"O mundo do amanhã chamado hoje, resgata o discipulado de quem observa Jesus atuando, incluindo e curando, os homens feridos pelas mais diversas batalhas que travam. Se tem cinco pães e dois peixes é com eles que saciaremos a fome. Se o cego grita, não o calemos. Se Jesus parece dormir no barco, tenhamos fé. Aprendamos com Ele e nada mais", escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina.
Creio que um dos maiores desafios para a Igreja atual, esteja na sua capacidade de formar ministros ordenados, bem como leigos capacitados, para desempenharem o que deles se espera como Igreja de Jesus Cristo, nas próximas décadas. Convenhamos que, se esta mesma Igreja, não pode dar respostas a perguntas que não foram nem estão sendo formuladas, ocorre que também não lhe convém formar cristãos para um mundo que já não existe e cujos resquícios nos escapam agora por entre os dedos. Questão de honestidade e fidelidade ao Evangelho.
Temos visto aqui e acolá, reflexões sobre a formação presbiteral, que aproveitando a linha da nova ‘Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis’ da Congregação para o Clero, de 2016, procuram traçar caminhos adequados à preparação dos padres para um mundo que nos é desconhecido. Somos como uma Escola de Sagres. Estamos preparando marinheiros, para mares nunca antes navegados! Irão usar instrumentos conhecidos, em situações não só adversas, mas indiferentes. A própria CNBB teve como tema central da sua Assembleia em 2018, a elaboração das “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros na Igreja do Brasil” à luz desse documento de Roma, sublinhando a ideia de que a formação na vida do padre é um único caminho que se estende por toda a vida. A formação sacerdotal não se limita à dimensão intelectual, mas é um caminho de amadurecimento humano e crescimento na fé. Em cada etapa, espera-se que haja um ritmo de mudança, de aprendizado e de integração, assim diziam os bispos. “O período do discipulado é um tempo de aprender os ensinamentos de Cristo mestre. O discípulo é aquele que tem admiração pelo mestre e procura aprender as suas lições. Dedica tempo a estar com o mestre. O candidato ao sacerdócio busca trabalhar a si mesmo, assume uma disciplina de vida que o identifique sempre mais a Cristo. Na etapa da configuração a Cristo, o seminarista passa da admiração e conhecimento para adotar o estilo de vida de Cristo. Compreende sempre mais que é chamado a abraçar a mesma obra que Cristo realizou. Aprende a obediência ao Pai, a doação aos irmãos e a compartilhar o mesmo destino de Cristo. A fase da síntese vocacional é marcada pela mistagogia. Ao assumir os trabalhos pastorais, o candidato ao sacerdócio vai integrando a sua vida e o seu agir ao exercício do ministério sacerdotal. Não é difícil entender que o período de síntese se estende por toda a vida do sacerdócio” (Dom Wilson Tadeu Jönck)
Também a Conferência Episcopal Portuguesa, levou à Fátima no final de agosto passado, centenas de padres, para discutirem, segundo o presidente da Comissão Vocação e Ministérios, D. António Augusto Azevedo, e tomarem consciência, de que o futuro vai exigir sacerdotes com estilo novo; que é um fato já perceptível. A própria síntese sinodal da CEP, sobre a formação dos sacerdotes, afirma que têm “uma formação deficiente quer para lidar com os problemas humanos da vida contemporânea, quer para trabalhar com os leigos, que exigem trabalho em equipa, corresponsável e de partilha de autoridade, que não têm formação adequada para responder a questões emergentes”.
Já em 2021 falando aos padres, o Papa Francisco destacou a importância de “encontrar caminhos, modos e linguagens novas para anunciar o Evangelho”, seguindo o exemplo dos santos Cirilo e Metódio, que levaram o Evangelho aos povos eslavos. Eles inclusive criaram o alfabeto cirílico até hoje adotado em parte dos países eslavos, incluindo a Rússia.
Nunca como hoje, a questão da formação presbiteral, assumiu tamanha importância e urgência. É certo, que no pós-concílio surgiram várias experiências pelo mundo afora, visando se aproximar de um mundo que teimava em se afastar da Igreja, fazendo jus às palavras atribuídas a Henri Lubac (1896-1991): “a uma Igreja sem mundo adveio um mundo sem Igreja”! Na França, no Brasil e noutros países, testaram-se formas de colocar os presbíteros em contato direto com o povo, numa espécie de slogan “gente como a gente”! A teologia do Povo de Deus desenvolvida pelo Concílio Vaticano II, dava embasamento a essa nova postura do ministro ordenado, caminhando com o “povo sacerdotal”. Não há dúvidas, de que foi uma interessante e eficaz estratégia de resgatar eclesiologicamente a figura do presbítero, com o enfoque dado pelo Concílio como um todo. Porém, antes que o século passado acabasse, outras concepções de formação sacerdotal foram se impondo, sublinhando a performance mais tradicional da formação em seminários, separando os vocacionados e devolvendo-os “prontos” para o exercício do seu ministério junto ao povo a eles confiado. Esta é a noção que vigora até hoje, sem perspectivas de mudança. Os nossos padres mais jovens, gostam de vestes clericais que os “distingam” entre os batizados e continuam sendo preparados para dar a “última palavra” nas sacristias paroquiais, demonstrando-se, porém, impotentes para os debates nas universidades e nas ágoras urbanas! Contudo, repetimos: o mundo não é o mesmo. A mudança de época ultrapassou anos luzes, as antigas “épocas de mudança”, que exigiam “adaptações e experiências eclesiológicas mais eficazes”.
São, portanto, válidas para este tópico, as palavras de Francisco aos professores de liturgia no dia 01 de setembro passado: “a tradição é a fé viva dos mortos; o tradicionalismo é a fé morta dos vivos”! O ponto nevrálgico de uma reflexão profícua sobre a formação dos padres, está num olho para o passado: um passado da Tradição e do Magistério, com um claro resgate da Palavra Bíblica e um olhar para o futuro, cujos indícios já são perceptíveis no presente. A Palavra e a Tradição dos Santos Padres, nos obriga a proceder àquilo que já foi chamado de “desacerdotalizaçao” do padre! Palavra estranha que basicamente questiona a figura do clérigo desenvolvida a partir do século IV, que se impôs numa Europa feudal, que foi reforçada pelo Concílio de Trento, numa necessidade proeminente de responder à Reforma e que veio até ontem... Como bem nos lembra José María Castillo a “palavra "clero" não aparece nenhuma vez em todo o Novo Testamento. O termo "clero" vem do grego "kleros", que significa "sorte". E começou a ser usado na Igreja durante o século III. Historicamente, entende-se o surgimento de alguns "privilegiados" que tiveram a "sorte" de serem eles - e só eles - que sabiam de leis, ritos e cerimônias exatamente como a Igreja (do século III ao VI) estava evoluindo, da transparência do Evangelho à complexidade de uma Religião, que procurou impor-se em toda a Europa. Entende-se que, naqueles tempos em que poder e dinheiro eram os valores determinantes da sociedade, por isso a enorme “sorte” de quem governava era tão valorizada. Eles - e somente eles - tiveram a “sorte”, ou seja, eram o “clero”! (16-12-2021 José María Castillo Edição 3943O clero, o Evangelho e o futuro da Igreja)
A Igreja de Constantino não existe mais. Tão pouco a Igreja medieval e também não, a Igreja do século XX. O que existe é a IGREJA; aquela que sobreviverá até ao fim! Pois então, que padres essa Igreja deverá gerar, para que o Evangelho seja proposto como Verdade absoluta, num diálogo constante com o homem e as mulheres do século XXI? São estas perguntas, em última análise, propostas em suas obras pelo grande teólogo checo Tomáš Halík (Praga, 1 de junho de 1948).
Chegados aqui, é importante nos perguntarmos que mundo é este, que a Igreja precisa fecundar como "fermento na massa". É hoje pacífico que a massificação em forma de cristandade que veio até ao século XX, não é mais realidade e não nos interessa em termos de opção evangelizadora. A figura do padre cuidando das ovelhas paroquiais, esperando rebanhos cada vez mais reduzidos e em geral à sombra dos sacramentos, mostra-se além de ineficaz, claramente anacrônica. Ajudados pelo grande historiador Yuval Harari em seu livro 21 lições para o século XXI, elenquemos algumas caraterísticas deste século, que se constituem de enormes desafios para a nossa Igreja.
O ser humano está perdendo a fé na narrativa liberal que dominou a política global em épocas recentes, justamente quando a fusão da biotecnologia com a tecnologia da informação, nos coloca diante das maiores mudanças com que o gênero humano já se deparou. A narrativa liberal de cada vez mais liberdades para o ser humano está desde 2008, entrando em colapso. Muros protecionistas se constroem em todo o mundo. A Brexit na Inglaterra e a eleição de Trump em 2016 confirmam isso. Se não existem alternativas a esta narrativa liberal, como existiam no século XX, entramos num certo vazio existencial de choque e desorientação.
Não sabemos como será o mercado de trabalho em 2050. Sabemos que o aprendizado da máquina e a robótica, vão mudar quase todo esse mercado. Os modelos sociais, econômicos e políticos, que herdamos do passado, são inadequados para lidar com tal problema.
Que tipo de liberdade temos e teremos? A narrativa liberal prega a liberdade humana como valor número um. No entanto quando a revolução da biotecnologia se fundir com a revolução da tecnologia da informação, ela produzirá algoritmos de Big Data capazes de monitorar e compreender nossos sentimentos muito melhor do que nós mesmos e então a autoridade passará dos seres humanos para os computadores! Quando algoritmos passarem a nos conhecer tão bem, governos autoritários poderão obter o controle absoluto de seus cidadãos, ainda mais do que na Alemanha nazista!
Nas últimas décadas foi nos dito que o gênero humano está a caminho da igualdade e que a globalização e as novas tecnologias nos ajudarão a chegar mais cedo. Contudo, o século XXI poderá criar a sociedade mais desigual da história. Nada de terra, nada de bens e mercadorias! Serão os dados o epicentro das disputas! A política será o esforço para controlá-los.
A fusão da tecnologia da informação com a biotecnologia ameaça os valores modernos centrais, de liberdade e de igualdade. Toda a solução para o desafio tecnológico deve envolver cooperação global. Porém, o nacionalismo, a religião e a cultura, dividem o gênero humano em campos hostis e fazem com que seja muito difícil cooperar a nível global.
Os nacionalismos avançam questionando a capacidade global de resolver problemas que se apresentavam como globais. São já vários os países que se voltam sobre si mesmos, gerando populistas perigosos que vão corroendo a democracias e o Estado de direito.
As religiões no mundo estão ultrapassando a linha ténue que as segurava em Estados modernos ditos laicos e secularizados. Cada vez mais, governos estão flertando com o modelo japonês: adotam estruturas e instrumentos de modernidade, enquanto se fundamentam em religiões tradicionais para preservar uma identidade nacional única. Esse papel por exemplo, é desempenhado pela Igreja ortodoxa na Rússia atualmente (que se revelou desastrosa na invasão da Ucrânia), pelo catolicismo na Polônia ou pelo islamismo xiita no Irã, ou até pelo judaísmo em Israel. A questão que se coloca é de que as religiões continuam com “muito poder” para influenciar decisões universais e nem sempre para o bem!
O problema da emigração e dos refugiados gera grandes discussões em países e continentes, até sobre a sua identidade e seu futuro! São problemas morais graves que advêm daqui e obrigam a profundas reflexões e atitudes delicadas. A Europa está no centro desta problemática.
Racismo, xenofobia, terrorismo, guerras várias, continuarão fustigando a nossa civilização colocando-a em xeque constantemente ou ameaçando-a de extinção. Por outro lado, tudo isto é um chamativo à humildade do ser humano. Ele não é o centro do mundo. Fanatismos nascem e crescem com este equívoco.
A ética e a moralidade sem Deus. Vistas, não como cumprimento de mandamentos, mas como “compaixão” ou diminuição do sofrimento. Um mundo que prescindirá da ideia de Deus, para combater as mazelas trazidas pela religião, equivocadamente usada como referido nos pontos anteriores e na história de várias delas. O secularismo, visto não pela ausência ou negação de algo, mas como uma visão de mundo muito positiva e ativa, definida por um código de valores coerentes e não pela oposição a esta ou aquela religião. Aliás, muitos destes valores compartilhados por várias religiões.
Um bebe nascido hoje, terá quase trinta anos em 2050. Talvez esteja ativo ainda no século XXII. O que deveríamos ensinar a esse bebe para que ele vivesse bem entre a metade deste século e o final dele? Infelizmente, como ninguém sabe como será o aspecto do mundo em 2050, não temos resposta para estas perguntas. Mas o que deveríamos estar ensinando? Especialistas em pedagogia alegam que as escolas deveriam ensinar os 4 Cs – pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. O mais importante: habilidade para lidar com mudanças, aprender coisas novas e preservar seu equilíbrio mental em situações que não lhe são familiares. Para viver em 2050 o homem vai precisar, não só inventar novas ideais e produtos, mas acima de tudo vai precisar reinventar a si mesmo, várias e várias vezes!
Não é mais possível pensar um projeto de formação sacerdotal sem ampliar o horizonte sobre o mundo que nos espera. Os nossos jovens já nasceram neste século. Serão padres do novo milênio para o novo milênio. Serão homens postos na frente da batalha para guerrear contra um inimigo desconhecido envolto em denso nevoeiro. Ouvem o ranger dos cavalos, a respiração ofegante do adversário, mas só o verão quando estiver a poucos metros de si. Serão presbíteros da “Igreja de Francisco”, que marcou de forma indelével a Igreja nos últimos anos com a efusão do espírito conciliar, e deverão possuir as virtudes humanas por excelência que farão a grande diferença no mundo. Ouçamos de novo as palavras do Papa: “existem dois laços constitutivos da identidade sacerdotal: a ligação pessoal, íntima e profunda com Jesus, e a ligação com o Povo de Deus”.
Jovens moldados segundo o coração de Jesus são íntegros. Não apenas no sentido ético ou moral, mas inteiros. Capacitados para lidar com relações sadias e com afetos, numa situação de celibatários. Pessoas compassivas. Bons samaritanos de uma Igreja que é ela mesma a Boa Samaritana. Enfermeiros de uma Igreja “hospital de Campanha”, num mundo de gente machucada e excluída do banquete da vida. Profetas que denunciem com coragem sacerdotal (que a Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis coloca dentro da necessária maturidade humana exigida dos candidatos às ordens sagradas) e sem acídia – que o Papa chama de “tristeza adocicada”. Homens que “sem fazer barulho” deixam tudo para se comprometerem ao serviço da comunidade e trabalhar “nas trincheiras”, expostos às mais variadas situações, colocando “seu rosto”, mas sem se dar “demasiada importância, para que o povo de Deus possa ser cuidado e acompanhado”, ainda segundo a ideia do Papa Francisco.
A formação presbiteral não visa preparar “profissionais do convencimento”, nem homens do coaching, palestrando para o mundo! Embora a formação intelectual seja extremamente necessária e producente, é na formação humana, no pleno sentido do termo, que devemos atentar. Jovens generosos e empáticos, preparados para o diálogo com o diferente, expondo-se até à oferta da própria vida. Não poderá existir no seu inconsciente qualquer glamour da vida sacerdotal e muito menos vislumbrar nela, facilidades e mordomias incompatíveis com o ideal evangélico do seguimento do Mestre. Devem os formadores ficar atentos às motivações dos candidatos e ajudá-los a discernir, à luz do que a Igreja necessita e da proposta de Jesus. O nosso modelo de Seminário passa por um momento de muita contestação e pelo menos em parte, corresponde. Retirar jovens do seu habitat e fornecer-lhes um modo de vida que é artificial para depois os trazer de volta à vida real, sempre acarreta perigos. Um deles (como já vi no Brasil), é tornarem-se “estranhos entre os seus”!
O mundo do amanhã chamado hoje, resgata o discipulado de quem observa Jesus atuando, incluindo e curando, os homens feridos pelas mais diversas batalhas que travam. Se tem cinco pães e dois peixes é com eles que saciaremos a fome. Se o cego grita, não o calemos. Se Jesus parece dormir no barco, tenhamos fé. Aprendamos com Ele e nada mais. E não tenhamos medo de preparar jovens para um dia dizerem com coragem: “Não possuo prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou: em o Nome de Jesus Cristo, o Nazareno, ergue-te e anda! ” (At3,1) O padre do amanhã será pobre, ignorado e não terá uma Instituição forte por trás, como nós tivemos. Será nômade e sempre em saída, como agora grita Francisco. Levará pouca coisa para o caminho e sentirá com certeza no rosto, o ar fresco da liberdade e da alegria do Evangelho de Jesus Cristo. O padre do futuro chamado hoje, servirá um grupo minoritário que escutará com fervor e alento as palavras do Cristo: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino” (Lc 12,32).