"Como podemos parar a dinâmica mortal dos poderes soberanos que põe em questão as regras e equilíbrios muito frágeis do final do século 20? Não só não se deve afastar, como também deve fazer disso uma de suas prioridades, pois a organização política do mundo determina em grande parte todas as outras. Pensar que essa dinâmica pode ser evitada com uma concepção absolutista e obsoleta da soberania nacional e um 'não-alinhamento' não é apenas um erro político e moral. É um erro sobre o estado do mundo e sobre a forma de evitar as piores calamidades. É compreensível que um país sob ataque se aproveite disso, mas não é compreensível que um país obrigado a demonstrar solidariedade a utilize como um pretexto para um abandono covarde", escrevem os pensadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval, em artigo publicado por Universidade Nômade, 15-05-2022. A tradução é de Oficina Uninômade Brasil.
Segundo eles, "qualquer tentativa de reavivar a ideia de uma liderança centralizada da luta está condenada ao fracasso. A grande tarefa da próxima geração será a de inventar uma nova cosmopolítica baseada na democratização radical das sociedades".
Devemos a Hegel esta famosa frase, tirada da observação do §324 dos “Princípios da Filosofia do Direito”, que alguns hoje são tentados a relacionar ao nosso presente: “As guerras acontecem quando são necessárias, depois as colheitas brotam de novo e a conversa se cala diante da seriedade da história”[1]. Nessa passagem, o filósofo ataca a atitude inconsistente daqueles que, em discursos edificantes, previam o que aconteceria; mas que, uma vez diante do acontecimento, passam a xingar os invasores que agora aparecem “na forma de hussardos com sabres desembainhados” porque ameaçam a segurança de suas propriedades. Ele vê nisso uma incapacidade de detectar a necessidade histórica em ação sob a contingência do evento. De fato, longe de se opor a essa necessidade, o evento a realizaria de forma inesperada e infeliz para os mesmo que haviam feito tais previsões.
É possível decifrarmos a situação sem precedentes criada pela agressão da Rússia contra a Ucrânia, à luz desta citação? Por mais tentadora que pareça, essa aproximação se mostra-se extremamente ruinosa para a reflexão. Em que a guerra iniciada por Putin em 24 de fevereiro de 2022 manifestaria alguma necessidade histórica? E de que forma ele pode ser considerado o agente inconsciente dessa necessidade? Os “hussardos com espadas nas mãos” evocados por Hegel, isto é, o esquadrão de cavalaria dos exércitos revolucionários criados em 1792, encontrariam seu equivalente moderno nos soldados russos que agora sitiam as principais cidades da Ucrânia? Na mente de Hegel, a “necessidade histórica” manifesta pela carga dos hussardos é a da Revolução Francesa, que se defendia contra os exércitos contrarrevolucionários coligados da Europa das cabeças coroadas.
É esta Revolução que Hegel celebrava como “um magnífico nascer do sol”, porque ela afirma que as instituições existentes devem ser reconstruídas com base no “princípio do direito”. O que isso tem a ver com a agressão deliberada de um país independente, violando todas as leis e movido pelo desejo de restaurar a grandeza imperial perdida? Além disso, é possível esperarmos que “as colheitas voltem a crescer” em uma região que é um celeiro por causa de seu “solo escuro”, cuja fertilidade já era reconhecida pelo historiador grego Heródoto? Não deveríamos temer que as devastações impostas a estas terras venham a ter efeitos duradouros quando ameaçam regiões inteiras do mundo com a fome, antes de tudo as regiões da África? Enfim, é possível realmente dizermos que a tagarelice se cala diante da seriedade da história? Não estaríamos, ao contrário, testemunhando a sua proliferação descontrolada, particularmente por parte daqueles que, em nome do “não-alinhamento”, encobrem a voz das vítimas com vociferações indecentes e procuram fazer as pessoas esquecerem seu fascínio doentio pelo desencadeamento desenfreado do poder do Estado?
Longe de provir de qualquer necessidade histórica, a decisão de Putin na verdade é ditada pela obsessão de restabelecer a continuidade de uma história muito antiga, quebrada por rupturas vicenciadas como traumas pelo homem que passou boa parte de sua carreira como agente da FSB em Dresden e que experimentou o colapso da URSS em 1991 como uma humilhação a exigir reparação. Em 12 de julho de 2021, Putin delineou sua concepção de história: a “Grande Nação Russa” recebeu aí o papel de liderança, com Bielorrussos e Ucranianos aparecendo como “Pequenos-Russos”[2]. O próprio uso destes termos revela uma continuidade, mas qual?
A Ucrânia, cujo nome significa “marcha” ou “região de fronteira” em russo e polonês, integrou o Império Russo entre os séculos XVIII e XX. Os russos estavam há muito inclinados a reduzir a Ucrânia a “Sul da Rússia” ou “Pequena Rússia”, “uma simples província sem identidade nacional”, os ucranianos a uma “tribo” (mas nunca a um “povo” ou a um “estado”), e o ucraniano a um “dialeto”, ou mesmo um “linguajar” desprovido de existência independente. Ao longo do século XIX, os czares perceberam as aspirações de autonomia da região como uma ameaça à coesão do Império e tentaram por todos os meios proibir o uso da língua ucraniana[3].
Em outubro de 1917, a tomada do poder pelos bolcheviques não mudou fundamentalmente a atitude condescendente dos russos em relação aos ucranianos, especialmente porque a situação das relações entre o novo regime e os camponeses ucranianos se agravou rapidamente. Em 1919, eclodiram revoltas camponesas, a mais famosa delas foi a revolta de Makhno no sudeste da Ucrânia (Zaporíjia), que lutou contra os exércitos brancos de Denikin e os nacionalistas ucranianos antes de se voltar contra o regime bolchevique. No início dos anos 20, a prática de requisição forçada sistematizada pelo regime do “comunismo de guerra” acabou levando a uma fome que atingiu o sul da Ucrânia, entre outras regiões, de forma muito dura.
Em 1921, com a Nova Política Econômica (NEP), e depois em 1923, com a política de “indigenização” (chamada de “ucranização” na Ucrânia), o regime fez uma virada difícil de aceitar pelos bolcheviques russófonos na Ucrânia. Como escreve a historiadora Anne Applebaum: “Mais uma vez, havia o chauvinismo russo na visão das coisas (dos bolcheviques russos): ao longo de suas vidas, a Ucrânia sempre tinha sido uma colônia russa e era difícil para eles imaginar que fosse de outra forma. Para muitos, o ucraniano era uma “língua de quintal”. Como lamentou o comunista ucraniano Volodymyr Zatonskyi, “era um velho hábito dos camaradas considerar a Ucrânia como a Pequena Rússia, uma parte do Império Russo – um hábito gravado em sua memória ao longo dos milênios da existência do imperialismo russo“.[4] Foi o que Lênin percebeu tarde demais, em seu famoso “Testamento” de 1922, em que observou amargamente, mas não sem contradição com a sua própria prática, que a centralização do Estado “tomado emprestado do czarismo” tinha sido reconstituída, “levemente polido com um verniz soviético”, e que a “escória chauvinista grão-russa” tinha feito seu grande retorno sob o disfarce da união das repúblicas.
Os “camaradas” de Zatonskyi e Lênin conheciam mal seus “clássicos”. Talvez seja útil recordar aqui hoje, quando o fantasma da Rússia imperial está novamente assombrando a Europa, a forma como Marx e Engels detectaram na política externa da Rússia czarista, mesmo ela não tendo meios para fazê-lo por causa de seu arcaísmo feudal, um desejo de dominação universal, de modo essa Rússia tinha chegado a se constituir como o “centro da reação política”, o “principal inimigo dos povos europeus”, a “espinha dorsal da aliança dos déspotas europeus”, de acordo com as fortes expressões empregadas pelos dois autores. Longe do pacifismo, a questão estratégica colocada por Marx e Engels era como livrar o estrangulamento reacionário em todos os países europeus, especialmente aqueles da Europa central, presos entre a Inglaterra capitalista e o expansionismo russo. Não houve nada de tortuoso na resposta dos dois.
Já em 1865, a Associação Internacional de Trabalhadores inscreveu em sua bandeira: “Resistência à invasão russa na Europa – Restauração da Polônia”. Para Marx e Engels, era todo o proletariado europeu que tinha ali que assumir a causa da Polônia, cuja nova insurreição havia acabado de ser atrozmente esmagada em 1863. “Derrubar o czarismo e aniquilar este pesadelo que paira sobre toda a Europa é, aos nossos olhos, a primeira condição para a emancipação das nações da Europa Central e Oriental”. Estas eram para Engels em 1888 as “tarefas do partido dos trabalhadores na Europa Oriental“. Disso só se pode esperar resultados benéficos para a liberdade: “A Polônia será restaurada; a pequena Rússia poderá escolher livremente seus laços políticos; os romenos, magiares e eslavos do Sul, livres da interferência estrangeira, poderão resolver seus assuntos e problemas de fronteira entre si“. E será mesmo, prevê Engels, um meio de libertar os próprios russos do desperdício implacável de energia consumida nas conquistas territoriais: “finalmente a nobre nação dos grandes russos não mais fará a caça sem sentido às conquistas que beneficiam apenas o czarismo, mas realizará sua autêntica missão civilizadora na Ásia e, em ligação com o Ocidente, desenvolverá suas impressionantes capacidades intelectuais, em vez de entregar o melhor de seus filhos ao trabalho forçado e ao cadafalso“[5].
A guerra atual nos permite iluminar as raízes profundas da lógica da soberania do Estado. Em particular, torna completamente obsoleta a redução da soberania política a uma “forma simples” a serviço da economia. Como se fosse o desenvolvimento do capital que, através da expansão do mercado, respaldasse a forma de autoridade soberana, uma forma que em si mesma seria impotente. Esta reafirmação hipermarxista da primazia da infraestrutura sobre a superestrutura é sustentada pela imagem de um “mundo liso” realizado através da eliminação da sociedade civil e das fronteiras nacionais. Embora tal interpretação possa ter provocado ilusões no início dos anos 2000, hoje ela se mostra completamente incapaz de dar conta dos atuais acontecimentos.
De fato, todos os grandes eventos geopolíticos recentes, todos os confrontos, todos os jogos de rivalidade mostram até que ponto a soberania política não pode ser apreendida apenas dentro das coordenadas da racionalidade capitalista. A invasão da Ucrânia pelos exércitos da Rússia é a prova mais dramática desse fato hoje. Nisso, a conduta de Putin aparece como o ápice fanático e delirante da lógica da soberania do Estado. O nacionalismo grão-russo é desencadeado sem restrições, notadamente através da invocação da figura de Stálin, exaltada como líder da “grande guerra patriótica” contra o nazismo, o que permite legitimar a guerra de agressão em nome da luta pela “desnazificação” da Ucrânia.
As raízes da soberania estatal aqui são reconduzidas à história mais antiga do império czarista e conferem à soberania estatal um significado que muitas vezes é bem mais pesado, devido à sua natureza mística, do que a lógica dos interesses imediatos das oligarquias econômicas e financeiras. A ameaça da declaração de insolvência devido à incapacidade de Moscou em cumprir um prazo de serviço das obrigações da dívida pública (117 milhões de dólares) não é suficiente para fazer a Rússia se curvar. É bem conhecido que a Rússia acumulou enormes reservas de divisas e de ouro (na ordem de 630 bilhões de dólares) para preparar-se para a guerra e as sanções.
Mas estaríamos perdendo o essencial se nos mantivéssemos apenas neste aspecto. Putin radicalizou o desafio até o ponto de exigir que todas as dívidas estrangeiras fossem pagas em rublos, uma moeda que perdeu quase 30% de seu valor até hoje, o que já diz o suficiente sobre a inadequação da ameaça financeira apenas diante da afirmação da soberania do Estado russo[6]. Seria igualmente enganoso considerar a expansão econômica como a força motriz do imperialismo russo, de acordo com o esquema convencional, mas que perde de vista a essência do fenômeno: a obsessão pelo lugar histórico dos “Grão-Russos”. O Senhor do Kremlin, enfurecido com os reveses de seu exército e a inesperada resistência dos ucranianos, está engajado em uma lógica de fuga avante e de pressa, da qual é difícil ver, nesta fase, como ele poderá vir a sair.
O § 324 dos “Princípios da Filosofia do Direito” de Hegel, citado no início deste artigo, contém uma seção intitulada “Soberania em relação ao mundo exterior”, referindo-se à relação que cada Estado estabelece com todos os outros. Este aspecto de soberania pressupõe a “soberania em seu aspecto interno” ou “soberania dentro”, como discutido no § 278 do mesmo livro. O filósofo afirma com razão a indissolubilidade dos dois aspectos da soberania, externo e interno. Soberania externa e soberania interna não são duas formas de soberania, mas dois lados da mesma realidade, que é o Estado. Mas Hegel usa isso para argumentar que existe uma proporcionalidade direta entre os dois aspectos: quanto menos os povos são capazes de apoiar a soberania interna, menos eles são capazes de lutar por sua independência externa e mais facilmente sucumbem a um poder externo, e vice-versa. O filósofo alemão assim valoriza o “momento ético” da guerra, enquanto condição para a preservação da liberdade.
Importa aqui, além desta valorização que obviamente temos de rejeitar, o reconhecimento da indissociabilidade entre soberania externa e interna. Isto pode ser facilmente verificado no caso da Rússia de Putin: a brutal afirmação da soberania do Estado no exterior caminha de mãos dadas com o reforço cada vez mais autoritário da soberania interna, exercida pelo Estado sobre seus cidadãos, excluindo até mesmo o direito elementar de chamar de guerra ao que é uma guerra, e uma das piores no coração da Europa desde 1945.
O que está em jogo é bastante simples, ainda que muitos tentem obscurecê-lo. Por um lado, uma agressão de brutalidade e selvageria sem precedentes, que transpõe para a Ucrânia os métodos de terror contra as populações civis praticados pelo exército russo durante as duas guerras na Chechênia e na Síria, em ambos os casos com a vergonhosa complacência do Ocidente. Por outro lado, um povo que está resistindo a uma invasão, não apenas um exército de profissionais, mas cidadãos comuns que pegam em armas para defender o direito de seu país à independência. Está em jogo uma questão de princípio. A escolha não se discute.
Algumas pessoas à esquerda sempre têm algumas dificuldades de contar até dois. Ter dois inimigos e não apenas um, lutar em duas frentes e não apenas em uma, obviamente não é algo confortável. É bem menos difícil para a mente poder contar com o bom, o exclusivo, o único Inimigo.
O simplismo político, nascido de velhos hábitos, ignorância, amnésia e muita preguiça, devora uma parte da esquerda radical até a indignidade. Felizmente, nem todas as pessoas de esquerda. Balibar acaba de nos lembrar que, diante da invasão russa da Ucrânia, “o pacifismo não é uma opção” e que “o imperativo imediato é ajudar os ucranianos a resistir”. Não vamos repetir a “não-intervenção”.
Mas ampliemos a argumentação: não apenas o pacifismo é totalmente questionável quando um país é invadido por outro, pisoteando todas as regras do direito internacional. Em primeiro lugar, é o “campismo” que não é de forma alguma uma opção. O que é o campismo? É a estupidez política com os efeitos mais sinistros, que consiste em pensar que existe apenas um Inimigo. Vamos defini-lo como um anti-imperialismo unilateral. Da unicidade do Inimigo deriva-se a consequência inevitável que aqueles que se opõem ao Inimigo tenham direito, se não à bênção, ou ao menos às desculpas. Isto com base no princípio que os inimigos do Inimigo são, se não amigos, pelo menos “aliados objetivos” em uma luta justa.
Quase todo o século XX foi marcado por este trágico jogo de espelhos. Os partidários do sistema capitalista fecharam os olhos para as ditaduras mais criminosas, encorajaram e apoiaram-nas em nome da defesa da civilização ocidental contra o comunismo, enquanto uma parte da esquerda não queria saber da terrível realidade do “comunismo” soviético ou chinês e tampouco estava muito preocupada com a natureza dos regimes “pós-coloniais”. O campismo de esquerda postula que o único inimigo do povo é o “capitalismo”, o “imperialismo americano”, o “Ocidente”, o “neoliberalismo”, ou mesmo “a União Europeia”, dependendo do caso e das várias designações em uso corrente. Felizmente, no século passado, sempre houve movimentos e intelectuais que souberam resistir à estupidez política e salvar a honra da esquerda, denunciando todos os inimigos da democracia e da liberdade, sem qualquer “relativização de responsabilidades”. No movimento revolucionário, as correntes trotskista e libertária, e muitos outros movimentos como o Socialisme ou Barbarie[7], seguraram assim corajosamente a dupla frente anticapitalista e anti-Stalinista.
Podíamos ter esperado estar definitivamente imunes a este absurdo com o colapso do “bloco soviético” e a crise da “hegemonia americana”, podíamos ter acreditado que nenhuma opressão, nenhuma violação dos direitos humanos, nenhuma transgressão do direito internacional, nenhum golpe de força, seja vindo do Ocidente ou do Leste, do Norte ou do Sul, poderia mais ser justificado uma vez terminada a Guerra Fria. Estávamos errados. Os preguiçosos maus hábitos têm obviamente persistido, mesmo que se revelem um pouco vergonhosos, por ocasião da guerra de invasão de Putin.
O campismo da esquerda consiste em ler hoje, nesta guerra, um confronto entre uma Rússia humilhada, cercada e ameaçada e um Ocidente arrogante, conquistador e agressivo. A Ucrânia seria basicamente apenas um campo de batalha entre o Inimigo imperialista que quer expandir-se infinitamente e a Rússia, um país atacado que foi enganado por falsas promessas em 1990. E mesmo que se reconheça, o que nem sempre ocorre, que este último tenha alguma inclinação imperial, seria apenas um imperialismo de segunda categoria, enfraquecido, o que não seria páreo para o Inimigo.
Se esta é realmente uma guerra entre os EUA e a Rússia, se a causa ucraniana é tão “instrumentalizada” pelo Ocidente imperialista, como poderíamos então estar a entregar armas aos ucranianos, ajudá-los a lutar? É claro que se é difícil apoiar Putin, que é um grande apoiador de todas as forças de extrema-direita do mundo, não deveríamos ao menos permanecer “não-alinhados”, “neutros”, ou mesmo “alter-globalistas”, como alguns propõem, tal como Jean-Luc Mélenchon na França? Digamos que sim: esta postura só vai testemunhar a complacência inadmissível ante o fascismo neostalinista de Putin e, mais fundamentalmente, um completo desconhecimento da natureza totalitária e criminosa deste poder que jamais deixou de destruir a oposição interna, a ponto de eliminar fisicamente jornalistas e ativistas, perseguir toda a sociedade e exportar o seu ódio armado contra o desejo de democracia de todos os povos para a Chechênia, a Síria e, mais recentemente, para a Belarus e o Cazaquistão. Esquecem-se também de todas as provocações e a passagem às vias de fato por Putin com o objetivo de restaurar o império russo em nome de uma mística nacionalista, com uma lógica assombradora.
O apoio da esquerda radical à resistência ucraniana deve, portanto, ser inequívoco, assim como o apoio à causa palestina e a muitas outras no mundo. Não apenas devemos exigir a retirada das forças invasoras, mas também exigir que as armas sejam enviadas à resistência ucraniana e, enquanto isso, oferecer todas as garantias de proteção ao território ucraniano dentro de suas fronteiras antes da anexação da Crimeia e da secessão orquestrada pela Rússia das pseudo-repúblicas de Donbass.
O campismo da esquerda acredita prontamente que um crime anula outro, que uma violação do direito internacional justifica outra, que as vítimas se compensam umas às outras. É fácil concordar que não há nada de virtuoso no Ocidente e que sua hipocrisia é imensurável. As intervenções americanas e ocidentais desde o 11 de setembro de 2001 (a “Guerra ao Terror”) não se envergonharam da legalidade e levaram a tragédias que ainda estão acontecendo, notadamente no Iraque e na Líbia, sem mencionar a defesa obstinada das políticas israelenses de colonização dos Territórios Ocupados! Como podemos afirmar que somos a favor do direito internacional quando protegemos sua violação permanente, como fazem os Estados Unidos através de seu veto no Conselho de Segurança?
A luta contra esse imperialismo americano e ocidental é plenamente justificada. Ela deve até mesmo ser estendida a todas as formas de dominação econômica, financeira e ideológica, e não apenas às intervenções militares. Este foi o significado de alterglobalismo há não muito tempo. Mas a dominação do capitalismo ocidental não deve nos fazer esquecer que existem outras formas de dominação e opressão, notadamente religiosas, e outras ideologias extremamente perigosas, como o nacionalismo “imperial” do governo russo. Encaremos isso, o Ocidente não é o único obstáculo à democracia e à justiça social e temos mais de um inimigo. O internacionalista consistente sabe disso, o campista o ignora.
Um dos piores aspectos desta atitude (campista) é ignorar as aspirações populares dos ucranianos, mas também, para ir mais longe, os grandes movimentos democráticos na Ucrânia, Bielorrússia, Geórgia e Cazaquistão. Os povos em questão são reduzidos a peões que realmente não existem neste grande esquema histórico abstrato cujo único ator real é o Inimigo que quer estender seu domínio mundial. Não ocorre sequer ao campista de esquerda que a filiação de muitos países que permaneceram sob o domínio da URSS por muito tempo depois de 1945 foi, faute de mieux, uma garantia de segurança para eles após todas as agressões, anexações e desmembramentos que sofreram em sua história. É claro que a realidade é “sempre mais complexa”, como repetem os “não-alinhados”, mas é exatamente disto que eles devem aprender: os povos têm sua autonomia, eles não são os fantoches das grandes potências.
O pior erro político do campismo é considerar que os povos não são nada, que tudo é jogado no topo. Assim, o terrorismo islamista esteve em ação na revolução popular síria de 2011 desde o início. Assim, as “revoluções coloridas”, mobilizações populares no espaço pós-soviético que participaram a partir dos anos 2000 no grande movimento de emancipação democrática nos quatro cantos do mundo, teriam sido apenas formas disfarçadas do imperialismo americano. Assim, a ocupação da Praça Maidan em 2014, que faz parte do grande ciclo do movimento Ocupar a Praça, teria carregado a marca dos “neonazistas”.
Desse esquema vem a “relativização da responsabilidade”. O teórico, outras vezes mais inspirado, do alterglobalismo e da “esquerda global”, Boaventura de Souza Santos, afirma sem pestanejar que “a democracia é apenas uma fachada (tela) dos Estados Unidos” e compara o “golpe de 2014” na Ucrânia ao golpe que derrubou Dilma Roussef em 2016 no Brasil. Em ambos os casos, haveria uma e a mesma tentativa de expandir a esfera de interesses dos EUA: “A política de mudança de regime não visa criar democracias, mas apenas governos leais aos interesses dos EUA”. A subjetividade democrática dos povos não poderia ser mais bem negada, reduzida a brinquedos nas mãos do imperialismo norte-american[8]. Esquece-se também que as multinacionais americanas e europeias nunca prosperaram tanto como no regime mafioso e ultra-repressivo da Rússia, o que lhes assegurou a paz social absoluta. Na realidade, este autor está simplesmente repetindo a velha doxa do século XX, como se a Rússia ou a China representassem uma alternativa “progressiva” ao capitalismo ocidental, que deveria ser “poupada” porque a contrabalançaria. Na realidade, esses países oferecem algumas das versões mais monstruosas do capitalismo, pois combinam o pior tipo de ditadura política sobre a população com a exploração excessiva da riqueza em favor de uma classe muito pequena de predadores ultra ricos.
Alguns protestos contra as “guerras imperiais” são de mão única: eles denunciam prontamente os ataques americanos, israelenses ou europeus, mas esquecem sistematicamente dos bombardeios russos ou iranianos contra populações civis na Síria, que causaram muito mais vítimas civis do que os primeiros.
Foi o que Leila Al-Shami explicou em 2018 em um poderoso texto intitulado “O anti-imperialismo dos idiotas”[9], referindo-se à coalizão “Hands off Syria” que, em suas proclamações e manifestações, não disse uma palavra sobre os massacres cometidos pelos russos e iranianos que vieram para esmagar a revolta democrática e defender o regime de Bashar El Assad: “Cegos à guerra social que está sendo jogada dentro da própria Síria, este tipo de visão considera o povo sírio, quando considerado, como peões insignificantes em um jogo de xadrez geopolítico. ” É este tipo de anti-imperialismo unilateral que os autores de uma carta aberta, incluindo muitos sírios, denunciaram:
Desde o início da revolta síria há dez anos, e especialmente desde que a Rússia interveio na Síria em defesa de Bashar al-Assad, temos testemunhado um desenvolvimento tão curioso quanto sinistro: o surgimento de lealdades pró-Assad em nome do ‘anti-imperialismo’ entre alguns que de outra forma geralmente se caracterizam como progressistas ou ‘de esquerda’, e a consequente disseminação de desinformação manipuladora que regularmente distrai a atenção dos abusos bem documentados de Assad e seus aliados. […] Aqueles que não compartilham suas opiniões peremptórias são frequentemente (e falsamente) rotulados de “entusiastas da mudança de regime” ou idiotas úteis dos interesses políticos ocidentais. […] Todos os movimentos pró-democracia e pró-dignidade que vão contra os interesses do Estado russo ou chinês são regularmente retratados como produto da interferência ocidental: nenhum desses movimentos é visto como indígena, nenhum deles reflete décadas de luta nacional independente contra uma ditadura brutal (como na Síria); e nenhum deles representa verdadeiramente as aspirações das pessoas que exigem o direito de viver com dignidade em vez de opressão e abuso.
Na verdade, o que une essas chamadas correntes anti-imperialistas é a recusa de enfrentar os crimes do regime de Assad, ou mesmo de reconhecer que ocorreu uma revolta popular contra Assad, que foi brutalmente reprimida”. Os autores do texto terminam com estas palavras que deveriam fazer pensar até os mais tolos: “Aqueles de nós que se opuseram diretamente ao regime de Assad, muitas vezes pagando um preço muito alto, não o fizeram por causa de uma trama imperialista ocidental, mas porque décadas de abuso, brutalidade e corrupção foram e continuam sendo intoleráveis[10].
O que aconteceu com a Síria está acontecendo com a Ucrânia. É isso que preocupa os ativistas de esquerda ucranianos, que desde o início da invasão têm chamado o resto da esquerda do mundo a se afastar do “olhar centrado nos EUA”. Autor de uma notável “Carta à Esquerda Ocidental”[11], o pesquisador ucraniano Volodymyr Artiukh explica que, fora do mundo pós-soviético, a Esquerda não foi capaz de dimensionar as novas condições históricas marcadas pela estratégia russa, que nada tem a ver com os dispositivos da hegemonia americana e mais em geral ocidental, de soft power e de poder econômico: “Apesar do que muitos de vocês afirmam, a Rússia não está reagindo, adaptando-se ou fazendo concessões, ela recuperou sua capacidade de ação e é capaz de moldar o mundo ao seu redor […]. A Rússia tornou-se um agente autônomo, suas ações são determinadas por sua própria dinâmica política interna, e as consequências de suas ações são agora contrárias aos interesses ocidentais. A Rússia está moldando o mundo ao seu redor, impondo suas próprias regras, como os EUA fizeram, mas por outros meios”.
Artiukh diz que deveríamos parar de pensar como se a Rússia estivesse simplesmente respondendo à humilhação que lhe foi infligida após o colapso da União Soviética e entender que agora é o Ocidente e a Europa que estão em uma postura “reativa”. Ele acrescenta: “Portanto, as explicações centradas nos EUA estão desatualizadas. Eu li tudo o que foi escrito e dito à esquerda sobre a escalada do conflito do ano passado entre os EUA, Rússia e Ucrânia. A maior parte dessas análises estava terrivelmente errada, pior que aquelas dominantes. Sua capacidade preditiva era nula”.
De fato, o unilateralismo da denúncia atinge seu auge em um artigo de Tariq Ali na New Left Review, revista de referência da esquerda ocidental. Em 16 de fevereiro, oito dias antes da invasão, ele zomba dos rumores de um suposto ataque maciço da Rússia à Ucrânia e culpa exclusivamente os belicistas americanos, sem qualquer esforço para analisar o regime de Putin. Ele afirma que a Ucrânia, que seria apenas “Otanlândia”, não precisa de apoio, mas deve começar mostrando a Putin o “respeito” que ele merece, não hesitando em retomar as palavras de um almirante alemão. A esquerda ocidental deveria, portanto, se mobilizar contra a guerra americana, que é a principal ameaça, como fez contra as intervenções americanas na Síria: “Parar a guerra não é um partido político. Tem apoiadores conservadores, assim como muitos apoiadores da independência escocesa. Seu objetivo é deter as guerras dos EUA ou da OTAN, qualquer que seja o pretexto. Os políticos e traficantes de armas que apoiam essas guerras não o fazem para fortalecer a democracia, mas para servir aos interesses hegemônicos da maior potência imperial do mundo. Pare a guerra e muitos outros continuarão a tarefa de se opor a eles apesar das ameaças, calúnias ou bajulação”[12].
Este texto é um resumo do pior do discurso “antiguerra” da esquerda ocidental. É apenas a OTAN, nada mais que a OTAN, que visa o domínio mundial e busca a guerra para obter lucros e expandir seu espaço de influência. Como resultado, o comportamento de Putin é apenas um contra-efeito da OTAN, ele não tem existência própria, nem o seu regime. Foi esta cegueira que despertou a cólera do historiador Taras Bilous, ativista da organização ucraniana Movimento Social e editor da revista Commons. Quase nunca, explica ele, essa esquerda ocidental tão solerte em fazer valer as “necessidades de segurança” da potência nuclear russa, lembrou essas mesmas necessidades da Ucrânia, que desistiu de seu estoque nuclear em troca de uma garantia da inviolabilidade de suas fronteiras em 1994, um princípio que Putin quebrou em 2014[13].
Levar finalmente em conta o imperialismo russo e estudar de perto seus métodos e intenções específicas não é reverter a estupidez campista e fazer dele o único Inimigo, mas é certamente afirmar que qualquer análise que não o leve a sério se desqualifica a si mesmo.
Para a esquerda, esta cegueira é ainda mais culpável porque este imperialismo visa não apenas estender-se às suas margens, mas também desestabilizar os países onde a democracia liberal ainda vive, ainda que apenas na forma degradada que conhecemos. É um imperialismo militar, mas também um imperialismo eminentemente político: visa estender a todos os lugares uma concepção ditatorial e nacionalista do poder em que as liberdades civis e políticas não têm razão de existir. É por isso que modelo Putin tem tantos apoiadores entre a direita global e a extrema-direita. É porque existe uma estreita ligação entre o regime de terror interno e a política externa: como pode uma ditadura que persegue seus opositores, às vezes os assassina, e proíbe qualquer expressão livre da sociedade civil tolerar, especialmente em suas fronteiras imediatas, a existência de sociedades mais politicamente livres?
O apoio de Putin a Lukashenko, Tokayev e Kadyrov é perfeitamente consistente: o império no exterior e a ditadura no interior andam de mãos dadas. Mas sabemos que as ambições de Putin vão mais longe: qualquer obstáculo interno ou externo ao seu poder deve ser destruído. O esmagamento da revolução democrática síria por bombas e armas químicas foi um aviso para todos os povos que procuravam se libertar de seus tiranos, e talvez antes de tudo uma mensagem para o próprio povo russo. Se a linha de frente da ditadura começa na Rússia, todos os países próximos e distantes sabem agora o que os espera se nada impedir sua extensão.
Sejamos claros. O inimigo de Putin não é o capitalismo como um sistema de exploração, é a democracia, contra a qual ele pretende travar uma guerra impiedosa. O que o preocupa é o poder das massas na luta contra a corrupção econômica e política, ou seja, contra seu próprio poder. Estas massas mobilizadas, como vimos novamente em Belarus, veem na União Europeia um modelo político mais invejável do que as ditaduras predatórias que sofrem. Foi a associação entre a Ucrânia e a União Europeia que levou Putin a começar desmembrar a Ucrânia após a “revolução de fevereiro de 2014”.
Naturalmente, é compreensível que parte da chamada esquerda “radical” esteja bastante envergonhada de ver revoluções populares no mundo pós-soviético fazer da União Europeia uma esperança e um horizonte, pois ela critica com razão a natureza profundamente neoliberal e capitalista daquela Europa. Mas se estamos certos em criticar a “muito pouca democracia” da União Europeia, é em nome da exigência de autogoverno e, sobretudo, não para retomar a retórica de Putin que estas revoluções são golpes de Estado fomentados pela OTAN. Deve ser dito alto e claro: melhor para a causa da igualdade, democracia e liberdade, a insuficiente democracia do Ocidente do que as ditaduras bárbaras de Bashar, Putin e Lukashenko, modelos de todo o fascismo contemporâneo.
O Putinismo tem uma coerência ideológica que o coloca entre todas as ideologias neoconservadoras e todos os identitarianismos que estão atualmente em voga. Como escreveu Edwy Plenel, esta ideologia toma a forma de “promoção de uma Rússia eterna, baseada em sua identidade cristã e eslava, como uma alternativa à democracia moderna, que foi reduzida a um engano ocidental”[14]. Uma mistura de neonazismo, Panslavismo e Estalinismo, o Putinismo não tem nada, absolutamente nada, de progressista ou democrático. Pelo contrário, é um perigo mortal para o povo russo e para todos os outros. Daí a necessidade urgente de combatê-la sem qualquer espírito de fraqueza.
Ninguém pode negar de boa fé que o dinheiro pago pelos europeus pelo gás russo tem sido e continua sendo usado para financiar a política total de guerra e terror de Putin. A causa da paz e a causa da mudança climática ligadas entre si, como dezenas de milhares de manifestantes proclamaram em voz alta nas ruas da França no sábado 12 de março: parar de comprar gás russo é tanto importante para fechar a torneira que alimenta a máfia oligárquica de Putin, como para iniciar a mudança radical exigida por qualquer alternativa ecológica genuína. No mesmo dia, com toda a solenidade exigida pelo local, os líderes dos 27 países da União Europeia se reuniram em uma cúpula em Versalhes para acordar um objetivo de reduzir a dependência da Europa em relação ao combustível russo (gás, petróleo e carvão). Oficialmente, o objetivo é assegurar o abastecimento energético da União Europeia e assim avançar em direção ao que é pomposamente chamado de “soberania energética”. No final da reunião, os líderes anunciaram o fim da dependência europeia dentro de cinco anos. Mas qual é o valor desta declaração quando comparada com a continuidade da política da União Europeia sobre esta questão?[15]
Em 1951, 70 anos atrás, nasceu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), reunindo seis países europeus, o que foi apresentado como um primeiro passo na “marcha em direção aos Estados Unidos da Europa”. Foi somente em 2007 que a energia foi reconhecida como uma “competência compartilhada”. Na linguagem codificada da União Europeia, isso não significa que faça parte de uma verdadeira comunhão de interesses que vai além dos interesses dos Estados, mas que os Estados membros continuam soberanos sobre os aspectos essenciais enquanto a União não tiver legislado: seu mix energético, a exploração de seus recursos e seus suprimentos, sem que haja qualquer debate entre os próprios Estados. Assim, somente a Alemanha decidiu em 2011 abandonar a energia nuclear, embora esta decisão tivesse um impacto direto sobre a quantidade de energia produzida na Europa. E foi também sozinha que ela decidiu imediatamente juntar-se ao gasoduto Nord Stream 2 construído pela Gazprom. Em 2000, um primeiro Livro Verde da CE alertou para os riscos colocados pelo fato de 40% das importações de gás serem provenientes da Rússia.
Em 2006, um segundo Livro Verde repetiu o aviso quando a Rússia cortou o gás para a Ucrânia. Em 2009, a Rússia acusa a Ucrânia de não pagar por seu gás e o corta novamente. Em 2014, as sanções da União Europeia após a anexação ilegal da Crimeia excluem o gás russo de seu campo. Em 2015, a Gazprom juntou forças com a Shell, a Eon da Alemanha e a OMV da Áustria para lançar a construção do Nord Stream 2, à qual o grupo francês Engie se juntou um pouco mais tarde. Hoje, em 2022, o grau de dependência é exatamente o mesmo de 2000, ou seja, 40%. Em 2000, a Comissão Europeia propôs obrigar os Estados-Membros a acumular estoques estratégicos de gás. 22 anos mais tarde, ela está fazendo exatamente a mesma proposta. A mesma abordagem, portanto, está sendo teimosamente perseguida.
É inútil deplorar um “defeito estrutural”, como fez Delors em 2015: o que está em questão não é mais um “defeito estrutural” que poderia ser corrigido por uma mudança de estrutura do que um simples “déficit” que poderia ser corrigido por uma resposta proativa. Este é um limite inerente ao processo de construção da União Europeia, que desde o início sacrificou a lógica do interestadualismo e do intergovernamentalismo para melhor combiná-lo com a prática de lobby intenso das grandes empresas com as instituições europeias. Há vários anos, com notável consistência, grandes empresas russas têm sistematicamente aproveitado as possibilidades abertas por tais práticas, comprando os serviços de antigos líderes políticos europeus (incluindo Renzi[16], Fillon[17], e Schröder[18] que ainda não renunciou ao seu envolvimento em empresas russas e na Gazprom).
A Shell se comprometeu recentemente a deixar de comprar petróleo e gás russo, mas não diz se este compromisso também se aplica a encomendas já feitas no passado, uma omissão significativa, dado que a maioria dos contratos de compra de gás tem duração de 10-15 anos. O grupo húngaro MVM assinou um contrato com a Gazprom, em setembro passado, que vai até 2036. O grupo francês Engie se recusa a responder à pergunta, embora 20% de suas vendas globais de gás sejam provenientes da Rússia e o alemão Eon diga que compra no mercado atacadista europeu onde não há certificação de origem, que indique de onde vem o gás. Na cúpula de Versalhes, ninguém tinha nada a dizer sobre todos esses contratos e compromissos privados de gás assumidos por empresas privadas europeias na Rússia: foi “impensado total”[19], a menos que fosse um desejo de encobrir o segredo comercial, o que está muito dentro do espírito de instituições que se preocupam de garantir a supremacia do direito privado.
Isto foi recentemente demonstrado pela proposta da Comissão Europeia sobre “taxonomia verde”, apresentada aos Estados membros pouco antes da meia-noite de 31 de dezembro de 2021, que revela a realidade desta chamada “soberania europeia”, sempre invocada em frases grandiloquentes. Mais precisamente, trata-se do que é chamado de “soberania energética”: o objetivo é de fato obter que a energia nuclear e o gás, duas energias introduzidas no último momento no projeto da Comissão, sejam classificadas como “energias verdes”. Dois países têm trabalhado ativamente para esta reclassificação das duas energias: a França, um grande produtor de energia nuclear que pretende permanecer assim nas próximas décadas e que tem feito um intenso lobby para esta classificação, e a Alemanha, que quer aumentar sua produção de gás para reduzir sua dependência da Rússia. A França, que é o único país da UE sem nenhuma turbina eólica offshore em operação, vê isso como uma oportunidade de ouro para vender a energia nuclear como a energia “mais descarbonizada e soberana”, nas palavras de Macron. Os riscos também são altos para a Alemanha, que em 2021 terá 42% de energia renovável e 27% de carvão, fazendo do carvão a principal fonte de energia não renovável[20].
Quando você considera que o novo governo alemão estabeleceu para si mesmo o objetivo de eliminar o carvão até 2030, você pode ver o desafio à frente. Entre os cenários examinados pela União Europeia, há um que prevê 100% de energia renovável em 2040. A escolha da Comissão Europeia foi virar-lhe as costas desde o início. Estamos tratando de pura e simples negociação interestatal que foi endossada pela Comissão Europeia, que supostamente é a guardiã do “interesse geral” da Europa: a França cede à Alemanha na questão do gás, em troca a Alemanha cede à França na questão da energia nuclear. Portanto, são “interesses nacionais”, no sentido mais restrito e mesquinho do termo, que foram consagrados na “taxonomia verde”. Na realidade, a “soberania europeia” em matéria energética é um acordo sórdido que equivale a sacrificar a ecologia no altar dos piores interesses energéticos: as consequências a longo prazo do aterramento de resíduos nucleares por mais de um século são simplesmente ignoradas, e as emissões de gases de efeito estufa geradas pela extração de gás fóssil são tratadas como insignificantes.
Qual é a razão de um lobby tão intenso por parte da França e da Alemanha? O Comissário Europeu para o Mercado Interno, Thierry Breton, deu a palavra final em uma entrevista ao Journal du dimanche, em 9 de janeiro de 2022: ele declarou que a nova geração de usinas nucleares europeias exigirá um investimento de 500 bilhões de euros até 2050 e que é crucial incluir a energia nuclear na taxonomia “para permitir que a indústria atraia todo o capital de que necessitará”. O objetivo é perfeitamente claro: não se trata de proibir investimentos em atividades econômicas não incluídas na taxonomia, mas de dirigir melhor os fluxos de capital, atraindo uma redução no custo do capital.
A decisão da Comissão Europeia está assim inteiramente ordenada ao imperativo da concorrência entre as capitais. Ela destaca a nova forma que a soberania estatal agora assume: sua função é criar as condições mais favoráveis para a circulação transnacional de capital, organizando e direcionando os fluxos de capital em seu benefício. Para realizar esta tarefa, o Estado é mais do que nunca obrigado a exercer sua soberania. A União Europeia é um exemplo não de uma verdadeira soberania supranacional, mas de uma construção multinível (Comissão, Conselho de Chefes de Estado, Conselho de Ministros, Parlamento, etc.), onde a prática de lobby é um elemento chave. O lobbying do governo francês assume oportunamente o lugar do lobby pró-nuclear realizado pela EDF e pela AREVA, e de certa forma lhe dá “legitimidade”, uma vez que funciona a partir das instituições da União Europeia. A esta luz, a União Europeia aparece pelo que é: o campo de jogo institucional de um lobby gigantesco de vários níveis que opera como um mecanismo auto-suficiente e torna supérflua qualquer deliberação coletiva real. Este é o processo de tomada de decisões que tem a força da lei dentro da UE.
Daí deriva a lógica dos acordos interestatais de geometria variável que reconfiguram a soberania estatal de uma forma sem precedentes, sem aboli-la. Deste ponto de vista, a estratégia adotada por Macron na véspera da presidência francesa é muito reveladora de sua concepção de “soberania europeia”. Primeiro, ele chegou a um acordo com Orban durante sua visita a Budapeste em 13 de dezembro de 2021, mesmo antes que a nova taxonomia fosse proposta pela Comissão Europeia, mas a fim de dar mais peso à pressão exercida pela França. O acordo inclui política de migração, defesa europeia e reconhecimento da energia nuclear pela UE como “energia verde”. Em uma segunda etapa, o presidente francês procurou dissociar a frente antinuclear germano-austríaca por meio do acordo sobre a nova taxonomia, que foi oficializado pouco tempo depois. Assim, a França garantiu o apoio da Alemanha a esta espinhosa questão depois da Hungria. A nova postura adotada por Orban e Macron, esses “adversários políticos” que se tornaram “parceiros europeus” da noite para o dia, fala muito sobre a lógica dos interesses do Estado.
A convergência franco-húngara sobre a política migratória nas fronteiras da União Europeia desempenha aqui um papel fundamental, pois se trata de “tornar o retorno aos países de origem mais eficiente para aqueles que não são elegíveis para asilo”, ou seja, intensificar e acelerar as deportações. Podemos ver até que ponto o confronto entre “progressistas” e “nacionalistas”, entre virtuosos campeões do “Estado de direito” e defensores da “democracia iliberal”, não é uma alternativa real, mas uma encenação e dramatização de desentendimentos muito reais entre os poderes estatais nacionais. Quanto às diferenças muito reais entre a França e a Alemanha, elas não impediram de forma alguma que as duas potências chegassem a um acordo sobre a extensão do selo de “energia verde”.
Em 2 de fevereiro deste ano, a Comissão Europeia finalmente publicou seu “ato delegado” (o equivalente a um decreto) sobre a taxonomia verde na qual o gás e o nuclear são reconhecidos como “energias de transição”[21]. Não é surpreendente que a energia nuclear tenha surgido até agora como o vencedor do jogo duplo político da França com a Hungria e a Alemanha. É precisamente nesta nova forma mistificadora, a de uma chamada “soberania europeia” ou “poder europeu”, que a soberania do Estado ainda é exercida dentro da União Europeia. É com esta lógica que o ecologismo neoliberal está muito feliz em aceitar, que devemos nos afastar de uma vez por todas.
A extrema-direita e até mesmo parte da direita manifestaram simpatia por “regimes fortes”, modelos daquela “autoridade estatal” que é seu verdadeiro DNA. Logicamente, a esquerda radical não deveria ter nada a ver com esta retórica de “poder forte”, nem com os argumentos anestésicos que enfatizam o “contexto” e a “responsabilidade compartilhada”. A esses respeito, ala deve fazer toda clareza sobre seus próprios fundamentos e princípios. Um deles é o direito incondicional à autodeterminação dos povos. Como poderia ela afirmar que está fazendo da democracia plena seu objetivo se ela falhar exatamente neste aspecto?
Portanto, aqui nenhuma desculpa ou justificativa complexa deve impedir o apoio à resistência armada ucraniana, assim como nenhuma desculpa ou justificativa complexa deveria ter deixado a revolta democrática síria diante da barbárie a seu cruel destino.
Mais uma vez, “o pacifismo não é uma opção”. Mas tampouco o é de fortalecer a OTAN e a União Europeia como elas são. Eles só podem constituir proteções temporárias, mas perigosas, para países que querem escapar da vontade imperial de seu grande vizinho, como ainda hoje podemos ver. A questão estratégica colocada hoje é como evitar o confronto cada vez mais direto entre poderes estatais com uma vocação hegemônica global, cujos resultados dramáticos são o aumento dos orçamentos militares, a crescente sofisticação dos meios de força e a multiplicação dos espaços e formas de conflito.
Este confronto global entre poderes estatais tem efeitos diretos no aumento da coação imposta às populações, particularmente de natureza policial, em outras palavras, acelera a “desdemocratização” já largamente iniciada pela dominação do neoliberalismo.
Em vez de hesitar em enviar armas defensivas ante um agressor que conhece apenas a violência mais bárbara, a esquerda radical deve procurar influenciar o equilíbrio de poder na guerra. Como isso pode ser feito? Antes de mais nada, ao não falar no lugar de outros, ao não negar o direito dos ucranianos, como de outros povos que estão sob pressão e ameaçados por Putin, de se defenderem por qualquer meio que lhes pareça adequado, mesmo que não goste. A emergência é a autodefesa de um povo sob ataque. Em segundo lugar, demonstrando solidariedade com a esquerda radical ucraniana que, como vimos, exige uma compreensão da natureza do regime de Putin a fim de se ter a dimensão real de sua política externa.
A guerra não deve ser travada contra “os russos”, mas contra um sistema que os oprime. É por isso que devemos estar particularmente preocupados com o possível ressurgimento de uma extrema-direita nacionalista ucraniana, estimulada pela guerra, que é apenas um espelho do fascismo de Putin. Como sabemos muito bem, o nacionalismo alimenta o nacionalismo.
A esquerda radical ocidental deveria ser a primeira a retransmitir todas as vozes dissidentes que foram corajosamente expressas na Rússia desde o início da invasão. Um exemplo é a notável carta assinada por mais de 10.000 professores, estudantes e graduados da Universidade Lomonosov de Moscou, que “condena categoricamente a guerra que nosso país desencadeou na Ucrânia“. A carta acrescentou: “A ação em nome da Federação Russa, que seus líderes chamam de ‘operação militar especial’, é a guerra, e nesta situação não há espaço para eufemismos ou desculpas. A guerra é violência, crueldade, morte, perda de entes queridos, impotência e medo que não pode ser justificada por nenhum propósito.”
Também podemos pensar na petição de 664 pesquisadores russos que, no dia seguinte à invasão da Ucrânia, denunciaram a responsabilidade total da Rússia pelo início da guerra e acrescentaram: “Entendemos a escolha europeia de nossos vizinhos. Estamos convencidos de que todos os problemas entre nossos dois países podem ser resolvidos de forma pacífica[22].
O manifesto das feministas russas contra a guerra associa a agressão militar à promoção por Putin de “valores tradicionais” em oposição à degeneração ocidental que contaminaria a “alma russa”. “Qualquer pessoa com uma mente crítica entende que estes ‘valores tradicionais’ incluem desigualdade de gênero, exploração das mulheres e repressão estatal contra aqueles cujo estilo de vida, identidade e ações não estão de acordo com normas patriarcais restritas. A ocupação de um Estado vizinho é justificada pelo desejo de promover tais normas distorcidas e buscar a ‘libertação’ demagógica; esta é outra razão pela qual as feministas em toda a Rússia devem se opor a esta guerra com todas as suas forças”. O manifesto feminista chama “a formar a Resistência Feminista Anti-Guerra e unir forças para opor-se ativamente à guerra e ao governo que a iniciou”[23].
Mas há outra tarefa internacionalista urgente. Consiste em denunciar a conivência próxima do capitalismo ocidental, particularmente a dos Estados Unidos e da União Europeia, com a corrupção das “elites” russas. É esta conivência que tem permitido que a “máquina de pilhagem” funcione desde os anos 90. Este capitalismo predatório, cujas primeiras vítimas foram e ainda são os trabalhadores russos, desfrutou de todas as facilidades de lavagem e especulação nos circuitos financeiros, imobiliários, luxo, esporte etc., oferecidas pelos países que hoje se ofendem com a ultra riqueza dos oligarcas russos adquiridos através da corrupção e total submissão a Putin.
É o sistema capitalista financeiro mundial, com todas as suas opacidades, que contribuiu para a criação do monstro do estado de Putin, e é contra ambos que devemos unir todos os democratas radicais do Ocidente e do Oriente. Por quanto tempo os soldados russos aceitarão ser mortos para defender um Estado que é tão ladrão e corrupto? É a mesma complacência egoísta dos líderes políticos europeus que forneceu a Putin os meios para fortalecer e modernizar seu exército. Aprendemos com espanto que a França, Alemanha, Itália, Áustria, Bulgária, República Tcheca, Croácia, Finlândia, Eslováquia e Espanha entregaram 346 milhões de euros de equipamentos militares à Rússia entre 2015 e 2020, ao mesmo tempo em que arrasavam as cidades sírias.
Finalmente, esta esquerda radical não pode se afastar da imensa tarefa da “arquitetura política” da Europa e do mundo. Como podemos parar a dinâmica mortal dos poderes soberanos que põe em questão as regras e equilíbrios muito frágeis do final do século 20? Não só não se deve afastar, como também deve fazer disso uma de suas prioridades, pois a organização política do mundo determina em grande parte todas as outras. Pensar que essa dinâmica pode ser evitada com uma concepção absolutista e obsoleta da soberania nacional e um “não-alinhamento” não é apenas um erro político e moral. É um erro sobre o estado do mundo e sobre a forma de evitar as piores calamidades. É compreensível que um país sob ataque se aproveite disso, mas não é compreensível que um país obrigado a demonstrar solidariedade a utilize como um pretexto para um abandono covarde.
A questão que está sendo colocada é a da refundação radical da Europa em bases democráticas, rompendo com a lógica da soberania do Estado. A lógica da construção da União Europeia deve ser invertida partindo de baixo, ou seja, a partir dos próprios cidadãos europeus e de seus grupos, associações e organizações. Isto significa que a alternativa não deve ser procurada em uma “renovação” das instituições da União Europeia ou um fortalecimento da federalização em direção à criação de um estado federal.
É necessário começar questionando a distribuição de poderes entre a Comissão Europeia, o Conselho e o Parlamento. Um primeiro passo nessa direção seria remover o monopólio de iniciativa legislativa da Comissão Europeia. Um segundo passo seria compartilhar este poder de iniciativa entre os parlamentares europeus e os cidadãos para que estes últimos possam participar diretamente de seu exercício. Isso ampliaria a esfera de deliberação que está no coração de qualquer democracia verdadeira digna desse nome, em vez de ser curto-circuitada por práticas de lobby.
Mas estes são apenas os primeiros passos para um objetivo que deve ser identificado como o de uma Europa federativa e não de uma Europa federal. Pode-se perguntar qual é o significado desta distinção pouco conhecida entre federal e federativa. Na verdade, ela tem sido um pouco obscurecida e obscurecida por doutrinas políticas que retomaram a ideia de Montesquieu de uma “república federativa”, a fim de melhor dissociá-la da do Estado-nação.
Na realidade, esta ideia ainda dá lugar de destaque à soberania dos Estados federados de tal forma que se justificaria falar de um federalismo interestadual ao invés de uma verdadeira lógica federativa. É este tipo de federalismo que os constitucionalistas americanos levaram a efeito na Filadélfia em 1787 e é este tipo de federalismo que prevaleceu de forma intensificada com a criação da Confederação Canadense em 1867. Já o federativo ao qual nos referimos refere-se ao “princípio federativo” de Proudhon e não ao federalismo estadual, intra-estatal ou interestadual. Isso implica que toda a construção começa de baixo, dos municípios e das unidades políticas básicas. Uma Europa federativa seria, portanto, uma Europa de municípios na qual estes últimos seriam livres para se filiarem uns aos outros independentemente das fronteiras nacionais, de acordo com a lógica de uma federação transcomunal que ultrapassaria os limites da própria Europa. Em resumo, uma Europa federal, que procede de um comunalismo transnacional, é o oposto completo de uma Europa “poderosa” ou “soberana”.
Nem a OTAN liderada pela América do Norte nem a Europa “grande potência” podem servir como um escudo universal. Ambas não são a solução, mas parte do problema. Pensar assim é permanecer dentro da lógica do confronto e da militarização dos “blocos”. Sabemos que nem uma nem outra é garantia de respeito ao direito internacional: Iraque, Somália, Líbia e, naturalmente, a violação permanente desta lei pela ocupação dos Territórios Ocupados em Palestina são suficientes para mostrar isto. Além disso, há muito se observa que o modo de deliberação e de tomada de decisões da ONU, graças ao direito de veto no Conselho de Segurança, reduz a organização das nações à impotência total assim que os interesses de um ou outro dos membros permanentes estão em jogo.
Não haverá paz ou justiça internacional, nem uma verdadeira “transição ecológica” baseada na cooperação global, enquanto não for inventada uma instituição completamente diferente para lidar com as relações e conflitos entre Estados. Mas mais fundamentalmente, podemos adivinhar que o verdadeiro problema está no patrimônio histórico que fez do Estado soberano a forma universal de organização das sociedades. É em nome desta aspiração de formar um Estado soberano protegido de seus inimigos que a Ucrânia se defende, mas é igualmente em nome deste mesmo princípio que a Rússia afirma estar se defendendo ao invadir seu vizinho.
O potencial destrutivo do quase monopólio da “forma Estado” nas relações internacionais, para não mencionar o direito de cada uma dessas entidades de perseguir os seus súditos, deve levar a opor-lhes a exigência democrática de sociedades que se autogovernam, de baixo para cima, e que tecem entre elas múltiplos elos além da mediação do Estado nacional. Isto mostra, como dissemos no início, que não haverá solução “internacional” para as crises que afetam o mundo sem uma solução democrática no nível de cada sociedade. A guerra da Rússia é a prova mais trágica disso. E é por isso que somente o desenvolvimento da solidariedade e a transnacionalidade das lutas emancipatórias podem oferecer alguma esperança. Não será suficiente reviver as velhas formas de internacionalismo dos séculos XIX e XX, que se desfizeram na realidade dos Estados-nação e de suas rivalidades.
Inicialmente baseado na ideia saint-simoniana e depois marxiana de que o proletariado mundial se uniria naturalmente à medida que o “mercado universal” se expandisse até poder constituir uma sociedade mundial liberta tanto do capitalismo quanto dos estados nacionais, o internacionalismo socialista foi gradualmente superado e absorvido pelos quadros políticos, simbólicos e culturais desses mesmos estados nacionais. A última tentativa de salvar este internacionalismo do estalinismo e de seu “socialismo em um país”, ou seja, o projeto de Trotsky com a Quarta Internacional, chegou agora ao esgotamento total.
Qualquer tentativa de reavivar a ideia de uma liderança centralizada da luta está condenada ao fracasso. A grande tarefa da próxima geração será a de inventar uma nova cosmopolítica baseada na democratização radical das sociedades.
[1] Hegel, Principes de la philosophie du droit et science de l’Etat en abrégé, remarque au § 324, citada e traduzida ao francês por Jean Hyppolite em sua Introduction à la philosophie de l’histoire de Hegel.
[2] Sabine Dullin, interview dans Le Monde du 16/03/22.
[3] Anne Applebaum, Famine rouge, Grasset, 2019, p. 31-37.
[4] Ibid, p.105.
[5] Cf. Karl Marx et Frédéric Engels, La Russie, Tradução e prafácio de Roger Dangeville. (1974), Paris : Union générale d’Édition, collection 10/18, 1974, p.231-232. Disponível Online na: "Bibliothèque des classiques".
[6] Nota do editor. Desde a data da escrita do artigo, o valor do rublo em relação ao dólar recuperou-se a níveis semelhantes ao de antes da Guerra e mesmo mais mais alto, o que, segundo especialistas, decorre de vários fatores : interrupção de importações, mas não das exportações de recursos naturais, o que favorece o estoque em moeda forte ; aumento da taxa de juros pelo BCR e maior controle de capitais ; e declaração da Rússia em lastrear o rublo com suas reservas de ouro, à taxa de 1g = 5.000 rublos.
[7] Animado por Cormelius Castoriadis e Claude Lefort (NdT).
[8] Boaventura de Sousa Santos, « Las claves de una catástrofe anunciada, El lamentable papel de Europa en la guerra Rusia – Ucrania y las lágrimas que desató », Pagina 12, 10 mars 2022.
[9] Leila Al-Shami, "The ‘anti-imperialism’ of idiots", (version en français disponível aqui).
[10] L’"anti-impérialisme" des imbéciles: faire disparaître le peuple syrien par la désinformation, Site à l’encontre.
[11] Volodymyr Artiukh, "Les explications américano-centrées ne suffisent plus. Lettre à la gauche occidentale", 6 mars 2022. Ce texte est initialement paru dans la revue ukrainienne Commons, et a été repris par Contretemps.
[12] Tariq Ali, "News from Natoland".
[13] Taras Bilous, Ukraine. "Une lettre de Kiev à une gauche occidentale", A l’encontre.
[14] Edwy Plenel, Mediapart.
[15] Estamos repetindo aqui as indicações muito precisas fornecidas por Marie Viennot em “La Bulle économique” transmitido na France Culture em 12/03/2012.
[16] Matteo Renzi foi Primeiro Ministro na Itália (pela centro-esquerda).
[17] François Fillon foi Primeiro Ministro na França (pela centro-direita).
[18] Gherard Schoroeder foi Primeiro MInistro na Alemanha (pelo partido social-democrata, o mesmo que está governando atualmente em coalizão com outros governos).
[19] Nas palavras de Marie Viennot, op. cit.
[20] Deve-se notar que o tipo de carvão está na superfície e que sua exploração requer minas a céu aberto cuja escavação ameaça a existência de aldeias inteiras.
[21] Virginie Malingre, “Pour la Commission européenne, le gaz et le nucléaire peuvent accompagner la transition écologique”, in Le Monde, 2 de fevereiro de 2022.
[22] Apelo de 664 pesquisadores e cientistas russos: “Exigimos o fim imediato de todos os atos de guerra contra a Ucrânia”, publicado pelo Le Monde, 25 de fevereiro de 2022 disponível aqui.
[23] Manifesto das feministas russas contra a guerra (27 de fevereiro de 2022). Disponível aqui.