha, não é divertido ser atacado de manhã por mísseis russos”, disse ele. O horror da experiência ficou evidente nos olhos das pessoas que viu no metrô. Mas ele não acha que o povo ucraniano vai ceder sob este último ataque. “Já vimos muito”, disse ele. “Perdemos mais de 100 mil vidas. A maioria deles são civis”.
“Estou testemunhando mortes de civis desde fevereiro e, claro, como capelão militar, estou na linha de frente desde 2014. Mas a ideia de que existe algo invencível, horrível, algo pior, e 'não vamos acordar isso'? Isso é um mito”.
Não é o único ligado a esta guerra, argumentou.
“Toda a ordem internacional desde a Segunda Guerra Mundial foi baseada no fato de que existe um exército russo invencível. Pessoas: É um mito”.
O exército nacional da Ucrânia não era classificado nem como próximo das principais forças armadas globais, ressaltou. Agora se defendeu e está avançando contra a suposta superpotência. A vantagem tecnológica da Rússia provou ser ilusória no campo de batalha. “Os russos são tão mortais quanto qualquer outra pessoa neste mundo”, disse o padre Zelinskyy.
Como os cidadãos de Kiev, a moral do exército ucraniano ao longo da frente de 620 milhas é forte, de acordo com o padre Zelinskyy. Os soldados ucranianos não estão sobrecarregados com bagagem “ideológica”, explicou. Eles simplesmente sabem que estão lutando por suas vidas, suas famílias e pela sobrevivência da Ucrânia como um estado independente.
“Não são todos militares profissionais”, disse ele, mas um exército de cidadãos. “São cantores de ópera. São professores e pesquisadores universitários. Eles são os melhores que a nação tem”.
E a nação está perdendo muitos dos seus melhores. “Essa dor”, disse ele, “pode ter sua própria beleza. O que testemunhamos é muito trágico… mas é autêntico”. É sobre o “amor que vemos no Evangelho”.
“Não é porque queremos guerra; não é porque queremos lutar”, disse. “Somos apenas nós, as pessoas; nós nos defendemos”.
Os ucranianos ouvem que os líderes do Ocidente estão procurando uma abertura para uma negociação que possa acabar com a guerra, disse o padre Zelinskyy. Ele sabe que eles temem que o possível uso de armas nucleares táticas por Putin possa levar a consequências inimagináveis.
Mas como essas negociações podem começar, ele se pergunta, quando a Ucrânia se depara com um inimigo tão implacável?
“Talvez o Ocidente esteja muito longe de Moscou, então você não pode ouvir o que eles dizem, que os ucranianos não existem, que o estado ucraniano não deveria existir. E é isso.
“Não temos escolha” a não ser continuar lutando, disse ele.
Como as negociações são possíveis, ele perguntou, quando a posição de abertura russa é: “Ou você faz o que queremos ou nós o matamos”.
Putin e vários outros líderes culturais e políticos na Rússia deixaram claro que estão dispostos a matar o maior número possível de ucranianos, disse ele, se isso significar a inclusão da Ucrânia no sonho de Putin de uma Grande Rússia. Por que os ucranianos deveriam temer o uso de uma arma nuclear?
“É horrível. Mas e daí?”, ele disse. “Eles já estão nos matando desde 24 de fevereiro – massivamente. Uma arma nuclear tática é apenas outro tipo de destruição em massa. O que importa se você for morto com uma arma, um míssil ou uma bomba nuclear?”, questionou.
Maryann Cusimano Love, professora associada de Relações Internacionais da Universidade Católica da América, em Washington, observou a ironia de que as ameaças de Putin devem ser ponderadas neste mês, durante o 60º aniversário da Crise dos Mísseis de Cuba. Naquela época, ela disse, o presidente John Kennedy estimava as chances de uma guerra nuclear em uma em três.
“O que a maioria dos estadunidenses não sabe é que o presidente Kennedy estava exatamente correto sobre essa avaliação”, disse Cusimano Love. No final, foi a decisão de um comandante de submarino de não lançar – votando contra dois outros comandantes enquanto a Marinha dos EUA lançava cargas de profundidade ao redor deles – que impediu o impensável em 1962.
E esse é o tipo de risco do campo de batalha que assombra Cusimano Love neste momento perigoso. Ela explicou que os Estados Unidos contam com um processo de tomada de decisão de “monarquia nuclear” sobre o uso de armas nucleares – um protocolo com seus próprios riscos únicos, contando com a racionalidade e o temperamento presidencial.
Mas o processo descentralizado que a Federação Russa herdou da União Soviética aumenta substancialmente a ameaça de um erro ou falha de comunicação no estilo “névoa de guerra” que poderia levar a um uso essencialmente acidental de armas nucleares táticas. Nesse ponto, o confronto pode sair perigosamente do controle. Cusimano Love será uma das apresentadoras de um fórum na Fordham University em 26 de outubro, “Novas armas nucleares e novos riscos: o perigo das armas nucleares em um mundo instável”. O evento será dedicado ao trabalho e memória do jesuíta Drew Christiansen, falecido editor-chefe da revista America,
Se a decisão de implantar armas nucleares táticas foi inteiramente deixada para Putin, Cusimano Love acredita que o relógio pode atrasar um ou dois segundos da meia-noite nuclear. “É um jogo perigoso tentar entrar no cérebro de Putin”, disse ela, “mas minha sensação é que ele obtém o máximo de vantagem da ameaça de uso e muito menos valor do uso real”. Ela acredita que Putin continuará a levantar a opção nuclear para desencorajar um envolvimento mais profundo da OTAN no conflito e aterrorizar o povo ucraniano até a capitulação.
Mas o espetáculo das crescentes ameaças de Putin teve o efeito não intencional de demonstrar que “armas nucleares não são realmente muito úteis”, argumentou ela.
“Descobrimos em todo o mundo que as armas nucleares não têm muita utilidade, em termos de mudar... os resultados da guerra”, disse Cusimano Love. Após a Segunda Guerra Mundial, “o pensamento errôneo era de que os Estados Unidos tinham a bomba no bolso de trás e que isso se traduziria em ganhos tangíveis em assuntos políticos e militares… mas nunca funcionou dessa maneira”.
De fato, o estilo de Putin pode sair pela culatra, quando “a ameaça realmente consolida a resistência ao adversário”.
“Todas as indicações são de que é isso que está ocorrendo hoje na Ucrânia”, disse ela.
“Putin é, na verdade, uma criatura do Ocidente”, disse o padre Zelinskyy, “dos medos e da imaturidade de chamar as coisas do jeito que são”.
“Agora temos uma ameaça nuclear. Bem, [a ameaça] não começou ontem. Começou na época em que não tínhamos coragem suficiente para chamar as coisas por seus nomes próprios”.
Ele ressaltou que, embora sanções limitadas tenham sido iniciadas em 2014, no final a comunidade internacional em grande parte minimizou a tomada da Crimeia pela Rússia e seu patrocínio aos separatistas em Donbass.
“É assim que o mal funciona. Se não o nomearmos, amanhã talvez não consigamos ultrapassá-lo”. Entrar em algum caminho para a desescalada, disse ele, não é apenas sobre quais ações a Ucrânia deve tomar. “É sobre o homem louco que tem armas nucleares. E, infelizmente, essa política de apaziguá-lo chega só até certo ponto”.
“A paz é uma questão de justiça, e a justiça é uma questão de verdade”, disse o padre Zelinskyy. “Somos responsáveis pelo Putin. Essa é a nossa responsabilidade coletiva…. Então vamos lidar com isso”.
A Ucrânia e o Ocidente não podem ceder à chantagem nuclear de Putin, insistiu o padre Zelinskyy. “Não há outras opções”, disse ele, exceto “orar por ele” e “orar pela conversão da Rússia. Eu não sei mais o que fazer”.
“Não tenhamos medo. Foi isso que Jesus nos ensinou, e às vezes nos esquecemos disso: ‘Não tenhais medo’. Se você está do lado da verdade, se está do lado do bem, tudo o mais está nas mãos de Deus”.
Enquanto o padre Zelinskyy permanece resoluto em Kiev, um colega jesuíta ucraniano na Polônia, Vitaliy Osmolovskyy, continua seu trabalho com um programa de assistência patrocinado pelos jesuítas para refugiados ucranianos, ajudando-os a se estabelecer em novas casas, encontrar novos empregos e, para alguns deles, começar uma nova vida. A maioria dos refugiados ainda espera retornar à Ucrânia algum dia, disse o padre Osmolovskyy, mas um número crescente de famílias com as quais ele trabalha, talvez até 20%, agora planeja se estabelecer permanentemente na Polônia. Seus filhos estão seguros e matriculados em escolas polonesas, e eles veem poucas chances de um fim a curto prazo da guerra, explicou.
As crianças refugiadas que ele visita falam cada vez mais com ele em polonês, mostrando uma aptidão para a adaptação e assimilação que o padre Osmolovskyy acolhe e teme ao mesmo tempo. Ele teme que a língua e a cultura ucranianas possam em breve ser esquecidas entre esta geração de refugiados.
Centenas de milhares de ucranianos lotaram a fronteira no início do conflito em fevereiro, mas à medida que a guerra se arrastava, o fluxo de refugiados para a Polônia diminuiu bastante. E enquanto as forças do exército ucraniano recuperam o território que havia sido tomado pela Rússia, alguns refugiados estão até se aventurando de volta à Ucrânia para visitar familiares que ficaram para trás ou para ver o que resta de suas casas e comunidades.
“Os ucranianos são um povo do solo”, disse o padre Osmolovskyy. “Eles querem voltar e reconstruir”.
Seus próprios pais nunca foram embora, embora sua cidade, que abriga uma base militar ucraniana perto da fronteira com a Bielorrússia, tenha sido frequentemente alvo de ataques russos. O casal se juntou à defesa territorial ucraniana e, apesar de seus apelos, recusou-se a visitá-lo na Polônia, mesmo que apenas por um curto intervalo.
De acordo com as Nações Unidas, cerca de 1,5 milhão de refugiados ucranianos estão sendo acolhidos pela Polônia. Ao todo, 7,7 milhões de ucranianos fugiram para estados fronteiriços e em toda a Europa. Outros 6,24 milhões de ucranianos foram deslocados dentro das fronteiras do país.
Padre Osmolovskyy espera uma nova onda de refugiados com o início do inverno e muitos são forçados a desistir de consertar casas danificadas pela guerra. Ele está juntando roupas de inverno e outros equipamentos e procurando estabelecer um segundo abrigo em Varsóvia.
O bispo-auxiliar Jan Sobiło, de Kharkiv-Zaporizhzhia, em entrevista ao Catholic News Service em 21 de outubro, alertou que as atuais ondas de ataques aéreos russos à infraestrutura de energia só podem piorar a crise dos refugiados.
Ele disse: “Muitos que nunca pensaram em sair estão agora no oeste da Ucrânia ou deixaram o país... Se não há água, gás ou eletricidade em suas casas, como eles podem ficar lá?”.
Além de ajudar nas necessidades de sobrevivência, moradia e colocação profissional, os jesuítas na Polônia oferecem aconselhamento psicológico e programação educacional para crianças refugiadas. O padre Osmolovskyy acrescentou que os jesuítas esperam um dia apoiar a reconciliação e a construção da paz. Não adianta começar esse trabalho agora, disse ele, explicando que primeiro “o ofensor tem que pedir perdão”.
A experiência dos refugiados levou alguns a se apegarem mais firmemente à sua fé, disse ele. Outros o abandonara, sentindo-se abandonados pelo próprio Deus. “[João] O Evangelista diz: ‘Deus é amor’, embora nesses momentos seja difícil ver isso”, disse o padre Osmolovskyy.
“Mesmo para mim, é um momento difícil”. Ele explicou que os amigos a caminho da frente ligam e pedem orações. “Eles geralmente me perguntam: ‘Se vou ser morto, por favor, ajude minha família, minha esposa e meus filhos’”. Eles devem deixar seus celulares para trás para evitar a geolocalização pelas forças de artilharia russas. Muitas vezes ele não vai descobrir por dias o que aconteceu com eles.
Isso, ele admitiu, parece um fardo enorme.
Mas, acrescentou, revivendo um pouco, “a nossa tarefa como jesuítas, como seres humanos, é apoiar cada pessoa sem exceção, ser a luz da esperança, a luz da Páscoa, a luz da paz”, mesmo que os tempos tenham dificultou essa tarefa.
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O relato de dois jesuítas do front ucraniano – enfrentando Putin e servindo refugiados na Polônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU