17 Fevereiro 2018
No dia 12 de fevereiro, eu comecei a minha resenha do importante livro de Rafael Luciani, Pope Francis and the Theology of the People [Papa Francisco e a Teologia do Povo], e terminei observando que ele traça a influência decisiva dos vários encontros do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) ao longo dos anos. Vou tomar esse tema para concluir a minha resenha hoje, observando algumas conexões com questões eclesiais contemporâneas.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 14-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sobre Medellín, em 1968, ele observa que os bispos se comprometeram com “uma Igreja que trata os outros como agentes com responsabilidade compartilhada; vendo o lócus da situação do povo como um lugar para a revelação de Deus; uma Igreja que entende a si mesma não só como responsável e líder dos pobres, mas também como uma realidade que nasce e é evangelizada por eles”.
Quanto disso ressoa com o discurso Von Hügel proferido pelo cardeal Blase Cupich na semana passada, na Universidade de Cambridge? O cardeal falou sobre a Amoris laetitia e os desafios da vida familiar, mas repetidamente aplicou esses princípios a essa discussão também. A conversão pastoral no coração do papado de Francisco encontra suas chaves hermenêuticas nesses textos do Celam.
Luciani se volta para o Documento de San Miguel, adotado pelos bispos argentinos em 1969, ao longo do livro. Ele escreve:
“O Documento de San Miguel reconhece a cultura popular como o núcleo etnomítico que deve ser preservado e afirma que o povo precisa ser libertado de qualquer influência externa que o modifique através da ideologia. Entender o âmbito popular significa entender a matriz comunitária da experiência da fé. Como disse Rafael Tello, ‘a fim de se orientar para Deus, a cultura popular olha para seres humanos concretos, que, sendo sociais, existem em comunidade, isto é, em um povo, que, como um todo, vive entre as realidades terrenas. Esse é o seu mundo’. Assim, o âmbito popular é o local do ministério libertador ou profético, o que significa responder aos sinais dos tempos, como evidenciado na realidade sociocultural dos povos pobres, que constituem a maioria da humanidade.”
Não é um grande desafio perceber como essa experiência de fé pós-Vaticano II foi diferente na América Latina em comparação com a dos Estados Unidos, onde, cada vez mais, uma piedade altamente privatizada é a marca da identidade católica. E, novamente no documento de San Miguel, Luciani encontra outro prenúncio do Papa Francisco, quando esse texto fala de “uma Igreja dos pobres em fidelidade à sua existência como sacramento de Cristo”.
O encontro do Celam em Puebla, no México, em 1979, incorporou intuições dos Sínodos dos bispos que haviam se destacado em Medellín e especialmente na grande exortação apostólica Evangelii nuntiandi, do Papa Paulo VI. O documento final de Puebla vincula a evangelização da cultura com aquilo que tradicionalmente foi pensado como ensino social católico e, segundo Luciani, afirma: “Não é mais uma questão de ministério social da Igreja, mas é simplesmente uma questão de ministério pastoral ou evangelização, que inclui, como parte integrante, a dimensão social ou o avanço do ser humano em termos de desenvolvimento e libertação (cf. Puebla 355)”.
O documento de Puebla também observa que “situações novas que nascem de mudanças socioculturais exigem uma nova evangelização”, um tema que se tornaria dominante no pontificado de São João Paulo II, mesmo que esse tema tenha assumido um caráter diferente durante o reinado do pontífice polonês.
Mas, tanto para Puebla quanto para João Paulo II – e muito diferentemente da nossa inclinação estadunidense a separar não só Igreja e Estado, mas também religião e sociedade –, a libertação trazida pelo Evangelho “abrange as diversas dimensões da existência: o social, o político, o econômico, o cultural e o conjunto de suas relações. Em tudo isso há de circular a riqueza transformadora do Evangelho”.
Ao escutar essas palavras de Puebla (n. 483), pensamos nas palavras de São João Paulo II em sua missa inaugural, no mês de outubro do ano anterior, quando proclamou: “Abram as portas para Cristo”, e enumerou as portas da cultura, da economia e até mesmo do Estado que ele se propôs a abrir.
Foi em Aparecida, em 2007, que a Quinta Conferência do Celam destilou a teologia das sessões anteriores e a fermentou com o pensamento do Papa Paulo VI, ecoando explicitamente suas palavras aos camponeses de Bogotá em 1968: “Vocês são um sinal, uma semelhança, um mistério da presença de Cristo”. Os bispos reunidos no Brasil, assim como seus antecessores nos encontros anteriores do Celam, rejeitaram a “lógica de padronização da globalização cultural”, como afirma Luciani.
E, novamente, abrindo uma janela para um tema central do pontificado do Papa Francisco, o documento de Aparecida afirma a religião popular – “as festas patronais, as novenas, os rosários e via-sacras, as procissões, as danças e os cânticos do folclore religioso, o carinho aos santos” – não como “expressões rituais paralelas às oficiais”. Elas expressam uma mística que se manifesta em sua própria maneira [popular e cultural]”, uma “experiência de peregrinação interior” que se baseia na “ação interior da graça”. Isso não significa batizar a modernidade nem uma iteração do catolicismo liberal. Essa é a teologia que se posiciona junto do povo, com pessoas reais e a cultura que elas criam, celebrando precisamente aquelas expressões religiosas que certas pessoas modernas e cultas desdenham.
