16 Julho 2022
É preciso consertar a humanidade para salvá-la, consertar aquilo que desfizemos da humanidade, e somente assim poderemos consertar a parte da Terra que desfizemos, a parte que nos deu vida e que ainda pode nos manter com vida.
O comentário é do escritor e jornalista italiano Maurizio Maggiani, publicado em La Stampa, 13-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Do que realmente falamos quando falamos em salvar a Terra ou pelo menos consertá-la, como disse o arquiteto Piano? Falamos de nós, de nós e somente daquele pouco que não somos nós, mas que nos diz respeito em relação à Terra, porque é necessário para nos salvarmos, para nos consertarmos.
Por mais poderosos que sejamos, e estúpidos, e cruéis, não temos o poder de condenar o planeta; mesmo que reuníssemos toda a força destrutiva de que somos capazes, seria apenas uma pálida imitação das colisões celestes do Devoniano ou das enormes convulsões do Triássico. Basta que, em breve, ao pôr-do-sol, eu dê uma olhada nos campos aqui ao redor para entender isso, mesmo com o meu curto olhar campestre; chegarão milhões de pequenos grilos verdes que nunca se havia visto, toda noite cada vez mais, e cada vez mais vivazes; depois que, durante décadas, os agricultores fizeram de tudo para mandá-los para longe, esses alegres grilinhos são invencíveis, e, embora se consiga exterminá-los, chegarão outros parentes.
Não, quando falamos de salvar a Terra pensamos em salvar a nós mesmos, porque o único poder de verdade que podemos exercer sobre o universo se resume no suicídio das espécies, destruindo aquilo que da Terra precisamos para viver e prosperar como espécie; certamente, podemos assassinar diversas outras espécies, podemos desertificar, extinguir geleiras, mas a vida contra a qual estamos atentando é a nossa, a catástrofe decisiva diz respeito a nós.
Dizemos que devemos salvar o planeta, porque nos dá um pouco de vergonha dizer que temos que salvar a nós mesmos; e fazemos bem em nos envergonharmos, nada do que fazemos nos diz que a nossa intenção é nos salvar, e para aqueles corações em que ainda ressoa o pulsar do imperativo moral, não é absolutamente evidente que o mereçamos.
Melhor, portanto, convencer-nos de que somos deliciosamente generosos em relação ao mundo inteiro do que exumar um egoísmo natural e óbvio de espécie que sepultamos em algum lugar, onde não pode perturbar o egoísmo dos indivíduos, o interesse dos grupos, as necessidades das nações. É um lugar onde já não circula mais a palavra “humanidade”, a herança mais preciosa do melhor que já fomos, mas, se tivéssemos a força de pronunciá-la novamente, de ouvi-la sendo pronunciada e de entender que sentido ela tem, que razão ela tem, talvez nos seja possível fazer a única coisa que nos compete, que deveria nos obrigar. Consertar a humanidade para salvá-la, consertar aquilo que desfizemos da humanidade, e somente assim poderemos consertar a parte da Terra que desfizemos, a parte que nos deu vida e que ainda pode nos manter com vida.
Consertar a humanidade, e não a remendar, porque isso de nada nos serve, senão para nos iludirmos de que seguiremos em frente mais um pouco; mas refazê-la de novo. A humanidade nova, uma loucura, mas, mesmo que apenas por exclusão, é a única coisa razoável. Porque é o sistema que edificamos que é irrazoável, que é uma verdadeira loucura, comprovada, medida e verificada. É o sistema que nos mantém vinculados, subservientes à promoção da destruição. Um sistema malvado, e não estou citando o príncipe Bakunin, mas sim uma fonte ainda mais extrema, e para os fiéis ainda mais confiável, o livro da Sabedoria: “Pois Deus não fez a morte, nem se alegra com a perdição dos seres vivos. Ele criou tudo para a existência, e as criaturas do mundo são sadias: nelas não há veneno de morte, nem o mundo dos mortos reina sobre a terra, porque a justiça é imortal. Com gestos e palavras, os injustos invocam a morte para si mesmos. Eles pensam que a morte é amiga e a desejam ardentemente, chegando a fazer aliança com ela. São realmente dignos de pertencer à morte” (1,13-16; trad. Bíblia Pastoral).
Consertar a humanidade para que a última palavra não seja da morte. Uma revolução global, nada menos do que isso, em comparação com a qual a revolução de 1989 foi um ajuste, e a de outubro, uma incursão. Tento guardar para mim a palavra “revolução”, bem protegida sob o manto das suas cinzas, mas há outra talvez?
Ainda com o meu curto olhar campestre, olho para o meu vizinho Fausto e vejo um homem bom, um camponês gentil, mas esse homem bom é um perigoso terrorista climático; cultiva cevada e trigo, e isso mal lhe permite sobreviver, porque neste ano os cereais estão sendo pagos decentemente ao agricultor, mas nos anos passados, mesmo pelas qualidades preciosas, pouco ou nada, e quando o bloqueio acabar, os preços vão voltar a cair. Então, para mandar os seus três filhos para a escola, ele cultiva kiwi; o kiwi agrada, é muito apreciado pelas pessoas preocupadas com a saúde e pelo lobby da constipação, mas é um assassino ambiental, requer 10 vezes a água necessária para o trigo, água que há muito tempo não vem mais do céu, e para vegetar bem em uma terra que não é a sua terra natal ele requer uma notável quantidade de fitofármacos e fertilizantes.
Do jeito que as coisas estão, quem se dispõe a dizer ao Fausto que ele não tem o direito de cultivar kiwis e que os seus filhos não têm o direito de ir à escola? E quantos milhões são os Faustos no mundo, vinculados a leis de mercado e de marketing às quais desobedecer custa a pior miséria? E apenas pensando nos agricultores, porque eu os tenho aqui do outro lado da porta, e nos consumidores de kiwis, porque eu os tenho dentro de casa, não consigo imaginar senão uma convulsão radical, comumente chamada de revolução, do mercado agrícola, da especulação sobre os cereais, da mentalidade dos agricultores, da escola dos seus filhos, das expectativas dos consumidores. Que deve ser combinada e multiplicada pelas inúmeras maldades de que somos autores e vítimas. Eu sei disso e não sei se algum dia será possível; não se trata de derrubar um regime, mas de mudar a rotação de um universo; acho que isso nunca aconteceu na história da humanidade.
As revoluções são dirigidas pelas vanguardas, e, para esta, uma vanguarda global, e são lideradas pelos povos, e, para esta, um povo universal; as revoluções são armadas, e, para esta, são necessárias armas letais do pensamento, da fantasia, do conhecimento, do sentimento. Não consigo ver nada disso; só o fato de imaginar isso dá vertigem; mas isso não significa nada, eu tenho a visão curta e certamente não estou no centro da história.
Mas também sei que a única alternativa a esse exercício senil da utopia – aliás, utopia pode ser traduzida indiferentemente como o lugar que não existe ou o lugar bom, a escolha é sua – é a destruição. E sei ainda que o sentimento da destruição está aí, já amanhã, e trará consigo o desespero, um desespero universal; assim como sei que o desespero só sabe usar uma única arma, que é a arma da revanche e da vingança, e não conhece nem pensamento, nem fantasia, nem conhecimento, muito menos sentimento.
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“Nós só queremos salvar a nós mesmos. A Terra não nos importa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU