03 Agosto 2022
"Nos dias atuais, a falta de liberdade nos atormenta. A complexidade da vida, a sofisticação das relações sociais geram sentimento de prisão e de angústia. Os povos indígenas nos dão o testemunho de uma incomensurável liberdade", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor de O casamento entre o Céu e a Terra, contos de indígenas brasileiros (com um suplemento sobre dados atualizados do seu universo), Planeta 2022.
Com o assassinato recente do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips no vale do Javari amazônico e, mais que tudo, pelo abandono que sofreram por parte do atual governo, de viés genocida, por longo tempo, durante a pandemia da Covid-19 que, ao todo, deve ter custado a vida de cerca de mil indígenas, a questão dos povos originários ganhou as manchetes nacionais e internacionais.
Surpreendente, embora tardio, foi o pedido de desculpa do Papa Francisco em sua visita em julho ao Canadá, às famílias de crianças indígenas, arrancadas de seu meio e internadas em colégios católicos com muitas mortes. Eles não se contentaram com essa desculpa papal. Uma das lideranças corajosamente disse ao Papa: parem de nos fazer superar esta tragédia, queremos que nos entendam, que respeitem a nossa sabedoria ancestral, que favoreçam a nossa cura e nos deixem viver segundo as nossas tradições. Algo semelhante disseram indígenas bolivianos por ocasião da visita do Papa João Paulo II: a Bíblia que nos dão, entreguem-na aos europeus, pois eles precisam dela mais do que nós porque foram eles que de forma desumanizadora nos colonizaram e quase nos dizimaram.
Nunca pagamos a dívida centenária que temos para com os povos originários brasileiros, latino-americanos e caribenhos. Eles são os hóspedes originários destas terras que lhes estão sendo invadidas e roubadas em função da voracidade dos madeireiros, do ouro e da mineração.
Agora que estamos sob um alarme ecológico planetário, sem saber que soluções encontrar face ao crescente aquecimento do planeta, descobrimos, finalmente, como eles tratam a natureza com sabedoria, o cuidado para com as florestas e a Mãe Terra. Eles são nossos mestres e doutores no sentimento de pertença, de irmandade e de respeito por tudo o que existe e vive. Nutrem uma profunda concórdia entre eles e com a comunidade de vida, coisa que nós há séculos perdemos. Estamos sofrendo os danos irremissíveis de nossa devastação. Ainda não tiramos as lições que Gaia, a Pacha Mama e Mãe Terra nos está dando com a intrusão da Covid-19. Buscamos voltar à ordem anterior, justamente aquela que propiciou a irrupção de inúmeros vírus, o último, a varíola do macaco. Elenquemos alguns valores de seu modo de estar neste mundo natural.
O índio se sente parte da natureza e não um estranho dentro dela. Por isso, em seus mitos, seres humanos e outros seres vivos convivem e casam entre si. Intuíram o que sabemos pela ciência empírica que todos formamos uma cadeia única e sagrada de vida. Eles são exímios ecologistas. A Amazônia, por exemplo, não é terra intocável. Em milhares de anos, as dezenas de nações indígenas que ali vivem interagiram sabiamente com ela. Quase 12% de toda floresta amazônica de terra firme foi manejada por eles, promovendo “ilhas de recursos”, desenvolvendo espécies vegetais úteis ou bosques com alta densidade de castanheiras e frutas de toda espécie. Elas foram plantadas e cuidadas para si e para aqueles que, por ventura, por ali passassem.
Os Yanomami sabem aproveitar 78% das espécies de árvores de seus territórios, tendo-se em conta a imensa biodiversidade da região, na ordem de 1200 espécies por área do tamanho de um campo de futebol.
Para eles a Terra é Mãe do índio. Ela é viva e por isso produz todo tipo de seres vivos. Deve ser tratada com a reverência e respeito que se deve às mães. Nunca se há de abater animais, peixes ou árvores por puro gosto, mas somente para atender necessidades humanas. Mesmo assim, quando se derrubam árvores ou se fazem caçadas e pescarias maiores, organizam-se ritos de desculpa para não violar a aliança de amizade entre todos os seres.
Essa relação sinfônica com a comunidade de vida é imprescindível para garantirmos o futuro comum da própria vida e o da espécie humana.
Conhecendo-se um pouco as diversas culturas indígenas, identificamos nelas profunda capacidade de observação da natureza com suas forças e da vida. A sabedoria deles se teceu através da sintonia fina com o universo e da escuta atenta da linguagem da Terra. Sabem melhor do que nós casar céu com a terra, integrar vida e morte, compatibilizar trabalho e diversão, confraternizar o ser humano com a natureza. Nesse sentido eles são altamente civilizados, embora sua tecnologia seja finíssima mas não contemporânea.
Intuitivamente, atinaram com a vocação fundamental de nossa efêmera passagem por esse mundo que é captar a majestade do universo, saborear a beleza da Terra e tirar do anonimato aquele Ser que faz ser todos os seres, chamando-o por mil nomes, Palop, Tupã, Ñmandu e outros. Tudo existe para brilhar. E o ser humano existe para dançar e festejar esse brilho.
Essa sabedoria precisa ser resgatada por nossa cultura secularista e desrespeitosa das várias formas de vida. Sem ela, dificilmente pomos limites ao poder que poderá destruir o nosso ridente Planeta vivo.
Para os povos indígenas, bem como para alguns contemporâneos, como o recém falecido James Lovelock, o formulador da teoria da Terra como Gaia, tudo é vivo e tudo vem carregado de mensagens que importa decifrar. A árvore não é apenas uma árvore. Ela se comunica por seus odores. Possui braços que são seus ramos, tem mil línguas que são suas folhas, une o Céu com a Terra por suas raízes e pela copa. Eles conseguem, naturalmente, captar o fio que liga e religa todas as coisas entre si e com a Divindade. Quando dançam e tomam as beberagens rituais, fazem uma experiência de encontro com o Divino e com o mundo dos anciãos e dos sábios que estão vivos no outro lado da vida. Para eles, o invisível é parte do visível. Essa lição importa aprender deles.
Nos dias atuais, a falta de liberdade nos atormenta. A complexidade da vida, a sofisticação das relações sociais geram sentimento de prisão e de angústia. Os povos indígenas nos dão o testemunho de uma incomensurável liberdade. Baste-nos o depoimento dos grandes indigenistas, os irmãos Orlando e Cláudio Villas Boas: “O índio é totalmente livre, sem precisar de dar satisfação de seus atos a quem quer que seja… Se uma pessoa der um grito no centro de São Paulo, uma rádio-patrulha poderá levá-lo preso. Se um índio der um tremendo berro no meio da aldeia, ninguém olhará para ele, nem irá perguntar por que ele gritou. O índio é um homem livre.” Essa liberdade é tão apresentada pela extraordinária liderança Ailton Krenak e por seus escritos.
A autoridade, o poder como serviço e o despojamento. A liberdade vivida pelos indígenas confere uma marca singular à autoridade de seus caciques. Estes nunca têm poder de mando sobre os demais. Sua função é de animação e de articulação das coisas comuns, sempre respeitando o dom supremo da liberdade individual. Especialmente entre os Guarani se vive esse alto sentido da autoridade, cujo atributo essencial é a generosidade. O cacique deve dar tudo o que lhe pedem e não deve guardar nada para si. Em algumas tabas se pode reconhecer o chefe na pessoa de quem traz ornamentos mais pobres, pois o resto foi tudo doado. Nós ocidentais definimos o poder sob sua forma autoritária: “a capacidade de conseguir com que o outro faça aquilo que eu quero”. Em razão desta concepção, as sociedades são dilaceradas permanentemente por conflitos de autoridade.
Imaginemos o seguinte cenário: caso o cristianismo se tivesse encarnado na cultura social guarani e não naquela greco-romana, teríamos então padres pobres, bispos miseráveis e o papa um verdadeiro mendigo. Mas sua marca registrada seria a generosidade e o serviço humilde a todos. Então, sim, poderiam ser testemunhas d’Aquele que disse: ”estou entre vós como quem serve”. Os indígenas teriam captado essa mensagem como conatural à sua cultura e, quem sabe, livremente aderido à fé cristã.
Como se depreende em tantas coisas, reafirmo, os indígenas podem ser nossos mestres e nossos doutores, como se dizia dos pobres na Igreja dos primórdios.
Leonardo Boff escreveu O casamento entre o Céu e a Terra, contos de indígenas brasileiros (com um suplemento sobre dados atualizados do seu universo), Planeta 2022.
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Povos indígenas: nossos mestres e doutores. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU