26 Julho 2022
"A cristandade ortodoxa foi declarada um componente fundamental da característica de ser russo e, consequentemente, a igreja russa foi elevada a protetora dos interesses, das tradições e dos valores nacionais russos", escreve Nona Mickhelidze, em artigo publicado por La Stampa, 24-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O patriarca Kirill é o aliado mais importante do presidente Putin na guerra contra a Ucrânia. Uma guerra que ele apoiou desde o início, como uma batalha contra "forças obscuras externas e hostis".
Kirill até abençoou os soldados russos enviados para a Ucrânia. Em março, o Papa Francisco realizou uma videoconferência com o chefe da Igreja Ortodoxa Russa alertando-o sobre o uso da religião para justificar o conflito. O papa disse a Kirill para não ser "o coroinha de Putin".
"O Vaticano nunca cessará os esforços diplomáticos de mediação que poderiam pôr um fim à guerra contra a Ucrânia", disse o Papa Francisco mais tarde. Infelizmente, essa mediação está fadada ao fracasso. E aqui está o porquê.
A interdependência entre o Estado e a Igreja russos faz desta última um ator social privilegiado. A igreja russa sempre promoveu essa ideia de interdependência, que tem um peso importante no discurso ideológico de Putin. Já no final da década de 1990, Putin começou a fortalecer as posições da Igreja na sociedade, impondo-a de cima: o Estado havia identificado a Igreja russa como uma aliada na divulgação de sua ideia de uma civilização russa distinta. Como resultado, nos últimos 20 anos, a igreja russa conseguiu assegurar para si uma posição de influência na Rússia pós-soviética, tornando-se o símbolo mais poderoso do estado, tradição e cultura russos. A relação Igreja-Estado foi revivida, e hoje o Estado goza de legitimidade derivada da Igreja enquanto a Igreja aumenta sua autoridade tornando-se um elemento da administração estatal.
Se nos tempos soviéticos a igreja russa havia sido uma instituição reprimida, no reinado de Putin tornou-se uma entidade forte que usufrui de privilégios concedidos pelo estado, incluindo a capacidade de reprimir outros grupos religiosos presentes no estado laico da Rússia. A posição privilegiada da Igreja Ortodoxa Russa também é garantida pela assistência financeira que recebe do Estado, direta e indiretamente. Ao longo dos anos, a Igreja Ortodoxa foi a maior beneficiária dos subsídios concedidos pela presidência para organizações da sociedade civil.
Falando ao conselho de bispos há alguns anos, o patriarca Kirill havia anunciado que a Igreja Ortodoxa Russa agora tem 34.764 igrejas, 361 bispos, quase 40.000 sacerdotes e diáconos, 455 mosteiros e 471 conventos. Já nos primeiros anos da presidência de Putin, a Duma havia aprovado uma lei que devolvia à igreja todas as suas propriedades confiscadas pelo regime soviético. Em troca, sob Putin, o patriarcado de Moscou apoiou explicitamente a política interna e externa da Rússia e sua política militar.
Após o colapso da União Soviética, a igreja havia entrado em um território "desconhecido", percebendo-o como uma ameaça. Para enfrentar essa "ameaça", ela se tornou desconfiada e crítica em relação aos valores ocidentais associados à liberdade individual e aos direitos humanos. Sob o patriarca Kirill, a igreja russa tornou-se inextricavelmente ligada ao discurso sobre a hegemonia da civilização distinta da Rússia, criada na era Putin.
Hoje é a Igreja Ortodoxa Russa que fornece a narrativa essencial da identidade russa, repleta de mitos e símbolos. A noção de "civilização russa" usada pelo presidente Putin e seu establishment político havia sido introduzida por Kirill ainda quando, como metropolita de Smolensk, ele era chefe do Departamento de Relações Exteriores da Igreja.
Segundo ele, a unicidade da "civilização russa" a tornava culturalmente superior ao Ocidente.
O discurso da ortodoxia russa sobre a diversidade russa geralmente inclui uma atitude crítica em relação ao Ocidente e ao liberalismo político associado a ele. Essa crítica visa especialmente o secularismo generalizado das sociedades ocidentais: o Patriarca Kirill argumenta que é impossível separar o ser humano dos valores espirituais e, consequentemente, também criar uma sociedade secularizada que tolere "múltiplas formas de comportamentos". Segundo o patriarca, um modelo de tal tipo destruiria inevitavelmente os fundamentos morais da vida. Mais em geral, o discurso da defesa dos valores cristãos tradicionais coincide com uma severa crítica aos conceitos sociais ocidentais e está vinculado ao discurso da constante ameaça à moralidade.
Além do secularismo, a igreja russa também coloca o individualismo e o pluralismo na esfera dos valores ocidentais, ambos considerados frutos do Iluminismo europeu, na visão segundo a qual “os valores ocidentais são cada vez mais marginalizados, e Deus é empurrado para a periferia da existência humana”.
Em seu discurso de 2013 no Valdai Club, Putin usou uma argumentação substancialmente semelhante quando declarou que no mundo a decência era cada vez mais escassa, e as pessoas "sem valores cristãos ... normas morais e éticas formadas ao longo de milênios. ... estão perdendo sua dignidade humana”. Consequentemente, a Rússia deve reconhecer que "não pode ter sucesso em escala global sem uma autodeterminação espiritual, cultural e nacional".
O discurso da Rússia como civilização distinta, levado adiante tanto pela Igreja quanto pelo Estado, anda de mãos dadas com a narrativa do "mundo russo" como centro da civilização ortodoxa. Um dos discursos do Patriarca Kirill lança luz sobre a narrativa criada pela Igreja a esse respeito: "Trata-se de entender claramente o que o mundo russo significa hoje. Acredito que se considerarmos como seu único centro a Federação Russa em suas fronteiras atuais vamos pecar contra a verdade histórico e cortamos artificialmente milhões de pessoas que sentem sua responsabilidade pelo destino do mundo russo e consideram sua construção a missão de suas vidas. O coração do mundo russo hoje é a Rússia, a Ucrânia e Belarus... Esta é a Santa Rússia. Esta é a visão do mundo russo inerente à autoidentificação de nossa igreja hoje..."
"Os estados independentes que existem no espaço da Rus' histórica, conscientes de sua filiação a uma civilização comum, podemos continuar a construir juntos o mundo russo e considerá-lo um projeto supranacional comum. Podemos até introduzir uma nova noção, o "País do mundo russo". Acredito que somente um mundo russo ligado estreitamente junto possa se tornar um poderoso sujeito da política global internacional, mais forte do que qualquer aliança política”.
Em outro discurso, o patriarca Kirill defendeu que os estados independentes do "mundo russo" devem articular sua soberania não como motivo de separação de seus vizinhos, mas sim como instrumento para reforçar seu sentido de pertencimento a uma comunidade da mesma civilização. No mesmo discurso, o patriarca sugeriu a transformação de Kiev em outro centro político e social do “mundo russo”, não menos importante que Moscou, já que Kiev foi o berço da civilização russa, “a mãe das cidades russas”.
Todo o discurso do patriarcado russo sobre a "Santa Rus'" e a fraternidade ortodoxa dos eslavos historicamente havia servido ao Kremlin como instrumento de influência no "exterior próximo" e de oposição aos atores ocidentais que queriam entrar no espaço pós-soviético. A promoção de valores tradicionais por Kirill consolidou ainda mais a ideologia do "mundo russo" e o conceito de "segurança espiritual", que gradualmente ajudou a Rússia de Putin a assumir uma identidade messiânica baseada na narrativa da identidade russa como a de uma civilização ortodoxa à parte.
A estreita relação entre o presidente Putin o patriarca Kirill forneceu à política externa e à segurança russa uma moldura moral; aliás, a Igreja Ortodoxa Russa definiu a visão moral e o senso de honra de todo o estado e da nação. Durante a guerra da Chechênia, por exemplo, o então patriarca Aleksij havia exortado o Estado a “defender a pátria mãe dos inimigos externos além dos internos”. Em 2008, o arcebispo Inácio, após uma visita ao Ártico, onde havia sido levado por aeronaves dos serviços secretos russos (FSB), expressou sua satisfação com a cooperação entre a Igreja e as forças armadas, observando que os soldados russos estavam ajudando a Igreja a levar a palavra de Deus até o fim do mundo. Em 2010, a Igreja Ortodoxa Russa chegou a propor dar assistência aos russos étnicos nas campanhas eleitorais e ajudar o governo a estabelecer um diálogo entre o partido de Putin, Rússia Unida, e as forças conservadoras na Europa e nos EUA.
Em 2015, a Igreja Ortodoxa Russa deu sua aprovação à entrada dos militares russos na guerra na Síria e declarou seu apoio à decisão de Putin de lançar uma "guerra santa". Sobre a Crimeia, o padre Vsevolod Chaplin havia declarado que as tropas russas estavam realizando uma missão de paz na Ucrânia e que "o povo russo tem o direito de ser reunido no mesmo corpo político". Estes são apenas alguns exemplos da estreita relação entre o Estado e a Igreja na Rússia.
A própria Igreja se orgulha de seu espírito de cooperação com as forças armadas: o patriarca e o Santo Sínodo criaram o Departamento do Sínodo para a cooperação com as forças armadas e os órgãos de segurança. Uma relação consolidada por uma série de acordos escritos sobre a renovação espiritual e moral das forças armadas russas; o clero ortodoxo abençoa regularmente soldados, armamentos e veículos militares, e os sacerdotes abençoam as novas armas, os caças e até os mísseis russos usados na guerra contra a Ucrânia.
A faculdade de direito da Universidade Ortodoxa Russa introduziu um curso sobre "segurança espiritual", enquanto cursos especiais de cultura ortodoxa foram introduzidos para soldados. O patriarca Kirill disse a esse respeito: "Quando chega a hora do povo cumprir seu dever e se levantar em defesa da pátria mãe, torna-se a atividade mais importante de suas vidas ... Uma das tarefas da Igreja é, portanto, o ministério especial de ensinar e fortalecer no povo os princípios espirituais e morais que tornarão as pessoas valorosas e inflexível defensoras da pátria”. O patriarca também expressou esperança de que os cursos de ortodoxia na academia militar "fariam reviver modelos de estilo de vida orgânico à Rússia".
Desde o final da década de 1990, o governo russo tomou providências para incluir a visão da Igreja Ortodoxa Russa nas concepções de segurança nacional e de política externa. A igreja foi chamada para ajudar a redefinir a Rússia e criar uma nova missão para levar ao mundo.
O conceito de segurança espiritual tem sido amplamente utilizado nos documentos oficiais do Estado, como a concepção de segurança nacional e a doutrina de segurança da informação da Federação Russa, ambas datadas de 2000. Na narrativa oficial russa, as normas que o Estado quer impor juntamente com a igreja justificam a assertividade do Kremlin no "próximo exterior".
O Estado e a Igreja trabalharam em conjunto para promover sua política externa e seus objetivos no espaço pós-soviético e no cenário internacional. A cristandade ortodoxa foi declarada um componente fundamental da característica de ser russo e, consequentemente, a igreja russa foi elevada a protetora dos interesses, das tradições e dos valores nacionais russos.
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A guerra de Kirill - Instituto Humanitas Unisinos - IHU