12 Julho 2022
“O certo é que os movimentos contra as dívidas ilegítimas e entre eles o CADTM internacional devem se preparar para entender a nova situação e agir”. A reflexão é de Eric Toussaint, em artigo publicado por Viento Sur, 09-07-2022. A tradução é do Cepat.
Eric Toussaint é doutor em ciência política pelas universidades de Liège e Paris VIII, porta-voz do CADTM (Comitê para a Abolição da Dívida Ilegítima) internacional e membro do Conselho Científico da ATTAC França. É autor de, entre outros livros, A Bolsa ou a Vida. A dívida externa do Terceiro Mundo: as finanças contra os povos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.
O período 2016-2022 foi marcado por um recuo nas mobilizações contra as dívidas ilegítimas em escala planetária, com algumas exceções importantes: Argentina desde 2020, Porto Rico em 2017-2019, Líbano 2019-2020, Sri Lanka 2022, etc.
A rede CADTM foi afetada por esse recuo que ainda não terminou. Outras organizações que trabalham com a questão da dívida ilegítima também foram afetadas.
A causa do recuo dos movimentos contra a dívida ilegítima pode ser resumida em três grandes acontecimentos que tiveram um efeito diferente dependendo das grandes regiões em que o CADTM atua:
— O recuo muito significativo na Europa deve-se à capitulação do governo grego diante dos credores no verão de 2015, o giro moderador do Podemos na Espanha e os efeitos da política de injeção em massa de liquidez realizada pelo Banco Central Europeu e pelo Banco da Inglaterra, juntamente com uma política de taxa de juros zero.
— Um segundo fator diz respeito a quase todo o planeta. A maioria dos países do Sul e do Norte conseguiu refinanciar facilmente suas dívidas aproveitando as consequências da política muito ativa dos principais bancos centrais do Norte. A política dos principais bancos centrais do Norte desde 2008 consiste em grandes linhas na aplicação de uma taxa de juro zero, uma injeção massiva de liquidez em benefício dos bancos privados e dos mercados financeiros que os reciclaram comprando dívida pública em todo o mundo, e com a pandemia, foi adicionado um relaxamento máximo da disciplina de “austeridade” orçamentária.
A existência de grande liquidez à disposição dos bancos e outros setores do Grande Capital (fundos de investimento, grandes empresas, fundos de cobertura/hedge funds, fundos abutres, etc.) serviu especialmente para comprar dívida pública emitida pelos Estados que antes não tinham acesso aos mercados financeiros. Isso criou uma espécie de euforia típica de tempos em que os fluxos financeiros privados vão de norte a sul até que haja uma mudança na situação (que ainda não se produziu, mas começa a se manifestar). É claro que houve exceções e vários países do Sul tiveram dificuldades para pagar suas dívidas (Zâmbia, Venezuela, Argentina, Líbano, etc.).
— A situação dos países exportadores de commodities melhorou desde 2020-2021 à medida que suas receitas aumentaram gradualmente, o que os ajudou a manter o pagamento de suas dívidas.
Provavelmente estamos vivendo em 2022 um ano chave porque estão ocorrendo mudanças no Norte que domina o planeta. Isso é consequência principalmente da nova guerra que começou na Europa no final de fevereiro de 2022 e da especulação que estão provocando um aumento muito forte dos preços dos cereais (e por contágio especulativo, de outros alimentos). No entanto, uma parte importante dos países do Sul tornou-se cada vez mais dependente de suas importações de grãos, pois seguiram as recomendações de instituições como o Banco Mundial e o FMI.
Abandonaram o apoio aos seus produtores e produtoras locais. Os países que importavam relativamente poucos cereais há 50 ou 60 anos tornaram-se cada vez mais dependentes das importações de grãos e outros alimentos vitais para suas populações. À medida que os preços dos cereais e outros alimentos sobem acentuadamente, a conta de suas importações também aumenta e começam a ficar sem divisas tanto para pagar essa conta como para pagar a dívida externa.
Para países como o Sri Lanka, que perdeu grande parte da sua receita de turismo durante a pandemia de 2020-2022 e precisa importar quase todo o combustível e alguns alimentos, a situação é simplesmente insustentável.
Por outro lado, os países exportadores de petróleo e gás estão em condições de enfrentar com menos dificuldades o aumento das despesas com importação de alimentos porque o preço do barril de petróleo atingiu ou ultrapassou os 100 dólares desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. As receitas adicionais geradas pela venda de seu petróleo, gás e outras matérias-primas no mercado mundial permite-lhes atender à crescente fatura da importação de alimentos.
A situação é desigual, mas também combinada, porque o aumento das taxas de juros começará a ter impacto em nível global em consequência da mudança na política financeira adotada pelos principais bancos centrais do Norte. O Federal Reserve dos EUA (Fed) iniciou o movimento de alta com força, o Banco da Inglaterra seguiu o exemplo e o Banco Central Europeu também está se preparando para começar a aumentar as taxas de juros, e o Banco da China também aumentou as taxas.
O Fed havia se comprometido a aumentar a taxa em 0,25% ao mês para atingir uma taxa acima de 1% até o final de 2022; com a inflação em alta, o Fed aumenta a taxa de juros mais rápido do que o inicialmente esperado. A previsão média dos membros do comitê de política monetária do Fed (o FOMC, Federal Open Market Committee) dá agora uma taxa básica de 3,4% no final de 2022 e de 3,8% em 2023, enquanto sua previsão de março de 2022 a estimava em 1,9% para o final deste ano. Existe o risco de uma nova crise, porque uma taxa de juros mais alta estimularia a repatriação de capitais para os Estados Unidos – e a Europa se o Banco Central Europeu for nessa direção – e aumentaria o prêmio de risco que os países endividados teriam que pagar. Portanto, hoje não há uma crise de dívida generalizada, mas existem as condições para que ela exista.
Portanto, provavelmente estamos vivendo um ano crucial que pode levar a um aumento acentuado das dificuldades de pagamento da dívida no final de 2022 ou em 2023 para uma série de países em escala planetária, mas especialmente no Sul global. O que foi colocado anteriormente é uma previsão e como qualquer previsão deve ser tomada com cautela.
Vale lembrar que uma crise da dívida pública afetou a economia mundial durante a década de 1980. Ela resultou principalmente da decisão do Federal Reserve dos Estados Unidos de aumentar, a partir de outubro de 1979, de maneira unilateral e brutal e em grandes proporções, as taxas de juros. Os efeitos negativos dessa decisão combinados com a queda do preço do petróleo a partir de 1981 e a recessão mundial de 1982-1983 foram devastadores.
Tudo isso também fez parte da grande virada neoliberal de 1979-1980 tomada pela Grã-Bretanha de Margaret Thatcher e os Estados Unidos sob a presidência de Ronald Reagan. A partir de 1985, graças principalmente a líderes como Fidel Castro (Cuba) e Thomas Sankara (Burkina Faso), foram tomadas iniciativas para denunciar o pagamento das dívidas reclamadas ao Terceiro Mundo, agora chamado de Sul Global. Cuba suspendeu o pagamento de sua dívida externa ao Clube de Paris desde 1986 (e até 2014).
Grandes mobilizações ocorreram tanto no Sul como no Norte do planeta. Este poderoso movimento conseguiu mobilizar todas as vezes dezenas de milhares ou mesmo centenas de milhares de manifestantes durante as reuniões anuais do Banco Mundial, do FMI e do G7. Uma grande campanha pela anulação das dívidas dos países pobres culminou em 1999 com uma mobilização massiva em Colônia (Alemanha) durante uma reunião do G7 com a entrega de uma petição apoiada por 17 milhões de assinaturas. Foi durante os anos 90 que nasceram as várias redes internacionais de luta contra a dívida ilegítima: o CADTM em 1990, depois Eurodad, Afrodad e Latindadd, a campanha Jubileu 2000 em 1998-1999, o Jubileu Sul em 1999... Houve convergências com outras campanhas sobre outras questões, e, em 2001, nasceu o Fórum Social Mundial. Inúmeras organizações contra as dívidas ilegítimas nasceram em muitos países do planeta.
A partir de 2001, a Argentina, sob pressão popular, suspendeu o pagamento de grande parte da sua dívida externa. De 1999-2000, a reivindicação de uma auditoria cidadã da dívida para promover a denúncia e o não pagamento da dívida ganhou terreno com, como movimentos emblemáticos, os do Estado espanhol (Rede Cidadã para a Abolição da dívida RCADE) e do Brasil, com o plebiscito da auditoria da dívida em 2000 (do qual participaram 6 milhões de pessoas) e o nascimento da auditoria cidadã da dívida do Brasil. A proposta de uma auditoria cidadã da dívida ganhava cada vez mais terreno e em 2007 o Equador deu o exemplo da criação, por parte do governo, de uma comissão para a auditoria integral da dívida (a CAIC). Com base na auditoria, o Equador suspendeu o pagamento da dívida e obteve uma grande vitória contra seus credores em 2009. O exemplo equatoriano teve repercussão internacional em círculos limitados, mas muito ativos.
A crise financeira internacional de 2008, seguida por uma crise econômica global em 2009, seguida também esta por uma crise da dívida na Europa a partir de 2010, levou os movimentos contra as dívidas ilegítimas a experimentar um grande desenvolvimento no Norte global. Isso foi amplificado em 2011 pela Primavera Árabe por um lado, e por outro pelo movimento Indignados na Espanha, o movimento de ocupação de praças na Grécia, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos e movimentos semelhantes em outros países do Norte.
Entre 2011 e 2015 em muitos países europeus foram desenvolvidos importantes coletivos para a auditoria cidadã das dívidas e a denúncia do pagamento de dívidas ilegítimas.
2015, com a vitória do Syriza na Grécia e a eleição na Espanha de uma centena de ajuntamentos da mudança, foi o clímax de uma poderosa onda de movimentos de dívida na Europa.
2015 foi também o início do declínio dos movimentos anti-dívida.
A capitulação do governo grego liderado por Alexis Tsipras aos credores no verão de 2015 deu início ao recuo. Seguiu-se a virada para a moderação do Podemos na Espanha e a incapacidade dos governos municipais de esquerda na Espanha de constituir uma verdadeira estratégia contra o governo central, particularmente na questão da dívida. Na Tunísia, o declínio também começou com a incapacidade dos deputados da Frente Popular de apresentar uma estratégia coerente e ofensiva sobre a dívida e outras questões importantes.
O recuo não ocorreu em todos os lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, na Itália começou dois ou três anos depois, por volta de 2018.
O retrocesso não foi generalizado porque houve uma grande revolta popular no Líbano em 2019-2020, durante a qual a questão da dívida teve um lugar significativo. Também houve mobilizações importantes contra a dívida em Porto Rico entre 2016 e 2019. E depois houve as grandes mobilizações na Argentina de 2019-2020 até hoje.
Em 2022, as enormes mobilizações na Argentina e no Sri Lanka ligadas diretamente à dívida talvez prenunciem o que poderá acontecer nos próximos anos em diferentes partes do planeta. A rejeição das políticas neoliberais impostas para pagar a dívida não será o único motivo das mobilizações porque os diferentes aspectos da crise global do sistema capitalista estão interconectados: crise alimentar, crise sanitária, crise ecológica, crise migratória, crise energética, crise política, crise econômica...
Nos Estados Unidos, a dívida estudantil atingiu 1,7 bilhão de dólares. Entre as medidas tomadas para lidar com a pandemia do coronavírus, Trump estabeleceu uma moratória em 2020, medida prolongada por Joe Biden em várias ocasiões. O Fed alerta para o risco de não pagamento quando os pagamentos dessas dívidas forem retomados.
Concluindo, é possível que, em escala internacional, os movimentos que questionam o sistema da dívida ganhem força a partir de 2023. Devemos nos preparar e contribuir para isso.
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Teremos o renascimento do movimento contra as dívidas ilegítimas em 2023? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU