Carlo María Martini, um ‘in memoriam’ que continua

Cardeal Martini, em 1984 | Foto: Fondazione Carlo Maria Martini

12 Julho 2022

 

 

 

 

 

 

O artigo é de Felisa Elizondo, teóloga, publicado por Religión Digital, 11-07-2022.

 

Eis o artigo. 

 

Em breve completarão dez anos desde a morte de Carlo Maria Martini, Cardeal de Milão, conhecido por suas publicações e por sua presença em momentos importantes da história eclesial e cultural recente.

 

Com esta ocasião, multiplicam-se os estudos sobre seus escritos – um número impressionante de títulos – reconhecimentos de sua obra, memórias pessoais e esboços biográficos. Temos também biografias mais detalhadas e o documentário Sono uno di voi que traz a assinatura de Ermano Olmi, o admirado diretor de cinema que se orgulhava de ter podido fazer o registro cinematográfico. E em diferentes páginas da Internet você encontra gravações e fotografias que trazem a presença de um homem de estatura notável e olhos claros que combinavam elegância e humildade ao mesmo tempo. Que baixou os olhos diante dos aplausos mas, ao contrário do que apontava com ironia um clássico, para o qual “a grandeza não era grande”.

 

 

Antes de vê-lo vestido de cardeal na fachada do Duomo de Milão, diocese que em sua chegada em 1980 já ultrapassava cinco milhões, minhas lembranças me levam a um jesuíta com clergiman cinza, que nos anos setenta, com voz lenta, comentou os salmos ou o evangelho do dia anterior a grupos de pessoas que leram alguns de seus primeiros livros ou seguiram suas aulas no Pontifício Instituto Bíblico e na Universidade Gregoriana. Alto, afável em sua seriedade, com um olhar atento a quem se aproximava para cumprimentá-lo ou fazer perguntas, lia as passagens bíblicas com simplicidade e sem gabar-se de erudição. Aproximou-os da vida como se fossem palavras recentes e decisivas para aprendermos a ser cristãos. Quem o ouvia na época só podia suspeitar um pouco do que a Palavra significava para o especialista em crítica textual que era o professor Martini.

 

A palavra na cidade

 

Nas abas de muitos de seus livros - as edições se multiplicaram - você encontra um resumo de seus estudos e pesquisas no mundo dos textos bíblicos. Desde sua entrada em Milão - a pé, apenas com o Evangelho na mão e desenhando uma bênção diante dos muros da prisão de San Vittore - surgiram imagens que documentam uma recepção massiva, só comparável à fila interminável de pessoas que queriam vê-lo antes de ser sepultado aos pés do altar de San Carlos Borromeo.

 

Cardeal Martini visita o centro de detenção de San Vittore (Foto: Acervo da Diocese de Milão)

Não negou a surpresa ao receber a nomeação e mostrou resistência em aceitar uma tarefa pastoral para a qual se sentia despreparado. No entanto, nos 22 anos de seu arcebispado, ele promoveu múltiplas iniciativas - algumas realmente inovadoras como a "Cátedra dos não crentes" - e seus gestos e palavras delinearam uma pastoral que sempre partiu da escuta da Palavra: "ele trouxe a Bíblia a todas as paróquias de Milão”, diz um de seus colaboradores mais próximos.



O compromisso de Martini foi dividido em capítulos como o ecumenismo, o diálogo com as comunidades judaica e muçulmana, a evangelização em territórios distantes, além do que dizia respeito à Conferência dos Bispos europeus da qual era presidente, as relações com a sociedade civil e os expoentes da cultura, o encontro com o cidadão comum e, em particular, a atenção aos setores mais necessitados de consideração e ajuda. O conjunto de suas Cartas Pastorais desde as primeiras, dedicadas à oração, reflete um modo de entender a evangelização a partir do Evangelho lido, contemplado e feito ressoar no centro e nas periferias da cidade moderna progressivamente secularizada: “antecipou – escreve Andrea Riccardi- o que tem sido chamado de 'espiritualidade global'”.

 

Sua “reverência” pela Palavra, que estudou desde jovem e ao longo de sua vida, foi lembrada. Vários outros traços poderiam ser apontados em seu modo de compreender e viver aquela Palavra nunca esgotada: "lâmpada para os meus passos... e luz no meu caminho", repetiu com o salmo 118. Confiante nessa luz, entrou para enfrentar as dificuldades em busca de mais verdade: "Pro veritatem adversa dilligere" era seu lema episcopal. E foi assinalado também o seu incansável apelo a rezar e a construir comunidades que, ao estilo das primeiras, levem o fermento evangélico às cidades dos nossos dias.

 

Não é possível resumir em poucas linhas o que o Cardeal significou para toda a diocese ambrosiana, que presidiu entre 1980 e 2002, prolongando uma história que distinguiu figuras que costumava recordar com tanta verdade como modéstia. E essas foram décadas marcadas primeiro pelo terrorismo, corrupção e desemprego e, por toda parte, pela imigração e crises econômicas e sociais. De Milão ele viajou para muitos outros lugares e países onde sua contribuição foi solicitada por ocasião de congressos ou encontros inter-religiosos.

 

Consciente de deixar de fora facetas muito marcantes, limitar-me-ei a apontar uma das veias que parece correr em seus sentimentos e em seu pensamento. E para isso com a ajuda de duas publicações recentes sobre sua figura, considerada uma das mais relevantes na igreja do século passado.

 

Cardeal Martini

Foto: Fondazione Carlo Maria Martini

 

A Fundação que leva seu nome acaba de publicar o volume V das Obras Completas com o título “Farsi prossimo”. O caminho da proximidade foi tema de uma carta pastoral e da assembleia realizada em Assago em 1986, bem como de sucessivas intervenções e comentários que afetaram as dimensões em que se desenvolve a realidade do amor. Porque a palavra caridade, de raiz evangélica, representava para ele uma síntese definitiva do cristianismo e um tesouro inestimável da humanidade.

 

Como era de esperar na sua forma de entrar nas questões, dedicou espaço para meditar sobre as raízes e o horizonte dessa proximidade. Ou, o que é o mesmo, atender ao fundamento bíblico da caridade e o que isso implica. O estilo da lectio divina, tantas vezes perceptível em seus escritos e lições, aparece em seu tratamento, assim como no da justiça. Em 1999, foi lançado nas livrarias “Sulla giustizia”, onde o autor lembra que o divino é misericórdia e perdão ao mesmo tempo. E em mais ocasiões mostrou que os dois termos: caridade e justiça combinam bem, se partirmos de sua fonte. As declarações que encabeçam as diferentes partes deste último volume editado dão uma ideia do alcance que o assunto teve para Martini.

 

colocar aqui a legenda (Foto: nome do fotógrafo)

 

A escuta da Palavra sempre foi para ele inseparável da escuta – humilde e muito atenta – aos outros, para estabelecer um diálogo a partir do ser profundo dos interlocutores em um terreno comum. Alguns não-crentes que participaram daquela cadeira de escuta e conversa se lembraram dela, e essa atenção se estende aos presos e aos idosos que se sentiram dignos com sua visita. Além de enfatizar a "prática da proximidade" que aborda respeitosamente os fragilizados pela doença, deficiência e velhice, outras intervenções aqui coletadas são dirigidas ao sistema de saúde, seu pessoal, a mídia e a ética do cuidado.

 

Um espaço notável ocupa a demanda por dignidade e reconhecimento social para quem sofre na prisão. Esta foi uma área particularmente frequentada pelo Cardeal, e que teve especial ressonância por ocasião da entrega de armas pelos terroristas. O exercício da proximidade da sociedade e da política também encontra aqui lugar. E, claro, as várias formas de diaconato para exercer em uma igreja, como a de Milão, diante dos problemas de violência e marginalização. Em meio a situações sociais que exigiam uma intervenção urgente, ele insistiu na necessidade de educar o coração à "caridade inteligente, que previne e persevera". Tratava-se, disse ele, não apenas de enfrentar as dificuldades que surgiam, mas de antecipá-las e perseverar nelas dia após dia. Ele transmitiu aos milaneses - disse Ermano Olmi - o que eles nem sabiam que não tinham: o sentido da vida. E despertou um esforço civil em favor dos últimos. Compreendeu que o exercício da caridade deve despertar a dignidade, oferecendo incondicionalmente um amor recebido: o de Deus-Amor que a Palavra da fé testemunha.

 

Cardeal Martini (Foto: Fondazione Carlo Maria Martini)

 

Dos pobres de Trastevere à Casa da Caridade

 

Em 1992, ao presidir o funeral de David Turoldo, considerado como a "inquieta consciência da Igreja", destacou o profetismo daquela voz "pedregosa como as pedras da sua terra" (Friuli) e reconheceu que era à frente de seu tempo como acontece com os profetas, embora sejam desconfortáveis. Anos depois, no encontro ecumênico de Basileia (1989) em que a gravidade dos problemas apresentados tornou necessário invocar a esperança para enfrentar o futuro, Martini nos encorajou a olhar a realidade “do ponto de vista dos pobres”, aceitando nossa própria pobreza e sabendo que ser pobre significa não contar na sociedade.

 

Nos últimos anos ficou feliz por ter deixado como legado na diocese uma Casa de Caridade, que representou uma forma totalmente pessoal e cuidadosa de cuidar de quem precisava. Algo que carrega consigo desde os anos em que trabalhou como professor e pesquisador e que, como sabemos, procurou praticar de forma muito explícita aos fins-de-semana, entrando em alguns dos bairros mais descuidados da cidade de Roma.

 

A comunidade de Sant'Egidio lembra que, quando estava começando a assistência aos pobres sem-teto e alguns idosos que moravam sozinhos nas ruas estreitas, o jesuíta Pe. Martini limpou e pôs ordem em um deles e juntou-se à oração no grupo de voluntários que foram iniciados na leitura da Escritura. Ele o fez com uma discrição que cobria seu já bastante notável conhecimento dos textos. Muitos anos depois, ele diria que "estamos sempre atrasados em sua compreensão e, consequentemente, na compreensão da mente de Deus".

 

As saídas de voluntários e membros da comunidade para os bolsões de marginalização na Via Casilina, na década de 1970, foram registradas no volume “Evangelho na periferia” (1987) com um prólogo do já Cardeal Martini. Nessas páginas recorda ter estado entre aqueles que tentaram "traduzir" ouvindo a Palavra em atenção ao povo, utilizando os temas, imagens e sofrimentos típicos daquela realidade: "o frio do inverno do qual as pessoas se defendem nas casas úmidas, a solidão, a doença, a situação das mulheres…”



De fato, quando voltou a essa região vinte anos depois, pôde cumprimentar velhos amigos e comoveu-se ao reconhecer que essa experiência o havia preparado providencialmente para sua missão em Milão. O recente livro de R. Zuccolini, “La Parola e i poveri” (2021) conta a história dessa amizade com a comunidade de Trastevere e resgata alguns casos inéditos nas quais o futuro cardeal fala de sua busca pessoal, nos anos agitados do anos 60-70, de lugares onde a Escritura guiava a oração e, ao mesmo tempo, havia uma efetiva solicitude pelos pobres e um olhar atento à política (cf. 488-493).

 

 (Foto: Divulgação)

 

Como acontecia com outros grupos pobres ou empobrecidos, sua preocupação com os idosos era constante. A intervenção em favor dos idosos, "a memória da fragilidade", no Congresso Internacional organizado em Roma em 1990, é um dos apelos mais peremptórios que ouvimos para "não abandonar os abandonados". Uma urgência de caridade que recai sobre cada cristão, mas que exige a intervenção da sociedade que não pode ignorar aqueles que construíram o bem-estar atual: a eutanásia -ele chega a dizer- é a resposta extrema de uma atitude muito difundida: o do abandono, porque o desespero que às vezes se expressa "não é um pedido de morte, mas de vida".

 

Enfim, apenas uma confiança serena

 

"Eu queria idealmente encontrar todos, mas especialmente os últimos". E “a todos, crentes e não, gostaria de repetir que a fonte do meu pensamento e das minhas ações sempre quis ser a Palavra de Deus”. Assim resumiu em poucas frases sua longa dedicação pastoral.

 

Marcado pela doença, já emérito, na sua tão desejada Jerusalém ou na residência jesuíta de Gallarate, o último Martini continuou a receber e a dar atenção a quem o procurava. Prosseguiu em seu esforço, sábio e paciente, para retornar às perguntas sempre sem resposta, aquelas que ele percebia pulsando em muitos de seus contemporâneos - crentes ou não - e que também ecoavam dentro dele. Em uma entrevista que ficou famosa: "Conversas noturnas em Jerusalém", ele sentiu sinceramente como seus sonhos sobre a Igreja não foram realizados, enquanto os encorajava a confiar na "esperança que não decepciona". Em algumas ocasiões, ele também repetiu que "há brasas na Igreja, embora as cinzas as cubram".

 

Cardeal Martini (Foto: Fondazione Carlo Maria Martini)

 

Depois de uma década, sua doença o reduziu a um quarto de doente onde, certamente, ele pôde experimentar que "a caridade é paciente e prestativa". E é comovente encontrar nas últimas imagens que aquela figura distinta, de estatura notável, se curva e o tremor típico do Parkinson que sofria aparece em suas mãos. Também é impressionante notar nas gravações, cada vez mais próximas do silêncio, aquela voz que quis ser um eco discreto da Palavra.

 

Nas suas meditações sobre a vida eterna escrevera: “É belo pensar que posso redimir a angústia do tempo, a história do meu corpo, com atos de entrega, que têm um valor definitivo depositado na plenitude do corpo ressuscitado de Cristo. É bonito pensar que cada palavra que digo na oração é um tijolo enviado à eternidade para construir a morada que não tem fim.

 

E nos últimos anos falou com franqueza desarmada de sua expectativa de um fim que deixaria de ser e se transformaria em “maravilha na eterna manhã” pela confiança na “Palavra da Vida”: “Estou na lista de espera ou na lista de chamadas... e me convenci de que sem a morte não faríamos um ato de total confiança em Deus. Na vida sempre temos 'saídas de emergência', lugares para 'fugir'. Mas na morte temos que nos entregar totalmente, como a água corre na cachoeira, ela é lançada, e só então pode revelar todo o seu frescor e riqueza. Este é o mistério que estou enfrentando... e não posso dizer que sei muito sobre isso." Uma confiança que, reconheceu também, não lhe foi fácil em todos os momentos, mas que nasceu de aceitar que “há uma revelação de Deus que se manifesta na pobreza, na simplicidade, no não aparecer, no não estar presente.”

 

 

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