31 Agosto 2022
"Essa sabedoria da escuta significava que para Martini o ecumenismo não era apenas um dos temas que preenchem as agendas eclesiais: era um estilo que abarcava cada momento da experiência de fé", escreve Lidia Maggi, pastora batista italiana, em artigo publicado por Jesus, agosto de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ainda ouço em meus ouvidos o som de sua voz calma enquanto propõe um ícone bíblico para responder a uma pergunta. Para mim, jovem pastora protestante, era uma linguagem insólita que logo aprendi a apreciar e até a imitar, vislumbrando por trás da metáfora do ícone aquela inteligência do texto que surge ao habitar a cena narrada. Martini, de fato, não lia as Escrituras: ele morava nelas. Na casa da Palavra ele se movia como em um ambiente familiar, frequentado há muito tempo, com a liberdade de quem se sente em casa e, junto com a experiência de reconhecer um lugar ao qual se pertence, ousa pensar em diferentes arranjos e usos criativos dos ambientes.
Isso acontece quando se caminha pela vida morando na casa das Escrituras, colocando “Em princípio o Verbo”. Afinal, o testemunho de Carlo Maria Martini, embora articulado e marcado pelas diferentes temporadas atravessadas, encontra aqui as suas raízes. São as Escrituras judaico-cristãs, livro de um povo, que despertam nesse retraído estudioso uma paixão pedagógico-pastoral, que o levou a propor à sua Igreja itinerários de fé plurais e criativos.
São as Escrituras de Israel que mostram a raiz judaica da experiência cristã. É a biblioteca bíblica, composta de muitos livros, não simplesmente colocados lado a lado, mas um dentro do outro, numa relação dialógica e, às vezes, dialética, que indica o caminho do ecumenismo como comunhão na diferença. É a grande discussão bíblica, hospitaleira de muitos pontos de vista, sem qualquer impedimento, que sugere ousadas experiências de escuta mútua como a Cátedra dos não crentes.
A Palavra ouvida, estudada, meditada, orada, pregada, constituiu a Estrela do Norte do magistério de Martini e determinou seu estilo. Foi o ponto de referência para todas as decisões a serem tomadas. Tive o dom de poder ver essa sabedoria bíblica em ação não só lendo com extrema curiosidade muitas de suas intervenções públicas, mas também o encontrando pessoalmente nas iniciativas ecumênicas milanesas e europeias, no processo iniciado em Basileia em torno dos desafios principais da justiça, da paz e da salvaguarda da criação.
Em Milão vivemos uma experiência avançada de relações ecumênicas, feita de escutas mútuas, traduzida primeiro no canteiro de obras do Observatório Interconfessional de Milão e depois no Conselho das Igrejas Cristãs. Pessoalmente, aprendi com Martini - assim como com Paolo de Benedetti e Martin Cunz - a importância decisiva do diálogo cristão-judaico.
É prestando atenção a aquela primeira divisão que surge uma luz para enfrentar aquelas subsequentes entre as diferentes confissões cristãs. Também de Martini aprendi a sabedoria de uma leitura das Escrituras à altura dos desafios do presente, arrebatando o ecumenismo das disputas do passado. Uma sabedoria que não é uma mera aplicação do texto bíblico à situação, uma atualização da palavra antiga. Como se a Palavra não fosse atual em si mesma! Em Martini estava em andamento uma verdadeira operação de escavação, realizada em ambas as direções: aquela da história e aquela das Escrituras.
Essa sabedoria da escuta significava que para Martini o ecumenismo não era apenas um dos temas que preenchem as agendas eclesiais: era um estilo que abarcava cada momento da experiência de fé.
Não imediatamente intui isso. Porque na época eu era uma jovem pastora, uma novata, saída do curso de formação teológica com o estandarte da polêmica confessional. Diante do elefante da Igreja de maioria, reivindicava o meu não ser católica. Lembro-me que, com uma ingênua temeridade, depois de uma celebração ecumênica no Duomo de Milão, escrevi a Martini que achava inapropriado o bispo católico ocupar a posição central entre os celebrantes e que eu tinha me sentido como uma coroinha! Quando você é jovem, é capaz de tudo! E ele, em vez do clássico levantar de ombros diante de um interlocutor impertinente, pegou caneta e papel e me respondeu, com sua caligrafia minuciosa, assumindo minhas observações e propondo para o futuro outra forma de encontro entre cristãos de diferentes Igrejas.
Uma lição de escuta e estilo que me fez largar de vez o estandarte da polêmica. Tomada em si, é uma anedota pessoal. Mas olhando em retrospectiva para aquele estranho início de comunicação entre o bispo e a jovem pastora, percebo nele um fragmento capaz de dizer o todo de uma maneira de viver o ministério à insígnia da escuta.
Ainda me lembro de uma de suas pregações no Templo Valdense em que, comentando o capítulo 8 da Epístola aos Romanos, confessou aos presentes que, depois de décadas de revisitação e estudo, aquele texto permanecia um mistério para ele. Uma sabedoria que sabia dizer "não sei". Do mesmo modo, a sua paixão ecumênica traduzia uma escuta contínua, livre da tentação de formular juízos definitivos, atenta a discernir os sinais dos tempos. Como não agradecer ao nosso comum Senhor por nos ter doado um irmão assim?
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No princípio o Verbo. Artigo de Lidia Maggi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU