04 Setembro 2017
Nas bancas, junto com o jornal diário, os textos do cardeal jesuíta desaparecido há cinco anos ‘Reflexões sobre a Sagrada Escritura, a atenção às mudanças na sociedade’. O primeiro título da coleção é "Dar voz a cada um".
A reportagem é de Paolo Baldini, publicado por Corriere della Sera, 31-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
A última dedicatória, na página final, trazia uma palavra inclinada, suave, firme: "Orem!". O príncipe da Igreja e da Palavra de Deus. A oração como um ato de devoção, amor e regeneração. Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão, que deveria ser Papa, o intelectual da Igreja que se tornou um insuperável pastor, o homem do diálogo, da pobreza, da cátedra dos não-crentes, o sacerdote que, se a vocação não o tivesse alegremente arrebatado, teria sido um (grande) jornalista, o sacerdote com os olhos azuis a quem as Brigadas vermelhas entregaram as armas; o cardeal Carlo Maria Martini, portanto, viveu seus últimos dias, naquele agosto de 2012, com uma insuperável vontade de viver.
Certo dia citou Victor Hugo, Os Miseráveis, sobre o renascimento do prisioneiro Jean Valjean por obra do Bispo de Digne, o amado monsenhor Myriel. Citou Valjean para lembrar um antigo temor: "Quando fui ordenado em Milão por João Paulo II, pensei que me esperava ser um homem sozinho, como se me tivessem colocado em um nicho, longe das pessoas. E que isso poderia acontecer de forma bem mais acentuada em uma diocese grande, como Milão, que vai do Ticino ao Adda. Lembro-me que, ao expor minhas dúvidas, o Pontífice me confortou: não tenha medo, serão pessoas que virão ao seu encontro".
Eis, portanto: a exigência de se comunicar, para se fazer entender. Martini era atento, curioso. Ele pedia informações, se aprofundava, refletia e se indignava. Perdoava e era severo. "Se o que se quer é um bispo profeta, é preciso dar-lhe muito tempo para orar". Escreveu O Bispo na esteira da grande tradição do Liber pastoralis, de Gregório Magno a Carlos Borromeu. Era para ser o primeiro passo de uma série, cujo título é uma declaração de intenções: "O cuidado com as palavras" O convite é também o fio condutor da iniciativa editorial que o "Corriere della Sera" propõe, cinco anos após a morte do cardeal, para recordar a sua figura e as suas obras.
Martini foi um exemplo de militância nas questões da modernidade e da Nova Sociedade, da inseminação artificial ao testamento biológico, do relacionamento com o Islã e as outras religiões, do celibato dos padres à ordenação de mulheres. Mas, mesmo sobre questões ainda hoje candentes, tais como as relações com a ciência, os não- crentes, os comportamentos amorais da política, a corrupção e a culpada desatenção para com o próximo: espírito de pobreza e renúncia de todo interesse, a força de todos os servidores fiéis do estado, de todas as pessoas honestas. "A história mostra como o fechamento apriorístico da Igreja, e das religiões em geral, diante das inevitáveis mudanças ligadas ao progresso da ciência e da tecnologia nunca tenha sido de grande utilidade. Galileu Galilei docet".
Assim Martini descreveu o bom bispo: "Um homem humilde que sabe vencer as dificuldades com a própria suavidade, que sabe ser discreto, que sabe rir de si mesmo e da própria fragilidade. Que sabe reconhecer os seus erros sem muitas auto-justificações. Em suma, um homem de verdade".
Ele acreditava na oração de intercessão. Seu lema episcopal, na tradição da regra pastoral de São Gregório Magno, era Pro veritate adversa diligere. O pior dos castigos era para ele não ser entendido ou, pior, ser mal compreendido. Em sua biblioteca, obras escolhidas: a nata de uma vida de leituras em vários idiomas, antigos e modernos. Em um canto, com modéstia, uma bela fotografia de Ano Novo, feita no seminário de Turim: entre os rostos felizes dos alunos, destacava-se um jovem alto e distinto, com os cabelos cortados à escovinha, o olhar brioso. A voz, o veículo da Palavra, silenciou-se um dia de maio de 2010, após uma internação no hospital San Raffaele. Tornou-se um sopro leve, parecia vir de muito longe. A onda de altíssima espiritualidade forçada a se retirar, a recuar diante da doença ruim, o mal de Parkinson, com o qual havia se acostumado a conviver desde os dias felizes de Milão. Restrição física, não do pensamento ou da alma.
O que sobrava do arcebispo que Milão tinha aprendido a amar à primeira vista, como acontece nos grandes amores? Daquele homem sobravam a figura imponente e a luz de bondade no olhar. "Vocês viram os melhores momentos e os piores momentos", disse ele. Sua última morada foi o Instituto Aloisianum de Gallarate, a residência dos Jesuítas a 40 quilômetros de Milão, o refúgio final depois dos anos de meditação e de estudo em Jerusalém.
A cidade, através de cartas para o "Corriere", buscava por ele, à procura de conforto. Ele sabia que a tecnologia lhe permitiria estender a relação, e, se possível, melhorá-la com aqueles que acreditavam nele e o chamavam de "eminência reverendíssima" ou mesmo simplesmente "querido Carlo Maria". A resposta havia sido traçada há tempo: "Estarei com vocês aonde quer que eu vá". Turim, Roma, Milão, Jerusalém.
Ele disse: "Em Jerusalém atrai-me o fato de que Jesus viveu lá, que morreu lá, que lá seja possível rezar no Calvário. Atrai-me esse povo, o povo judeu, que ao mesmo tempo traz tanto sofrimento, tanta dificuldade no convívio. Parece um cadinho do futuro. Por quê? Porque os sofrimentos do mundo estão tão presentes em Jerusalém que é provável que, se houver um futuro, este terá que passar de alguma forma por lá".
Ele mantinha uma Bíblia aberta sobre uma modesta mesinha de fórmica. Perto dela, um boneco do Ursinho Pooh, um presente, um copo de limonada, pequena delícia entre os remédios amargos, os óculos de aros dourados que os tremores de Parkinson faziam deslizar no nariz.
As reuniões na redação eram encontros editorias comentados. Fazia a revisão dos textos, era flexível. Sugeria títulos fortes, sem medo. Na parede, o diploma do Premiolino, o reconhecimento que recebeu em 2010 por sua coluna no "Corriere". Mês após mês, ensinou aos seus leitores que o paraíso existe, que os anjos da guarda nos acompanham e protegem.
Ele gostava de repetir as palavras do Cardeal Schuster: "Respiro com a Igreja em sua própria luz, de dia, em suas próprias trevas, à noite". Citava bastante esta passagem: "Da mesma forma, o Espírito nos ajuda em nossa fraqueza, pois não sabemos como orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis: e aquele que sonda os corações conhece a intenção do Espírito, porque o Espírito intercede pelos santos de acordo com a vontade de Deus" (Rm 8: 26-27). Ele não temia a crise "a ser enfrentada com coragem civil." Tentava explicar o significado da dor. Definia a cidade como o local de uma identidade que se recria continuamente, a partir do novo, do diferente, na coordenação das tensões. Acolhendo, não apenas contendo. A cidade dos fracos, dos últimos, dos honestos e dos iguais.
Quando lhe pedimos para comentar sobre o escândalo da pedofilia, que já era um tsunami, ele levantou-se e saiu da sala em silêncio. Estava perturbado, sofria pela humilhação da Igreja, tinha lágrimas em seus olhos. Rezou em recolhimento por uns dez minutos, em seguida, reapareceu. Estava comovido, mas aliviado. Recordou as palavras de Jesus: "Mas ai daquele que produz escândalos! Seria melhor para ele que lhe amarrassem uma pedra de moinho no pescoço e o jogassem no mar, do que escandalizar um desses pequeninos". Poucas linhas, dignas da primeira página.
Ele costumava dizer: "Eu gostaria de ser parte de uma igreja que se indigna e combate ao lado dos pobres e dos despossuídos, que escova a boca dos poderosos da terra, quando a enchem para falar de Deus e estão tão distantes em sua prática". Quando começou a coluna, na primavera de 2009, escreveu: “Hoje, a negação da verdade muitas vezes assume a figura da omissão consciente e culpada, condicionada pelo medo ou pelo interesse, ou mesmo pelo amor ao sossego: guarde-me o Senhor dessas armadilhas!”.
Ao padre Georg Sporschill, com quem escreveu o livro Conversações noturnas em Jerusalém, disse que a Igreja estava atrasada em duzentos anos. A entrevista foi transmitida para o mundo todo. Pensando sobre o sucessor de Ratzinger, delineou um perfil que conduzia exatamente ao papa Bergoglio. "É como se o cardeal Martini tivesse este homem diante de seus olhos, quando expressou sua própria dor pela Igreja europeia cansada e traçou um esboço de um bispo e Papa preparado para os desafios da atualidade. Um pastor da Igreja deveria ter ou assegurar através de seu entourage mais íntimo, a proximidade com as pessoas e, principalmente, a compaixão pelos pobres e pelos jovens".
Sporschill acrescentou: "O fundador da ordem, Inácio de Loyola, tinha certeza de que Jesus estava enraizado e vivesse em cada coirmão. Com essas raízes profundas, cultivadas através dos exercícios espirituais, o jesuíta ganha uma liberdade com a qual pode se aventurar em cada missão, local ou encontro. Lá, aonde há mais necessidade. E com essa liberdade também ganha a coragem de enfrentar os poderosos quando afligem os homens".
Conta-se que no conclave de 2005, quando foi eleito Joseph Ratzinger, o cardeal Martini tenha dado um passo à frente e, com o então cardeal Bergoglio, abriu o caminho para Bento XVI, "humilde servo na vinha do Senhor". Não sabemos se realmente aconteceu assim, declara Sporschill. Mas, talvez, a voz “indica o caminho pelo qual o Espírito Santo conduziu a Igreja, e que hoje leva para o futuro".
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O legado de Carlo Maria Martini para Milão e para a Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU