"Se alguém não sabe nada sobre o catolicismo e se depara com as colunas do New York Times, encontrará uma visão muito excêntrica e idiossincrática do pontificado de Francisco e da Igreja que ele lidera como bispo de Roma."
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix International, 18-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hoje em dia, os intelectuais católicos abrem as páginas de opinião do New York Times com o mesmo pavor que sentiam antigamente pelos editoriais ameaçadores e anônimos do jornal oficial do Vaticano, L’Osservatore Romano.
Exceto pelo fato de que não estamos falando de condenações emanadas pelo papa. Em vez disso, as condenações encontradas no farol mundial da imprensa liberal são muitas vezes lançadas contra o papa.
O último exemplo foi a coluna do dia 12 de outubro de Ross Douthat, intitulada “Como os católicos se tornaram prisioneiros do Vaticano II”. Publicado por ocasião do 60º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II por João XXIII (1962-65), ela apresentava a usual narrativa post hoc, propter hoc sobre o Vaticano II, típica daqueles que identificam o catolicismo com as trajetórias das sociedades ocidentais pós-industriais e secularizadas, e que ignoram completamente a Igreja global.
Sendo fiel a seu estilo pessoal, Douthat também não fez nenhum esforço para fazer uma apresentação justa da teologia do Concílio aos leitores de um dos jornais mais importantes do mundo. Essa coluna em particular suscitou respostas muito eficazes nas mídias sociais, especialmente uma forte refutação no Twitter por parte de David Gibson.
Mas uma coluna publicada nas versões impressa e online do New York Times evidentemente carrega algum tipo de infalibilidade jornalística, que é ainda menos sujeita a escrutínio do que a infalibilidade papal. E o público alcançado é infinitamente maior do que qualquer “fio” do Twitter ou post de um blog.
Certa vez, debati com Ross Douthat em público. Foi em 2018 na Fordham University, em um evento muito interessante seguido de um cordial jantar juntos. Tentar conversar sobre teologia com ele foi frustrante, porque sua verdadeira especialidade é a política, a cultura e a sociedade estadunidenses. E esse é o filtro pelo qual ele interpreta tudo o que acontece na Igreja e no Vaticano.
Mas ele também comete uma boa quantidade de atos de negligência intelectual. Seu livro sobre o Papa Francisco (ou, melhor, contra o papa) listou fontes que não seriam aceitáveis em um trabalho de conclusão de curso de graduação. Uma das coisas genuinamente engraçadas foi ver como Douthat caracterizou o cardeal Walter Kasper como um liberal perigoso que o Papa Francisco estava usando para se desviar da doutrina ortodoxa e separar a Igreja por meio das assembleias sinodais de 2014-2015 e da exortação pós-sinodal Amoris laetitia.
Sugiro que Douthat pergunte aos católicos alemães se Kasper é um liberal perigoso, especialmente à luz das críticas repetidamente candentes do cardeal ao “Caminho Sinodal” alemão. Mas a Alemanha está um pouco longe do corredor Connecticut-Nova York-Washington, como todos sabemos.
Um dos momentos mais memoráveis dos pronunciamentos de Douthat sobre a Igreja Católica foi durante a entrevista na televisão que ele concedeu ao jornalista americano Charlie Rose em 2009. Quando Rose lhe perguntou sobre a sua relação com o papado, Douthat respondeu que os católicos devem manter uma certa deferência em relação ao papa.
Aqueles eram os tempos de Bento XVI, é claro. Douthat evidentemente se esqueceu de tal deferência quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito ao papado em 2103. De fato, durante esses últimos nove anos e meio, ele acusou Francisco de uma série de heresias teológicas e crimes canônicos.
Ao fazer isso, ele foi muito além das críticas que os católicos liberais faziam contra João Paulo II e Bento XVI, papas que estavam mais próximos de suas visões teopolíticas. Mas não culpemos João Paulo II e Bento XVI por isso. Os elogios de Douthat a eles não devem ser levados mais a sério do que suas lengalengas contra Francisco.
Aqui estão apenas alguns exemplos dos títulos de suas colunas de opinião no New York Times: “O complô para mudar o catolicismo” (17 de outubro de 2015), “Esperem a Inquisição” (20 de setembro de 2017), “Papa Francisco é amado. Seu papado pode ser um desastre” (16 de março de 2018), “O que o Papa Francisco sabia?” (28 de agosto de 2018), “O lento caminho rumo ao cisma católico” (14 de setembro de 2019).
As colunas de Douthat não são as únicas que retrataram uma certa imagem do Papa Francisco e da Igreja Católica para os leitores do Times. Há também os artigos de alguns companheiros de viagem de Ross Douthat na direita católica neotradicionalista nos Estados Unidos.
Por exemplo, há Michael Brendan Dougherty e Julia Yost que publicaram: “O papa fez um contorcionismo político indevido em uma mensagem espiritual” (17 de setembro de 2015), “O Papa Francisco está dilacerando a Igreja Católica” (12 de agosto de 2021) e “O clube mais quente de Nova York é a Igreja Católica” (9 de agosto de 2022). É claro que ser publicado no Times funciona como uma ordenação presbiteral para intelectuais na praça pública: isso eleva o perfil, confere autoridade e abre outras portas.
O próprio Papa Francisco foi publicado no Times em 26 de novembro de 2020. Mas isso não mudou a substância do que eu acredito ser um desserviço feito aos leitores – católicos ou não, cristãos ou não, religiosos e seculares – pelos artigos da página de opinião sobre a Igreja. Os intelectuais católicos convencionais não foram convidados frequentes dessa página de opinião nos últimos anos, e a falta de equilíbrio é evidente (Garry Wills está em uma categoria própria, mas isso evidencia ainda mais a forma como o Times cobre o catolicismo).
Não sei se isso também está acontecendo em outras denominações cristãs e tradições religiosas, mas é claro que, se alguém não sabe nada sobre o catolicismo e se depara com essas colunas do New York Times, encontrará uma visão muito excêntrica e idiossincrática do pontificado de Francisco e da Igreja que ele lidera como bispo de Roma.
Agora, devemos distinguir entre a cobertura do Times sobre religião, que é majoritariamente abrangente e justa, e sua página de opinião. De fato, a maioria de seus artigos de opinião sobre o catolicismo ilustram algumas coisas importantes.
A primeira observação é que a cobertura jornalística da Igreja Católica mudou de uma forma mais profunda do que o mero fato de o atual papa dar entrevistas frequentes à mídia (na maioria das vezes, à mídia secular). O jornalismo convencional, com sua audiência cada vez menor, é mais influenciado por agendas políticas e pelo dinheiro em nossas democracias polarizadas. E a Igreja é mais influenciada pelo jornalismo, mas não tem mais controle sobre ele.
Também já se foi a época em que os repórteres e colunistas de religião da grande mídia eram intelectuais com quem se podia discutir – e ler em suas colunas –, os grandes teólogos e filósofos. Isso tornou o catolicismo inteligível além dos parâmetros muito estreitos da política. Nos Estados Unidos, lembramo-nos de Peter Steinfels, do Times, e de Kenneth Woodward, da Newsweek, enquanto na Itália havia Luigi Accattoli, que escrevia para o Corriere della Sera. Agora, estamos em uma Igreja mais global, mas também mais paroquial e míope ao mesmo tempo.
A segunda observação é a desteologização dos debates sobre religião. Nos Estados Unidos, especialmente, intelectuais e políticos públicos católicos, assim como o mundo empresarial e os círculos filantrópicos, são cada vez mais representados por católicos neotradicionalistas com uma visão marcadamente negativa ou zombadora do Concílio Vaticano II.
Isso geralmente se deve a um conhecimento ínfimo do significado do Concílio teologicamente: Escritura, liturgia, ecumenismo, liberdade religiosa, diálogo inter-religioso e atividade missionária. O conceito teológico de “tradição católica” como uma tradição viva tornou-se subserviente a um conceito político de tradição como algo a ser pego de volta do partido do outro lado do espectro político.
Os teólogos (como eu) também são culpados, porque não conseguimos nos engajar com essas vozes, sendo prisioneiros de um ambiente acadêmico em que a diversidade muitas vezes se tornou a missão. Os paradoxos da ênfase dos liberais na diversidade – uma ideia de diversidade amplamente desteologizada e afim ao mercado – ajudou a distorcer a visão do Times sobre o catolicismo, que, então, ecoa a opção preferencial pelo exótico que se encontra atualmente na academia.
Graças a esse apelo à “diversidade” ideológica, vozes anti-Vaticano II e católicas antiliberais ganharam acesso à grande mídia liberal. Ironicamente, elas encontraram no New York Times o equivalente liberal estadunidense do L’Osservatore Romano – uma plataforma que é negada àqueles que são identificados como “católicos do Vaticano II” liberais convencionais.
A observação final é que essa imagem de uma Igreja em desordem, com um papa “liberal” sob ataque de neotradicionalistas, se encaixa em uma certa imagem estabelecida do catolicismo que o New York Times tem mantido há muito tempo. Nesses últimos 20 anos, a tragédia da crise dos abusos sexuais reforçou certos estereótipos de uma Igreja intolerante, das Cruzadas, da Inquisição e de Pio XII, que é retratado como lacaio de Hitler.
As opiniões contínuas que são expressadas na bíblia diária do liberalismo estadunidense por católicos que atacam o papa são perversamente tranquilizadoras para um certo tipo de leitor do Times. Elas servem menos como interpretações do catolicismo do que como espécimes. É como olhar pelo buraco da fechadura e ver esse mundo esquisito do catolicismo competindo consigo mesmo, onde fiéis devotos tentam derrubar o papa como se fossem estudantes de uma disciplina de pós-graduação tentando impressionar o professor. Existem maneiras católicas de os católicos discordarem do papa em público. Mas isso obviamente não é algo que se ensina nas universidades da Ivy League.
Essa abordagem ao Papa Francisco e ao catolicismo ecoa aquilo que Zena Hitz escreveu sobre uma certa cultura acadêmica em seu recente livro “Lost in Thought”. Ela a descreve como um esporte sangrento, uma batalha de ideias interpretada como uma competição de gladiadores em que a celebridade é a moeda do sucesso.
Não é de se admirar que esse tipo de católicos, meus irmãos e irmãs na fé, tenham tanto medo de Francisco e da moeda com a qual a Igreja sob a sua orientação está tão claramente negociando. Ela se chama Evangelho.