As críticas à modernidade que atravessa os vários documentos dos encontros do Celam dão seu fruto na Evangelii gaudium, a exortação apostólica programática do Santo Padre publicada em 2013. Os paradigmas neoliberais que dominaram no Fórum Mundial Econômico de Davos em janeiro são rejeitados de forma definitiva, e não existe nenhum número de conferências do Instituto Napa que levarão a Igreja a batizá-los. É sobre esse ponto, acima de tudo, que existe uma clara continuidade no ensino social católico entre o magistério papal pré-conciliar, os documentos do Vaticano II, os magistérios papais dos papas Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco.
Em uma palavra, a tentativa dos neoconservadores católicos estadunidenses como Michael Novak, Richard John Neuhaus e George Weigel de reivindicar uma nova direção no ensino social com base em uma leitura tendenciosa da encíclica Centesimus annus, de João Paulo II, é mostrada aqui como um projeto completamente fracassado.
Os capítulos subsequentes são intitulados “Geopolítica pastoral dos povos e suas culturas” e “Da cultura eclesial ao encontro pessoal com Jesus”. Eu esperava que o capítulo sobre geopolítica me ajudasse a entender aquele que eu considero há muito tempo como um déficit no ensino social católico (incluindo o do Papa Francisco), a incapacidade de reconhecer a paisagem política modificada quando passamos do nacional ao internacional. Ele observa corretamente as formas em que, na cultura moderna e globalizada, “o homem foi reduzido a apenas uma de suas necessidades: o consumo”, e que existem remédios na lei que uma nação pode adotar para enfrentar os males que daí decorrem. É, acredito, a ausência de qualquer estrutura normativa legal internacional que muitas vezes faz com que o ensino papal nessa área soe completamente irreal. Luciani não aborda essa questão, e por isso eu continuo confuso, mas é errado criticar um autor por não ter escrito o capítulo que se queria ler.
O que é diferente em Francisco, como explica Luciani, é a ênfase no povo e na cultura, e o objetivo da humanização. “O que humaniza não é simplesmente o reconhecimento da realidade pluricultural, que se limitaria ao respeito pelos espaços adquiridos e conquistados sociocultural e politicamente em termos de direitos, em particular os direitos políticos”, explica Luciani. “O que realmente humaniza é a interação intercultural e inter-religiosa, e a integração entre os diferentes grupos que coexistem em uma sociedade, a simbiose que é gerada em uma relação horizontal, construída sobre uma base íntima de sujeito para sujeito”.
A intuição de Luciani aqui exigirá uma reflexão teológica adicional. O que fica claro, mesmo para um não teólogo como eu, é que o tema da inculturação, tão pronunciado no pensamento do Papa Bergoglio, é ainda mais rico do que parecia no início e distingue Francisco de seus antecessores imediatos. A trajetória é do Vaticano II para Paulo VI para Francisco.
O capítulo final, sobre a cultura eclesial, aborda aquilo a que o Papa Francisco se refere quando invoca “o espírito do Vaticano II” e como, com Karl Rahner, ele reconhece a necessidade de superar o modelo tridentino da cultura eclesial para uma eclesiologia missionária e evangelizadora. A seção sobre “a patologia do poder” deveria ser uma leitura obrigatória para todos os católicos em posições de autoridade, sejam leigos ou clérigos. Certamente, ele dá forma às frequentes exortações do Papa Francisco contra o clero mundano e contra o orgulho em geral.
Este é um livro maravilhoso e importante. Enquanto o lia, eu estava no meio da reforma da antiga fazenda em que cresci. Como expliquei a um dos meus párocos favoritos, esse esforço é uma tentação quase diária de estar imerso na classe média e na classe média-alta preocupada com estilos e dinheiro, de modo que é muito fácil esquecer de agradecer que, ao contrário de muitos dos meus colegas humanos, eu tenho um teto sobre a minha cabeça e comida no meu prato. Como observei anteriormente, o grande dom da imigração latina aos Estados Unidos é que eles estão salvando o catolicismo, que estava sob o risco de se tornar um clube de classe média-alta para pessoas com ética sexual conservadora.
Luciani explica o que intuímos enquanto observamos o Papa Francisco: que o nosso maravilhoso Santo Padre não tem medo do chamado radical do discipulado cristão, que ele reconhece corretamente as ameaças ideológicas a tal discipulado e propõe um caminho alternativo para o povo fiel de Deus.
Apertem os cintos, colegas católicos: este papa está nos levando para a frente, levando-nos de volta para aquele vigor que caracterizou os primeiros cristãos, e o livro de Rafael Luciani é uma espécie de GPS teológico para essa jornada.
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Teologia do povo: as chaves para entender a ''Igreja dos pobres'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU