22 Dezembro 2011
O grande mérito do ensino e da obra do cardeal Carlo Maria Martini está precisamente em ter se assentado nas encruzilhadas da "cidade do homem", desenrolando ali o mapa da "cidade de Deus", não como antitético, mas como capaz de interação e até de integração.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 18-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Diferentemente dos mais numerosos colegas leigos, os Meridiani celestes/celestiais dos Classici dello Spirito [referência à coleção italiana de obras dos maiores escritores italianos e estrangeiros] até agora não tinham hospedado personagens vivos. A regra foi rompida com os escritos e os discursos do cardeal Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão de 1979 a 2002, uma espécie de minioceano textual, circundado por suntuosos aparatos introdutórios, exegéticos e bibliográficos, e capaz de velejar rumo às duas mil páginas.
Somos, portanto, tomados por uma verdadeira vertigem quando nos assomamos a tal paisagem tão ornado e imenso, até porque – como se sabe – não poucos desses escritos tiveram uma gênese oral, um pouco como tinha acontecido nos primeiros séculos cristãos com muitos Padres da Igreja: o seu ensinamento, a sua homilética, as suas catequeses proclamadas em público eram cristalizados pelos discípulos nas linhas dos códices.
Justamente por causa dessa fluidez, versada sobre longos arcos de tempo, tanto de magistério acadêmico ou eclesial, tanto de comunicações em diversos níveis, salta logo aos olhos a dificuldade da obra à qual se submeteram os organizadores Damian Modena e Virginio Pontiggia, sendo sempre à espreita as críticas inerentes às seleções.
Igualmente admirável foi o empenho de Marco Garzonio, o maior "especialista" martiniano, que pintou um retrato biográfico do cardeal de extraordinária acribia e de deliciosa fruibilidade. A um escritor de escrita feliz, mas também de viva sensibilidade cultural, como Ferruccio Parazzoli coube traçar as palavras de abertura da coleção, oferecendo ao leitor, talvez perdido, um guia que já se resume no título do seu ensaio, Martini, uomo di fede nella città dell'uomo [Martini, homem de fé na cidade do homem].
E, efetivamente, o grande mérito do ensino e da obra dessa figura que ainda incide sobre o nosso tecido civil e eclesial, apesar da atual fragilidade física, está precisamente em ter se assentado nas encruzilhadas da "cidade do homem", desenrolando ali o mapa da "cidade de Deus", não como antitético, mas como capaz de interação e até de integração.
É significativo, de fato, que, percorrendo a sequência muito densa das páginas, atestadas por registros, gêneros, símbolos e narrações diferentes, sempre se consiga intuir como a fé cristã proposta pelo cardeal, mesmo conservando a pureza absoluta da transcendência que as impede de cair na ideologia ou de se empoeirar de moralismo, se faz imanente às lacerações, às controvérsias, aos sofrimentos, às expectativas, aos diálogos da história, ou, melhor, da cotidianidade.
A essa luz, é feliz o título do livro, embora em sua aparência de estereótipo. As razões do crer – aceno às razões da esperança da Primeira Carta de Pedro (3, 15) – nos conduzem, de fato, ao verbo capital da fé, "crer", unido, porém, com a racionalidade que o confronta com toda a gama de realidades contingentes, da política à religiosidade, da violência ao voluntariado, do desconforto à informação, do choque de culturas ao diálogo social e inter-religioso, do trabalho à espiritualidade, das revelações contingentes à exegese bíblica, e assim por diante.
Todas essas temáticas fazem parte dos anos biográficos de Martini, anos que abrangiam um século atormentado e vivaz como foi o século XX. Pois bem, ele foi capaz de interceptar esses filamentos culturais, sociais e espirituais, tentando justamente tecê-los novamente segundo o projeto da "cidade de Deus", um projeto que – repetimos – não é alternativo ou antitético, mas sim pronto a se encarnar, fecundando aquela história com a qual se confronta.
É, então, igualmente feliz nesse Meridiano não só o título, mas também a articulação estrutural da imponente massa textual. Ela é apresentada em um tríptico com base nas três cidades biográficas, mas ao mesmo tempo simbólicas do cardeal. Eis, sobretudo, Jerusalém, a cidade da Revelação divina nas palavras das profecias e na carne de Jesus Cristo: aqui, por exemplo, desfilam três figuras bíblicas, objeto de muitos textos também, Abraão, Davi e João, o Evangelista, e aqui são colocadas aquelas surpreendentes Diálogos noturnos em Jerusalém com o jesuíta austríaco Georg Sporschill, que apareceram em 2008 e se destinaram a produzir muitas reações críticas e até mesmo escandalizadas.
A segunda placa do tríptico vê Roma surgir como centro do corpo eclesial, onde os protagonistas são Pedro e Paulo, "as colunas da Igreja", a cada um dos quais é dedicado um texto, fruto também de muitos Exercícios Espirituais.
É nesse perímetro que entra em cena a famosa "Cátedra dos não crentes", uma série de encontros distribuídos entre 1987 e 2002, nos quais ganhavam voz as reflexões e as instâncias de não crentes que interpelavam os crentes com perguntas radicais. "Eu pensei – afirmava o cardeal – naqueles que não estão imediatamente presentes no fanum, no templo, e senti o desejo de ouvir outros, tão diferentes quanto possível de nós. Diferentes de nós, mas dotados de uma tensão espiritual, carregada de força".
É interessante, a esse respeito, a evocação que ele faz de um apólogo rabínico citado por Martin Buber: "Um crente continua sussurrando ao não crente que está em mim: 'Talvez seja verdade'. Um não crente, ao contrário, continua sussurrando ao crente que está em mim: 'Talvez não seja verdade'. E nessa tensão desenvolve-se o nosso pensar e a nossa busca, qualquer que seja o destino".
Assim, chegamos à terceira cidade que é, naturalmente, Milão, a sede do ministério episcopal martiniano. Aqui são recolhidas as Cartas Pastorais: a seleção opta pelas primeiras cinco sobre a contemplação, a Palavra de Deus, a Eucaristia, a missão da Igreja e a caridade. Mas também foi de grande impacto aquela dedicada aos meios de comunicação de massa, Il lembo del mantello, de 1991, embora agora necessariamente mais datado.
Aqui aparecem também os seguidíssimos Discursos de Santo Ambrósio, dirigidos todos os anos à cidade por ocasião da festa do padroeiro. Aqui brilha ainda mais aquela capacidade de Martini de estar no templo sem excluir a praça, de mirar ao eterno caminhando no tempo, de estar na fronteira abrangendo com o olhar todos os territórios.
A fé que o cardeal propõe é, de fato, ao mesmo tempo, certeza e risco, presença e expectativa, esperança e sofrimento, eterno e história. Espontaneamente, lendo as páginas de Martini, retorna à mente o Kierkegaard de Temor e tremor: "A fé é a mais alta paixão de todo homem. Talvez haja muitos homens de cada geração que não a alcancem, mas nenhum vai além dela".
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Martini: cardeal de três cidades. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU