27 Setembro 2022
"A 'religião do fogo' devastou e destruiu centenas de igrejas, e justamente Kirill anunciou o novo programa também para a restauração dos edifícios que desmoronaram sob as bombas que ele mesmo defendeu e sustentou com a oração", escreve Stefano Caprio, professor de história e cultura russa no Pontifício Instituto Oriental de Roma desde 2007, em artigo publicado por Asia News, 24-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com a mobilização para o serviço militar de 21 de setembro, sete meses após a invasão da Ucrânia, a Rússia abandonou a hipocrisia da "operação militar especial" para se lançar na última e desesperada campanha de guerra, depois de perder em poucas semanas a maior parte dos territórios conquistados nos meses anteriores. Os referendos farsa nas partes controladas pelos russos das terras ucranianas permitirão anunciar a "defesa do território nacional" em vez da grotesca "desnazificação" das províncias em disputa.
Seria mais apropriado chamar todo caso bélico de "cruzada", dado o caráter espiritual e "metafísico" atribuído a todos os esforços do regime de Putin e da Igreja de Kirill para impor seu domínio sobre as terras sagradas da Crimeia, na região do Don e nas costas do Mar Negro, de onde os missionários bizantinos chegaram à Rússia no final do primeiro milênio. No dia do novo chamado às armas, o patriarca de Moscou dirigiu um novo apelo para "restabelecer a unidade da Igreja russa e não considerar os ucranianos como inimigos", pregando do mosteiro feminino da Santa Conceição em Moscou.
Como Kirill reiterou, “hoje a nossa pátria, a Rus' histórica, está passando pelas provações mais duras ... sabemos como estão sofrendo os nossos irmãos ucranianos, enquanto tentam ‘reformatá-los’ e direcioná-los contra a Rússia, mas em nossos corações não deve haver espaço para tais sentimentos, pedimos ao Senhor que nos dê a coragem necessária e fortaleça os sentimentos de fraternidade, que são a verdadeira garantia de paz para as imensas extensões da Rus'”.
A coragem para responder à mobilização, na realidade, parece ser bastante carente entre os russos entre 20 e 50 anos que poderiam ser convocados nos próximos dias, até 300 mil pessoas como parece ter sido decidido, ou até mesmo um milhões, mesmo que os números exatos não sejam comunicados. No máximo, manifesta-se certa audácia em protestar nas ruas contra a obrigação da guerra, que já provocou milhares de prisões; para o resto, nota-se o pânico geral e as tentativas desesperadas de fugir para o exterior, deixando para trás uma vida inteira.
O chamado dos reservistas parece ser, inclusive, um grande blefe, uma ameaça desesperada e bem pouco credível: não há meios e estruturas para preparar para a guerra uma massa de cidadãos que não tem nenhuma vontade de combater, no melhor dos casos levaria pelo menos dois ou três meses, quando então poderia ser inútil enviar mais tropas. Até agora, os soldados em campo vinham das regiões asiáticas e caucasianas, um bando de gente pobre atraída apenas pelas promessas de compensações generosas e pensões garantidas, bucha de canhão já praticamente no fim, com dezenas e dezenas de milhares de mortes, em sua maioria ignorados pelo Estado.
As contradições da estratégia bélica russa, e a ênfase de suas motivações religiosas, realmente nos fazem retroceder mil anos, aos tempos das Cruzadas pela reconquista da Terra Santa, que determinaram em grande parte a ordem mundial que vivemos até hoje, entre a Europa e o Mediterrâneo. Os apelos à guerra santa lembram as inflamadas pregações da Primeira Cruzada, invocada pelo Papa Urbano II durante uma homilia proferida durante o Concílio de Clermont em 1095. A vasta peregrinação armada da cristandade ocidental terminou em 1099 com a tomada de Jerusalém, que Putin sonha em replicar com a tomada de Kiev. Já então as tropas se misturavam entre principados e periferias de pequenos centros nascentes, sem conseguir dar solidez duradoura às conquistas, e Saladino, o Xi Jinping da Idade Média, tratou de desfazer os sonhos do Reino Cristão.
Ou poder-se-ia ver na guerra de Putin uma resposta muito tardia à maior ofensa que os latinos infligiram ao mundo ortodoxo, durante a IV Cruzada que invadiu Bizâncio e estabeleceu o Império Latino de Constantinopla, que durou de 1204 a 1261. O Papa Inocêncio III, o pontífice de São Francisco, a tinha convocado para recuperar as terras dos muçulmanos, mas os vários grupos de cruzados, inspirados por mercadores venezianos, se tornaram culpados de um dos piores massacres das guerras entre cristãos, o saque de Constantinopla que fez os gregos dizerem que “o turbante dos agarenos é melhor que a tiara do papa”.
A última e IX Cruzadas aconteceu no final do século XIII, após o martírio de São Luís IX da França, o último monarca medieval a acreditar realmente na necessidade de libertar a Terra Santa para garantir o futuro da fé cristã. Eduardo I da Inglaterra havia chegado a Túnis tarde demais para salvá-lo, como provavelmente acontecerá com os reservistas de Putin lançados para defender o Donbass. O irmão de Luís, Carlos de Anjou, foi a Acre aproveitar a derrota e tirar vantagem pessoal dela, como o atual sultão Erdogan parece ansioso para fazer, e está muito à vontade no clima das Cruzadas, tentando desempenhar o papel do cristão e do muçulmano juntos.
A última Cruzada obteve apenas uma trégua de onze anos, que não seria mais seguida por outras aventuras cavalheirescas, aliás despejando as ordens dos Templários e Hospitaleiros de São João para as ilhas do Mediterrâneo e os países da Europa, com outras histórias de cismas e crueldades mútuas entre reinos apenas nominalmente cristãos. Um grupo de herdeiros dos Templários, os Cavaleiros Teutônicos, tentaram converter os pagãos do Báltico e os ortodoxos da Rus' ao catolicismo, e foram impedidos por aquele jovem líder, Santo Aleksandr Nevskij, a quem os russos pós-soviéticos hoje se dirigem em busca de inspiração. E o círculo milenar se fecha.
Permanece o medo apocalíptico de uma catástrofe nuclear, evocada por Putin e seus ébrios capangas a cada passo em falso de seus exércitos; a última vez ele admitiu quase comicamente que "não é um blefe", evidentemente referindo-se às falas anteriores, nas quais poucos acreditaram. E a retórica das Cruzadas permanece, inaugurada pelo Patriarca Kirill desde os primeiros dias da guerra e que permaneceu praticamente inalterada até hoje. A “Santa Rus” justifica o “Russkij Mir” de Putin, relançando um cristianismo militante.
A "religião do fogo" devastou e destruiu centenas de igrejas, e justamente Kirill anunciou também o novo programa para a restauração dos edifícios que desmoronaram sob as bombas que ele mesmo desejou e apoiou com a oração. Entre as várias jurisdições ortodoxas em briga nas terras ucranianas, as igrejas do patriarcado de Moscou foram as que mais sofreram, segundo estatísticas divulgadas por sites que contabilizaram essas destruições.
Na região de Kiev, caíram 27 edifícios da Upz (ex-moscovita) e 7 da Pzu autocéfala, em todo o país as igrejas a serem reconstruídas são agora quase 200, incluindo algumas católicas e protestantes. Mais do que as Cruzadas contra os infiéis, as guerras de Kirill assemelham-se aos cismas dos séculos seguintes entre as várias Igrejas europeias. Parece impossível esperar uma virada pacifista da sé patriarcal, já que a simbiose com o Kremlin é agora inseparável, apesar dos apelos do Papa Francisco e do Conselho Ecumênico de Igrejas, e os novos recrutas do exército têm não apenas a bênção, mas também a obrigação canônica de se levantar em defesa da única fé.
Em vez do Anticristo ser combatido na Ucrânia e no Ocidente, serviria uma nova versão do anticristo medieval excomungado pelo papa, o imperador Frederico II da Suábia, que no final liderou a VI Cruzada justamente nos dias da morte de São Francisco, a única cruzada pacífica. Evitando confrontos militares, com as vias diplomáticas, o tão vilipendiado "Puer Apuliae" tornou-se finalmente o "Stupor Mundi", obtendo as maiores conquistas territoriais de todas as guerras na Terra Santa, quase se estabelecendo como o novo rei de Jerusalém e garantindo para sempre o acesso dos peregrinos aos lugares sagrados. O rei que odiava os padres, que escrevia sobre teologia nos manuais de falcoaria, poderia ser um modelo para papas e patriarcas, presidentes e generais, novos czares e novos reis, tão confusos na era da indecifrável Terceira Guerra Mundial.
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A última cruzada da Rússia. Artigo de Stefano Caprio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU