15 Junho 2022
"Na Igreja ainda há uma evidente dificuldade em derrubar a perspectiva de ação contra os abusos... tende-se a não reconhecer como valor absoluto a tutela da vítima e sua necessidade de justiça, em relação à proteção do bom nome da instituição eclesiástica".
A entrevista com Franca Giansoldati é publicada por Il Sismografo, 14-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há algumas semanas está disponível nas livrarias italianas o livro Agnus Dei. Gli abusi sessuali del clero italiano (Agnus Dei. O abuso sexual do clero italiano, em tradução livre, escrito por Franca Giansoldati, Anna Foa e Lucetta Scaraffia, já entrevistadas por nós em 10 de junho de 2022). Nesse livro, as autoras e suas colaboradoras abordam sem hesitação, opacidade e meias verdades a grave questão da pedofilia entre os membros do clero italiano.
Agnus Dei: Gli abusi sessuali del clero in Italia
Essa dolorosa realidade, que a própria Igreja, Papas e Bispos, declararam "desafio prioritário", só pode ser enfrentada com toda a verdade, sem descontos e menos ainda com o falso e deletério argumento que invoca a proteção da imagem da comunidade eclesial. O livro oferece aos leitores uma espécie de antologia de eventos relevantes - a agora conhecida ponta do iceberg - do quadro geral dos abusos sexuais na Igreja Católica italiana e se baseia no único arquivo disponível na Itália (além daqueles diocesanos que, no entanto, são todos secretos), aquele da "Rete L'Abuso", fundada e dirigida por Francesco Zanardi, ele mesmo vítima e há vários anos ativista incansável e tenaz.
Queremos compreender a diversidade dos tempos e em nenhum caso colocar os três Papas em competição: Wojtyla, Ratzinger e Bergoglio... Eis a pergunta: na sua opinião, qual é a principal diferença entre as três formas como esses Papas enfrentaram o questão da pedofilia e outros abusos de teor sexual na Igreja contra mulheres e vulneráveis?
Na Igreja ainda é evidente a dificuldade em derrubar a perspectiva de ação contra os abusos. Especialmente na Itália, há uma tendência a não reconhecer como valor absoluto a tutela da vítima e sua necessidade de justiça, em relação à proteção do bom nome da instituição eclesiástica, como aliás aconteceu no passado quando padres abusadores eram facilmente transferidos de uma diocese a outra, em absoluto silêncio, com a cumplicidade dos bispos, para evitar escândalos e ressarcimentos.
O caso estadunidense já no início dos anos noventa começou a desenvolver uma nova consciência na Igreja e sob o peso crescente da opinião pública, João Paulo II também foi obrigado a legislar pela primeira vez sobre os crimes mais graves. Mas foi um primeiro passo, obviamente insuficiente, tanto que depois Bento XVI e Francisco tiveram que intervir. Sob o pontificado de João Paulo II - lembro-me bem - os vértices do Vaticano acreditavam que uma espécie de conspiração anticristã (de matriz judaica) estava em andamento nos Estados Unidos para enfraquecer a Igreja e minar sua credibilidade nos alicerces. Evitava-se olhar a realidade dos fatos nos olhos. Enquanto isso, as vítimas aumentavam em número, tomavam consciência de seus traumas muitas vezes antigos e se juntavam em ações coletivas.
Com Francisco, a legislação do Vaticano sobre pedofilia e pornografia infantil deu outros passos em frente e se adaptou a padrões aceitáveis, mas apenas graças a um processo que começou de baixo, da base, de pessoas que batiam à porta e exigiam uma prestação de contas das responsabilidades no alto. Em minha opinião, ainda há um longo caminho a percorrer, especialmente considerando a situação irregular que existe nos episcopados.
Alguns mostram atenção e capacidade restauradora (penso nos Estados Unidos, Irlanda, França e Alemanha), mas outros, como a Itália, resultam em atraso. Não querem nem mesmo dar espaço a comissões realmente independentes para fazer uma análise histórica sobre o fenômeno, baseando o trabalho nos arquivos diocesanos que permanecem hermeticamente fechados, apesar de ser um passo central e necessário para mapear a má gestão dos pedófilos ao longo dos anos, identificando a cada situação as responsabilidades dos vértices.
Você, há anos - e de fato são poucos os jornalistas na Itália que têm sensibilidade e atenção informativa pela pedofilia no clero - tem acompanhado com cuidado e pontualidade vários eventos humanos, jurídicos e canônicos. Você tem a impressão que, de parte das hierarquias italianas, existe uma profunda empatia humana por esses sofrimentos e sofredores, um desejo sincero de ressarcir pelo menos moralmente um vazio, uma ferida que dilacera a alma ao longo das décadas? Parece-nos que há muita fraseologia burocrática e circunstancial por aí. Vemos demasiadas conferências, palestrantes, especialistas, relatórios, mas depois muda pouco.
Na Itália, infelizmente, a situação ainda está parcialmente bloqueada. O problema é bastante complexo e a resistência de muitos bispos em serem transparentes e colaborativos com a opinião pública e as vítimas tem raízes antigas e acredito que remontem a laços históricos muito estreitos com a Sé de Pedro. O exemplo mais marcante é que os bispos que encobriram casos em outros países são transferidos mais facilmente do que na Itália, onde há alguns casos marcantes.
Fiquei impressionada com a decisão coletiva que foi tomada pelo episcopado durante a última assembleia que anunciou uma virada. Ninguém ainda entendeu qual seria essa virada, até porque o relatório anual que será publicado em novembro se referirá aos casos que chegaram aos serviços de proteção diocesanos (aliás, que ainda não estão presentes em todas as dioceses) apenas para o biênio 2020-2021.
Quanto ao relatório histórico, foi anunciado que haverá uma colaboração científica externa (mas ainda não se sabe quão independente será, nem quais serão os critérios de nomeação dos especialistas, nem que tipo de garantias acadêmicas existam para suporte) encarregada de trabalhar sobre os dados da Congregação para a Doutrina da Fé de 2000 a 2021. Um período de apenas 20 anos é considerado pelos especialistas (psicólogos, médicos, sociólogos) absolutamente curto para avaliar a extensão de um fenômeno tão traumático como o das violências sexuais contra menores. Traumas muitas vezes aparecem inclusive após 30 ou 40 anos.
Além disso, os bispos italianos evitaram assim dar a possibilidade a uma comissão independente de trabalhar nos arquivos diocesanos. O anúncio da CEI no próximo Relatório Anual também destacou a habitual falta de transparência, já que o "Centro acadêmico de pesquisa" que reúne e analisa os dados permanece até o momento desconhecido para todos os católicos e cidadãos italianos.
Este seu livro - "Agnus Dei gli abusi sessuali del clero in Italia" - escrito por você junto com L. Scaraffia e A. Foa e outras colaboradoras, nas livrarias há alguns dias, é uma iniciativa editorial contracorrente em nossa opinião. O tema parece irrelevante para grande parte da imprensa italiana. O próprio episcopado italiano dá a impressão de querer evitar que a questão escape de suas mãos. No entanto, na carta de Bento XVI aos católicos da Irlanda, ele escreveu: "É preciso agir com urgência para enfrentar estes fatores, que tiveram consequências tão trágicas para as vidas das vítimas e das suas famílias e obscureceram a luz do Evangelho a tal ponto, ao qual nem sequer séculos de perseguição não tinham chegado”. Parece-nos que o assunto seja sempre muito grave para a Igreja. É assim ou é exagero nosso?
A urgência para a Igreja de resolver de uma vez por todas a chaga dos abusos, em todos os níveis, é algo que não pode ser prorrogado, considerando que a Igreja vive um momento histórico muito crítico, marcado pelo distanciamento das pessoas e por uma galopante descristianização. Trata-se de restaurar a confiança coletiva através de um percurso de coerência, rigor, transparência, cuidado (em relação às vítimas, ou seja, os mais fracos). Na ausência disso, os danos à reputação e à imagem da Igreja continuarão sob os golpes de uma opinião pública cada vez menos propensa a deixar passar. Claro que não é um percurso simples e indolor, mas é o único caminho possível.
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Agnus Dei. Os abusos sexuais do clero italiano. Entrevista com Franca Giansoldati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU