22 Mai 2015
"Francisco é o tipo que muitos sonhávamos e que, entre outras coisas, celebra com o povo e prega a partir do Evangelho do dia como um pároco. Alguns, aliás, o criticam: “é um pároco, não um papa!” Agindo assim, porém, leva o Evangelho a todos e acaba ensinando a muitos párocos a prioridade da evangelização no seu ministério. Ele tem uma sensibilidade humana, comunitária e popular impressionantes. E coragem", afirma Antonio José de Almeida, teólogo, em entrevisa publicada na revista Vida Nueva, concedida em janeiro deste ano de 2015.
"Justamente o que falta em tantos hierarcas, - continua - muitas vezes medrosos, excessivamente prudentes (ou imprudentes?), sem audácia nem perspicácia. Veja você: precisa que o papa lhes diga: “apresentem propostas corajosas e concretas”.
Segundo ele, "seria trágico se a Igreja viesse a ordenar “viri probati” sem um forte sentido comunitário, sem vínculo concreto com uma comunidade concreta. O presbítero não pode ser um ministro “universal” e “abstrato”, que exerce seu ministério em todo e qualquer lugar porque nenhum lugar é “seu” lugar, dado que todos os lugares lhe são indiferentes. Do ponto de vista de una sadia teologia da Igreja local, isso é eclesiologicamente equivocado e eclesialmente desastroso".
Antonio José de Almeida, nascido em Marapoama, SP, Brasil, em 1949. Presbítero da diocese de Apucarana, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, professor de Teologia Sistemática na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em Curitiba. Trabalha no campo da eclesiologia, especialmente o tema dos ministérios na Igreja a serviço da vida e da missão das comunidades.
Percorreu praticamente todo o Brasil, dando cursos e fazendo palestras em muitas dioceses desde a segunda metade dos anos 80. Leciona também no Instituto Teológico-Pastoral para a América Latina (ITEPAL), em Bogotá, Colômbia. Conhece de perto muitas experiências de ministérios não-ordenados na América Latina, especialmente a dos “Delegados da Palavra” iniciada pelo bispo canadense Marcel Gérin na diocese de Choluteca, em Honduras, em 1966, e hoje presente em toda a América Central.
A entrevista é de Emília Robles, publicada pela revista Vida Nueva. A tradução é de Antonio José de Almeida.
Eis a entrevista.
Você insiste em que a Igreja deve desenvolver com urgência novos ministérios. A que se refere?
Creio que a situação seja diferente, dependendo dos países ou dos continentes. Nas Igrejas do Sul – penso, sobretudo, na América Latina e em algumas regiões da África – tivemos, nos dois decênios depois do Concílio, o nascimento e um crescimento impressionantes de novos ministérios. Um teólogo (na verdade, um grande biblista) como Carlos Mesters falou, na época, de uma verdadeira “explosão de ministérios”. Na Europa, parece-me que o fenômeno seja mais recente e tenha menos visibilidade. Na maioria dos países europeus, é mais um desafio que uma realidade.
Concretamente, quais são esses novos ministérios?
Quando se fala de novos ministérios, se pensa em geral quase que automaticamente nos ministros e ministras da sagrada comunhão. Não é por aí. Quando falamos em novos ministérios, pensamos num leque muito amplo e diversificado de serviços que possuem um perfil próprio, têm relação significativa com a missão da Igreja, são importantes para a vida da comunidade e sua projeção no mundo, são assumidos como responsabilidade própria e com estabilidade por leigos e leigas, e reconhecidos pela Igreja. Podem dar-se seja na dimensão profética, seja na dimensão cultual, seja na dimensão real-pastoral da vida e da missão da Igreja.
Temos, então, animadores de grupos bíblicos e comunidades, passando por catequistas e equipes de celebração até responsáveis por pastorais sociais nos distintos níveis eclesiais – comunidades, paróquias, regiões pastorais, dioceses e além.
Seu trabalho não se reduz à universidade, mas, de alguma forma, é um trabalho de campo. Pode descrevê-lo melhor?
Atualmente, estou mais envolvido com o trabalho intelectual. Sou professor de Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em Curitiba. Leciono na graduação e na pós-graduação (mestrado e doutorado). Estive, porém, na pastoral direta por quase 30 (trinta) anos, como pároco, assessor de várias comissões diocesanas e, até 2004, coordenador diocesano de ação evangelizadora (cerca de 12 anos). Tenho um ‘pé’ na pastoral direta e outro na universidade. Minha tese doutoral foi sobre Novos ministérios na Igreja da América Latina. O diretor foi um teólogo espanhol, da Galícia, o jesuíta Félix Alejandro Pastor, professor na Gregoriana e na PUC do Rio, onde faleceu há dois anos.
Que propostas pastorais em diferentes lugares você conhece que lhe parecem particularmente interessantes para a Igreja de hoje em matéria de ministérios?
Aqui no Brasil, em primeiro lugar, as comunidades. São mais de 100.000 (cem mil). Começaram nos anos anteriores ao Concílio e se fortaleceram com o evento conciliar e sua eclesiologia. Algumas dioceses as assumiram como prioridade pastoral há décadas.
A diocese à qual pertenço, por exemplo, Apucarana, no Estado do Paraná, a partir de 1970, trabalhou pastoralmente inspirada num “Plano diocesano para uma pastoral paroquial renovada”. No ano passado, a CNBB publicou um documento para fortalecer e impulsionar este processo: “Comunidade de comunidades. Uma nova paróquia”.
No interior das comunidades, um dos elementos mais importantes são os grupos de família (ou não), vizinhos ou não, dependendo do contexto social. Os nomes variam muito: são grupos de “reflexão”, de “ação e reflexão”, de “vivência”, de “base”, círculos bíblicos, etc.
Na paróquia em que resido atualmente, por exemplo, há 23 (vinte e três) comunidades, mais de 80 (oitenta) grupos chamados de “reflexão”, que, na realidade, são grupos bíblicos em que, a cada quinze dias, se lê a Bíblia em articulação com a vida, se faz revisão de vida, planejamento de ações concretas tanto em âmbito eclesial como da sociedade civil; alguns desses grupos, com mais de 40 (quarenta) anos, passaram por mudanças de geração, e continuam. A lógica é esta: onde há comunidade eclesial, necessariamente há ministérios!
Diferentes modalidades de grupos e/ou de comunidades são contrapostas ou mutuamente excludentes, ou podem conviver?
Depende. Há que se ter e partir de um horizonte e de algumas referências básicas comuns. Vejo, por exemplo, que Pagola está motivando e impulsionando, com excelentes argumentos – penso no seu livro “Volver a Jesús” – algo muito parecido com o que fazemos no Brasil há anos. Gosto muito da cristologia profundamente existencial, espiritual e comprometida de Pagola e, agora, me fascina sua maneira de propor o surgimento de grupos que se reúnam espontaneamente, tomem nas próprias mãos a Palavra de Deus para ouvi-la em “primeira mão” (como ele diz), pô-la em contato com a vida, com suas aspirações, dúvidas, perguntas, em busca de caminhos para um mundo mais humano.
Qual seria o fio condutor eclesiológico que daria unidade interna a essas propostas?
É fundamentalmente a eclesiologia do povo de Deus no sentido que lhe deu o Concílio. Povo chamado por Deus. Povo libre e responsável. Povo a serviço do desígnio de Deus na história. Povo de irmãos, iguais e diferentes ao mesmo tempo. Povo no qual o que é comum (a condição de cristãos e cristãs) garante a todos igualdade de dignidade e de missão. Povo que põe raízes nas diferentes culturas e é capaz de entrar em diálogo com elas. Povo todo ele enriquecido por dons, carismas e serviços e/ou ministérios diferentes em vista da missão. Não são títulos de capítulos de um livro; são minhas mais profundas convicções e estão muito bem explicitadas num importante documento da CNBB, do ano de 1999, sobre “Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas”, o famoso Documento 62, muitas vezes reeditado, ponto de referência para essa matéria no Brasil.
Você escreveu uma introdução teológica ao livro do bispo emérito de Aliwal (África do Sul), Fritz Lobinger “Equipes de ministros ordenados”. Quais elementos ressaltaria da proposta atual de Lobinger sobre dois tipos de presbíteros que poderiam coexistir e colaborar numa mesma Igreja local?
Antes do livro “Equipes de ministros ordenados. Uma solução para comunidades sem eucaristia”, que escrevemos juntos e foi publicado no Brasil (Paulus) e na Espanha (Herder), Lobinger publicou no Brasil outro livro: “Padres para amanhã” (Priests for tomorrow). A editora pediu-me uma introdução. O livro me encantou de tal maneira que elaborei uma ‘pequena introdução’ de umas setenta páginas. Sem nenhuma intenção arqueológica, o que Lobinger propõe em termos de estrutura pastoral básica e de ministérios é, em seus traços essenciais, o que houve na Igreja cristã nos primeiros séculos: comunidades de dimensões humanas; animadas por ministros e ministras próprios; um processo de formação cristã e ministerial permanente, com o acompanhamento de presbíteros destacados para este fim pela diocese; a celebração da eucaristia como plenitude sacramental da realização da Igreja em missão em um lugar. O que falta em muitíssimas comunidades – só no Brasil são mais de 70.000 as comunidades sem possibilidade de celebração regular da Eucaristia – são, como elemento necessário de um amplo e articulado processo, ministros ordenados como presbíteros para presidir a eucaristia em sua comunidade.
A única coisa que esses ministros ordenados fariam na comunidade seria presidir à celebração da eucaristia? Seriam padres celebradores ou “misseiros” ou “altaristas”, como ficou pejorativamente conhecido certo tipo de sacerdotes na Idade Média?
Absolutamente. A lógica na Igreja antiga – isso foi estudado particularmente por Hervé Legrand, um dominicano francês, grande eclesiólogo, discípulo de Congar - era a seguinte: aquele que preside à comunidade preside à eucaristia da comunidade. A comunidade o escolhia, os bispos o ordenavam, ele se tornava presidente-pastor daquela comunidade e, por conseguinte, da sua celebração da eucaristia. A celebração da eucaristia pela comunidade é o momento fonte e cume de sua vida cristã e eclesial. (Falamos de “celebração” da eucaristia, com toda a sua riqueza de significado e de conteúdo, não simplesmente da reserva eucarística!) Não pode ser algo tão raro que, apesar de toda a sua valorização teórica, como faz, por exemplo, o Documento de Aparecida, se celebra, em tantas comunidades, só uma vez por ano ou a cada dois, três anos...
Lobinger pensa assim?
Claro. Além disso, muito concretamente, ele propõe que os ministros sejam da mesma comunidade, que sejam escolhidos diretamente por sua comunidade, que não seja um só por comunidade, mas uma pequena equipe (dois ou três), podendo ser solteiros ou casados, e que continuem inseridos na vida civil, com sua família, seu trabalho profissional, sua vida normal. Dado que a comunidade é pequena, sua participação nela será também mais próxima, constante, quente, porém seu serviço frente a ela como ministro ordenado seria normalmente “part-time”. O modelo não é a grande paróquia, territorial, anônima, sacral, totalmente centralizada no pároco e em tudo dependente dele, mas a comunidade “à medida do ser humano” (a expressão é de Schillebeeckx), de pessoas que se conhecem, uma comunidade aberta, acolhedora, misericordiosa, participativa, missionária...
No Concílio Vaticano II, falou-se – ainda que timidamente – dos “viri probati” como uma alternativa à falta de presbíteros em muitos lugares. O que você pensa sobre esta alternativa no contexto da Igreja atual?
O Concílio falou de “viri probati” em relação ao ministério diaconal. O Concilio não discutiu o tema do celibato sacerdotal. Paulo VI não considerava conveniente que o Concilio tratasse do celibato. (Ele abordou pessoalmente o tema na encíclica Sacerdotalis coelibatus em 1967). Todavia, Lobinger não pensa em “viri probati” como candidatos a este novo modelo de presbítero. Ao contrário, faz questão de deixar claro que essa não é a sua proposta. Lobinger pensa em “communitates probatae” que devem chegar a ser “communitates plenae”, que possam elas mesmas celebrar a eucaristia presididas por seus ministros próprios.
Neste sentido, a proposta de Lobinger não é para todas aquelas situações que levam o nome de “comunidade”; ele pensa em comunidades que preencham requisitos bem precisos. A hipótese de “viri probati”, portanto, Lobinger a descarta com todas as letras. Seu ponto de partida não é a escassez de clero, a abolição do celibato, a ordenação de mais sacerdotes para manter o sistema funcionando. Seu enfoque é a comunidade eclesial, a caminhada comunitária, sua consistência evangélica, seu serviço aos pobres, a legítima autonomia das comunidades, a multiplicidade de ministérios para a vida e a missão da Igreja, a centralidade da Eucaristia para a vida cristã e a construção de autênticas comunidades cristãs a serviço do Reino no mundo.
É importante que os bispos sejam corajosos e apresentem propostas ousadas a Roma ou deveriam esperar que Roma modifique certas normas?
Francisco é o tipo que muitos sonhávamos e que, entre outras coisas, celebra com o povo e prega a partir do Evangelho do dia como um pároco. Alguns, aliás, o criticam: “é um pároco, não um papa!” Agindo assim, porém, leva o Evangelho a todos e acaba ensinando a muitos párocos a prioridade da evangelização no seu ministério. Ele tem uma sensibilidade humana, comunitária e popular impressionantes. E coragem. Justamente o que falta em tantos hierarcas, muitas vezes medrosos, excessivamente prudentes (ou imprudentes?), sem audácia nem perspicácia. Veja você: precisa que o papa lhes diga: “apresentem propostas corajosas e concretas”. Na Conferência de Aparecida, em 2007, um expressivo número de bispos queriam tratar este tema; abriram-se numa reunião com um representante pontifício, e este prestigioso senhor lhes teria respondido: “Este não é o lugar apropriado para isso. Os tempos não estão maduros!” Os tempos nunca estariam maduros para quem não sabe ler seus sinais, os sinais de Deus, que são sempre novos e primaveris.
Em seu livro “Novos ministérios. A necessidade de um salto à frente”, publicado no ano passado no Brasil (Paulinas) e agora também na Espanha (Herder), você fala de novos ministérios, não só do ministério presbiteral. Para que aspectos chamaria a atenção sobre a necessidade de dar um passo à frente?
Há um ponto de chegada, que é a vida de dezenas de milhares de comunidades, com seu dinamismo, seus ministérios, seus projetos. Chegamos, porém, a um ponto que clama pelo passo natural seguinte: não só o reconhecimento, a valorização e o impulso efetivo às comunidades e a seus ministérios (atitudes que ainda faltam em muitos lugares e, onde está presente, nem sempre são suficientes e coerentes), mas a plenificação dessas comunidades, dotando-as de ministros ordenados próprios para sua presidência eclesial e eucarística. A situação anômala atual de dezenas de milhares sem poder celebrar a Eucaristia remediada pela Celebração da Palavra (que certamente já é um bem) não pode nos levar a perda ou ao enfraquecimento da consciência de que “a eucaristia faz a Igreja”. O vínculo comunidade-eucaristia é essencial.
Igualmente, ainda que em outro nível, o vínculo entre ministro e comunidade também é essencial. Não se trata só de um vínculo sacramental e canônico, mas existencial, direto, muito concreto. Seria trágico se a Igreja viesse a ordenar “viri probati” sem um forte sentido comunitário, sem vínculo concreto com uma comunidade concreta. O presbítero não pode ser um ministro “universal” e “abstrato”, que exerce seu ministério em todo e qualquer lugar porque nenhum lugar é “seu” lugar, dado que todos os lugares lhe são indiferentes. Do ponto de vista de una sadia teologia da Igreja local, isso é eclesiologicamente equivocado e eclesialmente desastroso.
Falando agora da situação nova que se criaria na Igreja com este novo perfil de presbítero (ao lado do atual). Que ganho traria à Igreja em seu conjunto um duplo presbiterado atuando em colaboração?
Lobinger fala de dois tipos de presbíteros: “diocesanos” e “comunitários”. Na realidade, não emprega a expressão “presbítero comunitário”. Prefere “ministros ordenados”, embora saiba que esta expressão inclua também os bispos e os diáconos. É que, com a expressão “ministros ordenados”, ele quer deixar claro que não pensa em comunidades contestatárias ou em ministérios “selvagens”, mas devidamente – quer dizer – sacramentalmente “ordenados”. Já presbíteros “diocesanos” seriam os presbíteros que conhecemos atualmente – formados em seminário, que estudaram filosofia e teologia por longos anos, celibatários, com dedicação exclusiva etc.
No novo modelo, os atuais presbíteros não só não seriam dispensados, mas enormemente valorizados, e passariam a desempenhar una nova função “quase episcopal” – como dizia Dom Valfredo Tepe, um bispo franciscano alemão que passou quase toda a sua vida no Brasil e se envolveu, de várias maneiras, com essa questão dos ministérios – uma função de motivação, animação, acompanhamento, formação continuada, assessoria e articulação entre as comunidades e entre essas e seus ministros.
Quais seriam alguns riscos que teriam que ser levados em conta para prevenir eventuais problemas?
Vejo, sobretudo, três: o “delegacionismo”, o clericalismo e o “liturgismo”, se você me permite a criação de alguns neologismos.
O “delegacionismo” consistiria em delegar ao ministro (no caso, o presbítero comunitário) o que é responsabilidade de todos: “você é o nosso presidente, faça tudo, que nós o apoiamos”. É o que muitos pais fazem com os professores dos filhos nas escolas, que muitos cidadãos fazem com os políticos que elegem, que muita gente faz com as lideranças da Igreja.
Clericalismo é um termo mais conhecido. Há leigos e leigas que, quando ocupam uma posição particular na comunidade, reproduzem comportamentos típicos do clero clássico e… nem tanto; reproduzem algo do clericalismo. Uma vez ordenados, o risco de fazê-lo com “autoridade” é ainda mais forte: “sou o ministro ordenado presbítero desta insignificante comunidade [não dizem, talvez nem pensem, mas agem assim por algum impulso inconsciente], recebi o sacramento da ordem, sou sacerdote, com poder de ordem e jurisdição, “alter Christus”, uma entidade quase divina… aqui, quem manda (em tudo e em todos) sou eu!”
O que quero dizer com “liturgismo”? A liturgia, sobretudo a celebração eucarística, é fonte e cume de toda a vida e ação da Igreja. No entanto, para sê-lo efetivamente, tem que estar conectada com toda a vida e atividades da comunidade. Claro que há ministérios litúrgicos, porém quem os assume não pode se restringir à liturgia, mas participar de toda a vida da comunidade, fazendo com que esta se expresse sacramentalmente na celebração e a celebração fortaleça sua vida e missão.
O “liturgismo” cria uma fratura entre culto e vida, entre liturgia e missão, entre Reino e mundo, em última análise, entre sagrado e profano.
Crê que muitos ministérios se cultualizaram excessivamente e se tenha perdido de vista outras perspectivas e tarefas pastorais?
Infelizmente, sim. O culto é o mais visível na Igreja e também nas comunidades. Confere status aos que o conduzem, que se veem cercados por uma aura sobrenatural. E é o mais fácil. “Administrar” um sacramento - com um pouco de “treinamento” – é materialmente fácil. Também entre nós, no Brasil, temos essa deformação. Basta dar uma olhada na distribuição dos ministros nos diversos ministérios: centenas de ministros da distribuição da comunhão numa paróquia razoavelmente grande; algumas dezenas de catequistas; dá para contar nos dedos de uma mão os engajados nas pastorais sociais. Esses dados são sintomas de problemas mais profundos.
A Igreja no Brasil seria uma Igreja emblemática para a implementação de mudanças nos ministérios que alavancariam outras iniciativas na Igreja universal?
Não se deve idealizar ninguém na Igreja nem Igreja alguma no mundo. No Brasil, temos caminhado muito, sobretudo nas primeiras décadas depois do Concílio, mas hoje, por uma série de fatores que outros poderiam analisar melhor que eu, experimentamos uma Igreja menos viva, sob vários aspectos cansada, menos vibrante, menos comprometida, às vezes acomodada no seu canto. Quando Aparecida fala de “Igreja missionária” ou de “conversão pastoral”, essas palavras se dirigem também a nós, à Igreja do Brasil.
Em matéria de novos ministérios, o momento carismático (no sentido de Max Weber) passou; desde Puebla (1979), estamos num momento de institucionalização. A Conferência de Santo Domingo, com todas as suas limitações, confirmou substancialmente o que haviam colocado as Conferências anteriores, porém num tom quase burocrático e protocolar. Apesar disso, claro que há também bispos que se dão conta dos desafios com mais profundidade e enxergam mais longe. Daí se pode esperar que alguma coisa nova se mova.
Na Igreja do Brasil se poderia dizer que se estão dando passos nesta direção? Há reuniões ou iniciativas para refletir sobre o tema?
Lobinger esteve algumas vezes no Brasil. A título privado. Sem alarde. Encontrou-se com alguns grupos de bispos. Seus livros são conhecidos, em alguma medida, por boa parte do episcopado. Ultimamente, depois do encontro do bispo Erwin Kräutler, do Xingu, PA, com o papa Francisco, o tema foi colocado em um momento da última [penúltima – NDT] Assembleia Geral da CNBB (abril de 2014) e se aprovou a constituição de uma comissão para refletir sobre a questão de como encontrar respostas para a situação das comunidades sem celebração regular da eucaristia.
São membros desta comissão Dom Raymundo Damasceno de Assis, [à época] presidente da CNBB, Dom Claudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, Dom Walmor de Oliveira, arcebispo de Belo Horizonte, e Dom Sergio Eduardo Castriani, arcebispo de Manaus. Estava programada uma reunião na sede da CNBB em Brasília para o mês de novembro (2014), porém teve que ser cancelada porque dois membros não poderiam estar presentes. A comissão vai se reunir em fevereiro [2015], dois meses antes da próxima assembleia geral da CNBB, quando suas propostas deverão ser apresentadas a todo o episcopado e discutidas.
Que passos seria necessário dar, teológica e pastoralmente falando, para caminhar na direção de a Igreja enriquecer-se com todo o potencial das mulheres na Igreja e construir, assim, uma Igreja mais fecunda?
Vou me ater ao aspecto ministerial da questão. As comunidades não viveriam sem as mulheres. Elas respondem pela maior parte dos serviços e atividades comunitárias. A catequese, por exemplo, está praticamente toda na mão das mulheres. No Brasil, temos cerca de 1.000.000 (um milhão) de catequistas. Isso é reconhecido e valorizado. Disso se fala em documentos do episcopado. Muitíssimas mulheres atuam nas equipes de liturgia, embora oficialmente não possam ser “instituídas” (este é o termo técnico desde a Tradição Apostólica de Santo Hipólito) leitoras e acólitas.
Nesse particular, o mínimo que teria que ser feito é revisar o cânon 230 do Código de Direito Canônico, que, na prática, não é respeitado, uma vez que, pelo menos entre nós as mulheres são leitoras e acólitas habitualmente (não só “ad casum”) nas mais diversas celebrações. Na Cúria romana, muitas funções desempenhadas por clérigos – às vezes, bispos, arcebispos e cardeais – poderiam ser exercidas por leigos e leigas. A mesma coisa nas Cúrias diocesanas. O Código de Direito Canónico, em relação a um grande número de ofícios eclesiais, está muito à frente de nossa prática. Lembro-me, por exemplo, de um estudo muito esclarecedor de Gustave Thils a respeito publicado algum tempo depois da publicação do novo Código.
Uma mudança significativa na questão ministerial pode aproximar-nos de outras Igrejas cristãs? Podemos aprender algo delas neste campo?
O papa Francisco já disse que a porta para a ordenação sacerdotal de mulheres está fechada. Isso mantém-nos próximos aos ortodoxos, mas nos distancia dos anglicanos e protestantes em geral. Porém não estaria fechada a porta para se discutir, por exemplo, o diaconato feminino. A questão aqui não é só a possibilidade teológica, mas sobretudo o seu significado no conjunto da ministerialidade da Igreja e seu perfil pastoral (ou seus perfis pastorais).
Que a maior parte dos diáconos se dediquem só ou quase à dimensão litúrgica de seu ministério é sinal de que há um problema: Não se acomodam no cultual porque a diaconia da palavra ainda não é tão sentida como nos meios evangélicos, além de a diaconia da palavra e a diaconia da caridade serem humana e ‘profissionalmente’ mais exigentes? Não estão fazendo (claro que um ministério não deve ser pensado só como um “fazer”) o que leigas e leigos também podem fazer e de fato já fazem? Não estariam suprindo precariamente a falta de sacerdotes?
Pessoalmente, penso que seria uma decisão equivocada ordenar indiscriminadamente (estou dizendo “indiscriminadamente”) os diáconos como presbíteros. Porém me parece que poderia ser um bom caminho a ordenação presbiteral de alguns dos diáconos com uma boa história de compromisso comunitário, uma boa vivência familiar, um bom testemunho do Evangelho na vida ordinária, em sua profissão, na vida civil. Eu olharia com muita atenção, por exemplo, para a experiência dos diáconos índios da diocese de San Cristóbal de Las Casas, no México. Entre os leigos, a experiência dos “Delegados da Palavra” que está se aproximando dos 50 anos em Honduras e em outros países da América Central me parece também merecedora de uma atenção muito particular.
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"Os padres não tem que fazer tudo". Entrevista com Antonio José de Almeida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU