16 Agosto 2022
Maria Stefania Martini, conhecida como Maris, é uma mulher alta, bonita, de olhos claros. O ar de família é esse. Aos 88 anos, está passando alguns dias em uma casa de repouso no Lago de Garda; "mas só para emagrecer".
A entrevista com Maria Stefania Martini, irmã do cardeal Carlo Maria Martini, é de Aldo Cazzullo, publicada por Corriere della Sera, 15-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Senhora Maris, como era seu irmão, Carlo Maria Martini?
Carluccio. Todos na família o chamavam assim. Quando alguém o chamava de Carlo Maria para deixar claro que era íntimo dele, eu sorria.
Como era Carluccio?
O melhor irmão que eu poderia sonhar. Ele trazia minhas amigas em casa de bicicleta. Ele organizava mercadinhos para nós, brincadeiras com bonecas.
Ele também brincava?
Não, ele gostava de brincar de esconde-esconde com os outros meninos. Mas não era um líder. Ele cuidava dos amigos, prestava atenção para que ninguém ficasse excluído.
Como ele era na escola?
O melhor. Sempre me lembro dele debruçado nos livros. Passava os deveres de casa para o colega de classe, mas lhe dizia: "Tem certeza que é para o seu bem?" É por isso alguns não gostavam dele. Francesco, nosso irmão mais velho, batia nele gritando: "Você é um certinho, te farão Papa!"
Ele chegou perto.
Ele absolutamente não queria. Você se lembra dele no funeral de Wojtyla, na véspera do conclave de 2005? Ele veio mancando, apoiado em um bastão retorcido. Eu nunca tinha visto um bastão assim em sua vida. Sentou-se em São Pedro e colocou-o à sua frente, ostentando-o o máximo possível. Era a sua maneira de dizer: "Não votem em mim."
Carlo Maria Martini (Foto: Ayrton's Biblical Page | Reprodução)
No entanto, nesse conclave ele teve pelo menos 35 votos.
Que, dizem, fez reverter para Ratzinger. Eles tinham ideias diferentes; mas meu irmão o considerava o homem certo para a Igreja naquele momento.
Como era a relação entre eles?
Quando perguntei isso a ele, depois que Ratzinger se tornou papa, ele apontou para uma gaveta com o mencionado bastão. Dentro estava a correspondência trocada entre eles. Eles se confrontavam sobre a Bíblia, tratando-se rigorosamente de forma formal.
Em seu livro “A infância de um cardeal” a senhora cita um testemunho de Alfonso Signorini, diretor de “Chi”.
O tema era a homossexualidade de Signorini, que confidenciou seus sofrimentos ao meu irmão. Ele respondeu que "seremos lembrados por quanto amamos". Uma frase em que não reconheço seu estilo; mas ele a encontrou em São João da Cruz, na qual estava trabalhando para um ciclo de exercícios espirituais.
A família Martini era religiosa?
Nossa mãe, Olga, sim. Nosso pai Leonardo, engenheiro, nem tanto. Mas Carluccio nasceu com a vocação dentro de si.
Ele teve alguma namorada?
Não. E quando Montanelli perguntou se ele havia tido tentações, ele respondeu: você acredita que isso interesse aos leitores? Lembro-me dele em 1940, no Lido de Camaiore, parando para rezar num convento perto da praia. Uma graça natural, que ele sentia que deveria confirmar com sua própria vida. O resto foi feito pelos jesuítas. Um dia, em 1941, ele começou a jogar os livros de nosso pai no rio Pó...
No Pó?
Carluccio tinha trazido para casa o Índice dos livros proibidos, e percebeu que a biblioteca da casa estava cheia deles; começando por Balzac. Havíamos saído da nossa casa natal na via Cibrario e nos mudamos para o Lungo Pó. Meu irmão e minha mãe desceram para a beira do rio. Ela tirava a folha de rosto dos livros, para apagar o título e o autor; e os atirava com toda a força no meio do rio, para que a corrente os levasse.
Quando decidiu tornar-se padre?
Em setembro de 1944. Foi para Cuneo, para o seminário. Como sabia alemão, passou a ser intérprete: conheceu Peiper, o carrasco de Boves. Meu pai sofreu muito por ter que se separar dele. Ele escreveu para seu irmão Pippo e sua irmã Elena, lamentando-se porque estava perdendo seu filho predileto. Ambos responderam que seria uma bênção para toda a família.
Foi assim?
Não somos santos. E Carluccio não era um asceta. Ele era um homem que gostava das alegrias da vida. Por exemplo, ele gostava de ir a restaurantes: quando era reitor da Gregoriana descobriu a culinária de Roma, comíamos juntos alcachofras alla giudia e à carbonara. Claro, era um homem de grande fé.
Ele nunca tinha dúvidas?
Se as tinha, confiava-as ao confessor, não a nós. Em 1972 perdemos em poucos meses nosso pai, nossa mãe e nosso irmão Francesco, atingidos por um derrame cem dias depois de ter casado. Foi uma dor terrível. Algum tempo depois confidenciei a Carluccio, ele já era arcebispo de Milão. Ele me disse: "Maris, não é como você diz. Eles não estão mortos. Estão aqui conosco. Você não os vê?" Olhei para cima e atrás dele vi nossa mãe, pai e Francesco.
A vossa mãe também sofreu por sua escolha?
Sim. Deve ter sido em 1949, quando Carluccio estudava teologia em Chieri, quando teve pneumonia. A mãe queria levar-lhe um travesseiro mais macio; mas não permitiam que as mulheres entrassem no convento. Lembro-me dela segurando e beijando o travesseiro no qual seu filho teria descansado a cabeça, antes de entrega-lo ao pai para que o levasse para ele.
O jovem Martini viajou muito, na América e na Terra Santa.
Perto de Jerusalém, vindo do Egito, caiu num poço. Ele estava visitando um sítio arqueológico quando a terra desabou sob seus pés e ele caiu. Ele se salvou por milagre, mas quebrou a câmera que carregava no pescoço. Era minha, eu a tinha emprestado para ele. Ele ficou muito chateado.
Foto: Sermig | Reprodução
Que relação tinha com Wojtyla?
Certamente não sentiam a mesma harmonia que unia meu irmão a Paulo VI. No entanto, foi Wojtyla quem o enviou para Milão, embora fossem tão diferentes. Éramos uma família burguesa, nossa ama veneziana, Lisa, veio para a ordenação episcopal com sua filha, Elsa. Nós as apresentamos ao Papa, que, no entanto, não entendia a palavra "ama". Elsa teve uma saída genial: "Sou filha da empregada." Wojtyla assentiu.
Como você se lembra da cerimônia?
Quando meu irmão se prostrou diante do Papa, vi que seus sapatos estavam furados. O bispo africano ao lado estava com sapatos lustrados. Carluccio não gostava do Vaticano, sentia-se sufocar. As cerimônias o entediavam, os formalismos o incomodavam. Ele vestiu as meias vermelhas de cardeal, bufando.
Ficou feliz em ser transferido para Milão?
Tudo aconteceu de repente. Ele lamentou deixar Roma e seu clima quente. Somos de Turim, nossa igreja de referência é a Consolata. Para os milaneses, por outro lado, o Duomo, o arcebispo, são tudo. Ele se sentiu muito bem. Muitos - Albertini, de Bortoli, Liliana Segre... - o adoravam.
Mas antes teve a Milão do terrorismo.
Meu irmão celebrou casamentos e batizados na prisão. Ele foi criticado por isso; mas ele sempre teve paixão pelo diálogo. Ele reuniu carrascos e vítimas. E fez com que lhe entregassem dois sacos cheios de armas. Perguntei a ele: e se te pegassem? Acredito que ele havia avisado a polícia e os magistrados. Ao seu secretário só havia dito: eles vão trazer esses dois sacos, e só pegar. Era a rendição incondicional dos terroristas. O início da pacificação.
Depois veio a Milão para beber.
Havia muito dinheiro circulando. Com as ofertas ele abriu a Casa da Caridade, o museu diocesano... Agora mandei fazer uma Rosa que leva seu nome e, como por alguns anos a produção é limitada, peguei todas as rosas, para presenteá-las nos lugares que Carluccio tinha no coração. Em primeiro lugar, justamente, a Casa da Caridade, o museu, as prisões.
Então chegou a Tangentopoli (Operação que resultou na Mãos limpas na Itália, ndt).
Eu disse a ele: você profere os seus discursos, depois os teus párocos pedem para votar na Lega... Ele sorriu. Ele era um homem muito espirituoso e de boa índole.
E ele foi para Jerusalém.
Ele dizia: "Em Jerusalém é maravilhoso morrer, mas é terrível ser moribundo." Ele morava no Pontifício Instituto Bíblico, tinha Parkinson, precisava de tratamento, às vezes caía, mas não queria incomodar os coirmãos, que passavam o dia inteiro fora estudando. Ele sonhava em ser enterrado no Vale de Josafá, onde será realizado o Juízo Final; veio morrer em Gallarate (na Itália, próximo de Milão, no antigo filosofado jesuíta)
Dez anos atrás. Na casa dos jesuítas. Seis meses antes da renúncia de Ratzinger e da eleição de Francisco.
Havia conhecido superficialmente Bergoglio em 1974. Ambos estavam em Roma para a congregação geral da Companhia de Jesus. A cisão entre conservadores e defensores da teologia da libertação era terrível, meu irmão estava tentando mediar. Para acalmar os ânimos, o padre Arrupe, que tinha uma bela voz, cantava uma canção nos momentos de máxima tensão.
O Cardeal Martini temia a morte?
Sim. Talvez porque ele previu que seria uma morte pública. O arcipreste perguntou-lhe em que parte do Duomo ele queria ser enterrado. Ele respondeu: "o senhor escolhe".
Como você se lembra de 31 de agosto de 2012?
Os meus filhos, Giulia e Giovanni, mandaram me chamar. Eu estava segurando sua mão, mas ele não estava mais consciente. Ele teve uma bela morte; com muita gente à sua volta, no entanto. A sala estava lotada, havia doze pessoas em seu quarto. Lembro-me de uma horrível manta de lã peruana, bordada com borboletas e flores. Era 31 de agosto e simplesmente não era necessária. Uma freira a havia colocada sobre ele, temo que para rasgá-la em pedaços para serem espalhados como relíquias. Mas eu teria preferido um lençol branco e um travesseiro macio, como aquele que nossa mãe havia levado para ele há muito tempo. Como na iconografia da morte dos santos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O jovem Carlo jogava os livros proibidos de nosso pai no rio Pò.” Entrevista com Maria Stefania Martini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU